Soares dos Reis, um dos principais rostos das belas artes em Portugal
António Soares dos Reis foi um dos principais rostos das belas artes portuguesas. O seu papel emerge como determinante na afirmação da escultura lusitana, tornando-se um dos mais irreverentes artistas da sua geração. Com raízes nortenhas, foram nestas terras que as suas obras ganharam uma aparência de vida quase incomparável. A sensibilidade impregnada nos rostos e volumes desenvolvidos ficou assegurada como um aspeto que concedeu a Soares dos Reis o estatuto de lenda. Para isso, comprova-se toda a influência que se proliferou nos dois lados da foz do Rio Douro, dando nome e arte a cidades com história e encantos de memória.
António Manuel Soares dos Reis nasceu em Mafamude, Vila Nova de Gaia, a 14 de outubro de 1847. Não obstante ser educado de forma austera, acompanhando o seu pai na função de merceeiro, nunca escondeu o seu apetite pela criação e pela inovação, até nos embrulhos dos quais nascem desenhos. À revelia do pai, talhava bonecos em madeira e modelava santinhos de barro que colocava no seu quintal ao Sol para a sua cozedura. Estes foram valorizados pelo seu vizinho e também artista Diogo de Macedo, que, ao lado do também pintor Francisco de Resende, convenceu o progenitor de Soares a que o seu filho se movesse de engenhos e de ideias para então Academia Portuense de Belas Artes. Sob a tutela do mestre João António Correia, concluiu o curso três anos depois, em 1866, colhendo prémios em desenho, arquitetura e escultura. No decorrer desse período letivo, e para ajudar a consolidação da sua formação humana e artística, viveu em Paris e Roma como bolseiro, cidades europeias em eternas convulsões sociais e criativas. Na primeira, foi discípulo do francês Jouffroy frequentou a École Imperiale et Speciale des Beaux Arts, conquistando mais prémios e notabilizando-se entre os seus colegas como o “voleur des prix” (ladrão de prémios), mesmo sem nunca se dar à folia parisiense. Toda esta bagagem valeu-lhe influências proeminentes na sua personalização como autor de esculturas, dando origem a diversas e futuras gratificações à sua pessoa na cidade do Porto, fundamentando a atribuição da bolsa ao artista. No seu regresso, devido à guerra Franco-Prussiana, foi recambiado para Itália, em virtude da extensão do seu período como bolseiro no estrangeiro e para conhecer os grandes clássicos da arte.
Foi em Roma, no ano de 1872, que a conceituada obra O desterrado foi conceptualizada e erigida. Composta por mármore de carrara, um material pitoresco de regiões altas italianas, foi a resposta para uma prova que teve em Itália. Para além da repercussão que teve em terras transalpinas, arrecadou em Madrid a medalha de ouro na Exposição Internacional (1881) e foi enviada à 14ª exposição trienal da Academia Portuense de Belas-Artes. A obra vem destacar aquilo que são as diretrizes que norteiam a criação artística do escultor, tal como o detalhe dos membros, a sua capacidade de exprimir estados de espírito, o jogo com as tonalidades da luz e da sombra e a corrente realista efetivada. Neste caso, o olhar distante transporta em si um saudosismo que se reflete na presença do mar e na inspiração num poema do autor Alexandre Herculano sobre o exílio, incorporando tematicamente uma toada romancista e classicista na sua materialização. Uma curiosidade proveio de um artigo redigido num jornal lisboeta, no qual foi acusado de não ser o verdadeiro autor da obra. Mesmo após ser condecorado com o grau de cavaleiro da Ordem de D.Carlos III, pelo rei Afonso XII de Espanha, a sua credibilidade sofreu tentativas de mácula.
Flor Agreste (1878), de Soares dos Reis
De regresso ao seu país e à cidade do Porto, foi nomeado Académico de Mérito da Academia Portuense de Belas Artes, contando somente 28 anos nessa altura. Depara-se com uma Invicta recentemente industrializada e mais internacionalizada, importando os interesses e os hábitos de fora. Até 1880, foi reforçando o seu pecúlio artístico, produzindo afincadamente e fundando até o Centro Artístico Portuense, núcleo promotor das artes plásticas no país que durou 13 anos. Já em 1881, iniciou a sua atividade como docente na Academia onde se havia formado, permanecendo esta função como uma fonte de rendimento estável e procurando renovar o ensino da escultura a partir da sua experiência e da sua irreverência.
