Italo Calvino e “As Cidades Invisíveis”
Italo Calvino nasceu em Cuba em 1923 mas logo se mudou para Itália, onde se tornaria um dos mais celebres escritores do seu tempo. Fez parte do OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle), um movimento de pós-vanguarda que, na busca da libertação da literatura, impunha uma série de constrangimentos literários onde o autor se torna “um rato que constrói o seu próprio labirinto do qual se propõe a sair”. Surgem assim alguns dos mais inusitados trabalhos da literatura da segunda metade do século XX, seja um romance escrito apenas com a vogal “e” (Les revenentes, de Georges Perec), seja um conjunto de 99 narrações do mesmo episódio corriqueiro (Exercices de style, de Raymond Queneau). O escritor oulupiano buscava a união das ciências humanas e das ciências exatas através de um uso cuidado de jogos lógicos e proporções matemáticas, características que logo ficam claras na análise do livro mais emblemático de Italo Calvino: as Cidades Invisíveis.
As 55 cidades narradas por Marco Polo (explorador veneziano) a Kublai Khan (imperador mongol) apresentam-se a partir de um jogo de repetições que articula o número de cidades com os adjetivos e substantivos atribuídos às mesmas, formando assim um rico padrão matemático. Esta rigidez matemática e formal não deve, contudo, ser interpretada como o espelho de uma obra indelicada e hermética. Na verdade, a obra é repleta dos mais belos malabarismos poéticos que instauram um clima onírico e deveneante. Todas as cidades tem nomes femininos (“Isidora”, “Doroteia”, “Olívia”, etc) e são acompanhadas de curtas descrições que ressaltam o seu caráter fugidio e instável, quase inalcançável. Mais do que pormenores do ambiente citadino ou grandes construções, Calvino descreve sentimentos e desejos, o espírito da própria da cidade. A ordem de cada cidade representa, assim, uma determinada ordem da alma, um determinado estado de espírito do qual cada cidadão participa.
Uma das maiores obras da história da filosofia, a República de Platão, é também uma tentativa de articulação destas duas ordens: a ordem da alma e a ordem da cidade. A analogia surge cedo no dialogo platónico. Descendo ao Pireu para “orar à deusa” e celebrar a mais recente festividade, Sócrates é avistado por Polemarco que logo o convida a dirigir-se a sua casa. Munido da sua singular capacidade de introduzir temas ligeiros e aprazíveis em qualquer convívio social, Sócrates começa a discutir a natureza da justiça.
O filosofo defende, contra todos os seus interlocutores, que é melhor para o homem ser justo do que injusto, mesmo que isto possa trazer aparentes prejudicios imediatos. Há, no entanto, uma dificuldade geral em clarificar o conceito de justiça e, com isto, Sócrates tenta convencer Glaucon a procurar uma analogia para a justiça no indivíduo através da justiça na cidade:
Sócrates — A justiça é, como declaramos, um atributo não apenas do indivíduo, mas também de toda a cidade?Adimanto — Sim.
Sócrates — E a cidade não é maior que o indivíduo?
Adimanto — Claro.
Sócrates — Logo, numa cidade, a justiça é mais visível e mais fácil de ser examinada. Assim, se quiserdes, começaremos por procurar a natureza da justiça nas cidades; em seguida, procuraremos no indivíduo, para descobrirmos a semelhança da grande justiça com a pequena.
A tarefa de encontrar uma cidade justa revela-se igualmente problemática pois nenhuma cidade existente é perfeitamente justa. Se a justiça da cidade deve ser discutida, a cidade em questão deve ser uma cidade imaginada e ideal. O objetivo é, então, formular a melhor constituição possível, aquela que harmonize a medida invisível da alma com a cidade-estado.
Com o avançar do diálogo, o todo social é descrito como uma hierarquia de governantes, guardiões e trabalhadores que devem ser um espelho do todo da alma humana, que tem como ápice a razão e que deve governar os sentimentos e os instintos. A harmonia social, a justiça que buscavam definir, reflete a harmonia interna entre as partes da alma de cada indivíduo, do homem justo.
A analogia volta a ficar latente no livro VIII, quando é feita uma tipologia das formas de governo e da respetiva psicologia dos governantes. Para Platão, tudo o que habita o mundo físico, o mundo do devir, degenera-se. Nem a sua cidade ideal é uma excessão. Assim sendo, a cidade perfeitamente ordenada pode corromper-se numa timocracia, numa oligarquia, numa democracia e, finalmente, numa tirania. A cada um destes governos corresponde um governante, com a sua especificidade e uma certa ordem (ou desordem) da alma. À timocracia corresponde o homem timocrático, à oligarquia o homem oligárquico, etc. Ou seja, a deterioração da cidade coincide com a deterioração da alma. Detenhamo-nos, a título de exemplo, no tirano, cuja psicologia é meticulosamente descrita no livro IX. O tirano é, segundo Platão, dominado pelas suas próprias paixões e portanto, antes de tudo, tirano de si mesmo. Ao poder fazer tudo o quer, realizar todos os seus desejos, faz acordado aquilo que as outras pessoas só podem fazer sonhando e, portanto, falha em ordenar plenamente a sua alma. A vida bem vivida é um misto de reflexão e prazer, da qual o tirano só conhece o prazer. Já o filósofo conhece todos estes prazeres mas conta com uma experiência singular, estranha ao tirano, a experiência da reflexão.