Para além da sua atividade como professor e escultor, colaborou também em algumas revistas de arte, tais como A Arte Portuguesa (1882-84) e Atlantida (1915-1920, colaboração póstuma). A primeira possui a particularidade de ser publicada mensalmente na cidade do Porto e de advogar um novo sistema de ensino. Este assentava na criação de ateliers para o estudo do modelo vivo e palpável, das roupas e a organização de diversas digressões artísticas, para além de um curso especializado no desenho graduado e na modelação. Aqui, colaborou com nomes como os pintores Marques de Oliveira e Henrique Pousão e o historiador e crítico de arte Joaquim de Vasconcelos. Algumas das propostas tornaram-se revolucionárias e até algo controversas, contra um padrão de mentalidades ainda algo arcaico e pouco recetivo à mudança social. A fama que colheu destes tempos espalharam-se, assim, por todo o país, e o seu nome era o primeiro a constar da lista aquando da elaboração de uma obra preponderante. Vários bustos em diversos materiais passaram pelas suas mãos, assim como estátuas, destacando-se a do botânico Avelar Brotero (1887), no Jardim Botânico de Coimbra, e a de Afonso Henriques (1888), na Colina Sagrada em Guimarães.
Estátua de D. Afonso Henriques (1888), de Soares dos Reis
Foi em 1885 que Soares dos Reis se casou e assentou definitivamente após um período de itinerância. A sua esposa seria Amélia de Macedo, com quem teve dois filhos, de nome Fernando e Raquel Soares dos Reis. A morte do artista, porém, ocorreria pouco depois, a 16 de fevereiro de 1889, sem nunca conseguir a tranquilidade familiar desejada e com vários atritos que revelavam as diferenças do casal. Após muito lutar para repor a sua legitimidade criativa, sentiu sintomas de debilidade física e mental, recolhendo-se ao seu recato após sofrer perturbações mentais e de irritabilidade. No seu rasto, ficam propostas de trabalho recusadas e calúnias absorvidas, que lhe pioraram o estado anímico. Foi no seu atelier, situado na cidade que o viu nascer mas que sentia que não o compreendia, que decidiu terminar com a sua vida. Numa das paredes, deixou escrito: “Sou cristão, porém, nestas condições, a vida para mim é insuportável. Peço perdão a quem ofendi injustamente, mas não perdoo a quem me fez mal”. Tinha somente 42 anos e deixava um invejável repertório artístico, conquistando um lugar de proa como um dos principais rostos da cultura portuense da segunda metade do século XIX, época muito conturbada politicamente.
Em sua memória, Porto e Vila Nova de Gaia louvam a importância da sua vida e obra. Na cidade invicta, no ano de 1911, o Museu Portuense foi renomeado Museu Nacional Soares dos Reis, contendo este grande parte do espólio do artista. Trinta e sete anos depois, em 1948, foi uma escola industrial no Porto que tomou os desígnios de Escola de Artes Decorativas de Soares dos Reis, ajustada para Escola Artística de Soares dos Reis após a Revolução dos Cravos. Esta alteração deveu-se à mudança de teor da instituição, tornando-se destinada à formação especializada no ramo artístico. Já em Gaia, situa-se o verdejante Jardim Soares dos Reis, mais especificamente em Mafamude.
Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto
Viajando por temáticas mais religiosas (Cristo Crucificado, de 1877), góticas (São José e São Joaquim, parte da frontaria da capela da família Pestana, no Porto), retratistas (figuras como os políticos Hintze Ribeiro e Fontes Pereira de Melo), Soares dos Reis cobriu toda a extensão humana no seu discurso escultórico. Se a escultura se associa à categoria das belas artes, a muito esta relação se deve ao trabalho desenvolvido pelo gaiense. Todo o processo criativo bastante valorizado em vida e no pós-morte transporta uma carga emocional forte, passando desde a impotência até à imponência. Sem nunca descurar a realidade da figura, em muito definida pelas formas e feitios da mesma, Soares dos Reis tornou-se o rosto primordial da escultura nacional, inspirando gerações de artistas plásticos, literários, cinematográficos e de demais tipos. Emergência de um figurino que, ao sabor das correntes e das mentes, se deu ao mundo e que na demasia de tal efeito se ressentiu. Foi Soares dos Reis, figura estanque como artística lenda mas dinâmica na sucessiva e progressiva senda.