Assim como no dialogo Platónico, o dialogo entre Kublai Khan e Marco Polo busca achar essa harmonia entre a ordem da cidade e a ordem da alma. Na verdade, as cidades descritas por Marco Polo só podem existir na sua imaginação enquanto analogia das suas vivências, dos seus sentimentos e idiossincrasias, como bem percebe Kublai Kan:
As tuas cidades não existem. Talvez nunca tenham existido. Seguramente já não existirão.
A inexistência das cidades não implica, porém, que estas não sejam reais. Pelo contrário, a sua realidade depende da sua inexistência e, se não fosse assim, “obteria cidades demasiado verosímeis para serem verdadeiras”. Na medida em que espelham uma ordem da alma — sentimentos e emoções — , as cidades de Marco Polo devem ser igualmente fugazes e fugidias, inefáveis. Quando Kublai Kan provoca Marco Polo dizendo “eu acho que nunca saíste deste jardim”, o navegador vienense responde:
…cada coisa que vejo e que faço toma sentido num espaço de mente onde reina a mesma calma daqui, o mesmo silêncio percorrido pelo estalar das folhas. […] Talvez este jardim só exponha os seus terraços para o lago da nossa mente…
Italo Calvino convida-nos a entrar nesse jardim e descobrir as nossas próprias cidades invisíveis. E é este convite que o próprio Marco Polo estende a Kublai Khan no momento em que o grande conquistador mongol via, perante os seus olhos, a decadência do seu império que era, no fundo, a sua própria decadência — a decadência do seu império interior:
Sei muito bem que o meu império apodrece como um cadáver no pântano, cujo contágio empesta tanto os corvos que o debicam como os bambus que crescem adubados pelos seus humores.
E, assombrado, busca entender o seu próprio domínio:
Pensou: “Se todas as cidades forem como um jogo de xadrez, no dia em que eu chegar a conhecer as suas regras possuirei finalmente o meu império, mesmo que nunca consiga conhecer todas as cidades que contém.” […] Voltando da sua última missão, Marco Polo foi dar com o Kan à sua espera sentado diante do tabuleiro de xadrez. Com um gesto convidou-o a sentar-se à sua frente e a descrever-lhe só com o auxílio das peças de xadrez as cidades que tinha visitado. […] O Grão Kan tentava concentrar-se no jogo: mas agora era o porquê do jogo que lhe escapava. […] À força de desmaterializar as suas conquistas para as reduzir à essência, Kublai chegara à operação extrema: a conquista definitiva, de que os multiformes tesouros do império não passavam de invólucros ilusórios, reduzia-se a um pedaço de madeira aplainada: o nada…
O grande problema é que a descoberta das nossas cidades invisíveis não funciona como um jogo de xadrez, mecânico e previsível. Tal descoberta depende de uma viagem, mesmo que seja uma viagem estática como a de Marco Polo. Só “viajando percebemos que as diferenças se perdem, cada cidade se vai parecendo com todas as cidades…”. E a viagem é infinita pois “o catálogo das formas é infinito: enquanto houver uma forma que tenha encontrado a sua cidade, continuarão a nascer novas cidades”. É uma viagem que dialoga com o passado — formando cidades quando reflectimos sobre o que vivemos — depende do presente e continuará no futuro, no qual podemos descobrir ou fundar as terras prometidas dos antigos, cujos “portos não seria capaz de traçar a rota no mapa nem fixar a data de abordagem […] Se te disser que a cidade para que tende a minha viagem é descontínua no espaço e no tempo, ora mais dispersa ora mais densa, não acredites que possamos deixar de procurá-la.”
E é nesta viagem que nos formamos, que conhecemos as nossas cidades invisíveis e, em suma, a nossa ordem da alma, o nosso “eu”. É por isso que a cada novo relato e a cada nova cidade, Marco Polo apenas fala da sua cidade, Veneza:
-Falta uma cidade de que nunca falas.
Marco Polo baixou a cabeça.
-Veneza — disse o Kan.
Marco sorriu. — E de qual julgavas que eu te falava? […] Sempre que descrevo uma cidade digo qualquer coisa de Veneza. […]
Apesar de cada cidade parecer diferente, no fim do relato tanto Khan como Polo descobrem que falam apenas de uma única cidade, de um único mundo, que pode ser tanto Veneza para o navegador, como o próprio império para o Khan. Falam também da mesma viagem da qual todos participamos com o mesmo objetivo: não ter como “último local de desembarque” a “cidade infernal” que “numa espiral cada vez mais apertada, nos chupa a corrente”. Para não desembarcar na cidade infernal, temos de ter plena consciência de nós mesmos, das nossas cidades interiores, pois essa é a única forma de contrariar tal espiral que “nos chupa a corrente”. Pois,
O inferno dos vivos não é uma coisa que virá a existir; se houver um, é o que já está aqui […] Há dois modos para não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer, no meio do inferno, quem e que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar.
O inferno é a desordem da alma, da qual muitos escolhem participar ao ponto de nem o reconhecer em si mesmos. É Marco Polo quem salva o imperador dessa desordem da alma, da corrente infernal que o chupa, através das suas viagens interiores onde o imperador pode reconhecer “quem e que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar”. Entremos também nessa viagem.
Texto de João Pinheiro da Silva