Imagens da revolução do Indielisboa 2019
A contracultura contemporânea, a verificar-se a sua existência, é algo de fronteiras ambíguas. Hoje, a vida quotidiana é tão livre quanto as alternativas inencontráveis. Aquilo a que Debord chamava a “sociedade do espetáculo”, a completa falência de todos os mecanismos de resistência, por todos estarem já previstos e incluídos na abrangente axiomática societal moderna, é aquilo que permite um festival de cinema como o Indielisboa, em parte financiado por fundos públicos e por uma seguradora e à saída de cujas projeções sorridentes jovens vestidos de amarelo distribuem exemplares dos mais recentes sabores de uma marca de barras de cereais, vejamos filmes que, uma e outra vez, nos falam de socialismo e revolução. É também por isso que o Instagram nos vende camisolas de Natal que propõem a tomada dos meios de produção, e por isso também é que visitar a campa de Marx custa cerca de 4€. Convivemos com este facto diariamente e reiterá-lo sistematicamente não o torna nem mais, nem menos verdadeiro, porém, não deixa de ser caricato constatar estes exemplos paradigmáticos.
Não há filmes sem barras de cereais: a Clusters® é o yin para o yang de Godard. A cultura não existe numa bolha, independentemente das resmas de má poesia que se escreva em contrário. Entremos na sala escura e vejamos as revoluções imagéticas, quase imaginárias. Que tem, afinal, esta mercadoria a dizer sobre revolução?
Diretamente dos anos 60, incluído na retrospetiva de Anna Karina, chega-nos Michael Kohlhaas – Der Rebell (1969), um pouco visto, mas muito curioso filme de Volker Schlöndorff, que se viria a tornar menino d’ouro em Cannes. Lançado um mero ano após os fatídicos eventos de Maio, esta obra reconta a história de Michael Kohlhaas, a fim de oferecer uma visão crítica sobre os acontecimentos do ano anterior. Tal como no romance de von Kleist, a faísca que cedo incendiará feudos e cidades é um incidente com uma portagem indevida e um par de cavalos mal tratados. Numa primeira fase, a luta trava-se através do Estado, desbravando a sua selva burocrática, que se revela em si injusta, regida por uma Justiça que, de olhos bem abertos, sabe o quão desregulada está a sua balança. A acumulação de raiva e frustração atingem o pico com a morte da mulher de Michael Kohlhaas. Não mais contendo a sua revolta, do mercador de cavalos advém o rebelde, líder de uma fação de “trabalhadores e estudantes” determinados a fazer cair todo e qualquer tirano. Assim o era e devia ser. O início do fim da revolução anuncia-se quando os métodos violentamente inconvencionais de Kohlhaas trazem até ele desordeiros narcisistas, isentos de qualquer noção de moral e justiça. Destabilizador quanto isto possa ter sido, a estacada final é o retorno à mesa de negociações com o Estado belicista e imperialista, cujo único interesse é a sua própria conservação. Sem surpresas, Kohlhaas acaba sentenciado à pena de morte. Antes do seu último suspiro, não se absteve ele ainda de devolver à Natureza os dois animais que toda a comoção haviam causado. Uma imagem de liberdade, sim, não ardesse a exaltação espiritual ainda vigorosamente na memória. Até que ponto a reação tinha já tornado sua a revolução seria uma aprendizagem gradual. Na verdade, a imagem dos cavalos não passa disso – uma imagem, uma miragem.
De entre a seleção de curtas nacionais apresentadas, muitos títulos poder-se-ia destacar, indicando uma extremamente forte seleção. Por relevância temática, nesta peça não se sublinhará senão um trio.
A Casa, a Verdadeira e a Seguinte, Ainda Está por Fazer (2018), extraordinária viagem internacional sob a forma de filme, anteriormente apresentada nos Encontros Cinematográficos, no Fundão, afirmou-se, imediatamente, como um dos melhores filmes presentes nesta edição do Indielisboa. Por uma alquimia sensorial de imagens e palavras, invoca, talvez da forma mais concreta que o cinema pode, uma ideia de revolução (desde logo sugerida pelo seu título). Com textos de William Morris, Bertold Brecht e outros são ilustradas construções como o Palácio Ideal de Ferdinand Cheval, o Cemitério Alegre e a Casa Vermelha do próprio Morris, cada uma um símbolo de ideais e da concretização desses ideais. Sílvia das Fadas enquadra estas formações com a casualidade de quem deixa as formas falarem por si: planos quase fixos, somente um pouco tremendo, subtis. Este é um filme emocionante, profundamente humanista e inspirador onde a geografia parece ser esquecida: estes lugares-comuns, de tão símbolos serem, quase já nem lugares são. Se na imagem, por um lado, se perde a fisicalidade, por outro, hipócrita e paradoxal, é ela que de igual forma confirma a concretude destes símbolos, a existência do seu referente, recita que a obra nasce, dá a ver a possibilidade.
Jogando com uma semelhante conceção de lugar, mas de um ponto de vista diametralmente oposto, Fordlândia Malaise (2019) é um filme de preocupações bastante distintas. Não deixa, contudo, de ser interessante considerar o contributo que pode trazer a esta conversa. Fordlândia, “lugar suspenso” perdido nos anais da História, é, nesta peça de Susana de Sousa Dias, retratada em duas secções: na primeira, composta maioritariamente por fotografias, é-nos dada a observar o plano distópico de centro industrial no meio da Amazónia; na segunda, em vídeo sem cor, testemunha-se a sua presente existência, território irreconhecível, algures preso entre o que foi e o que era para ter sido. Entre elas, uma gigantesca cratera cronológica correspondente a eventos apenas indiciados pela narração de uma habitante local: uma revolta popular fez ruir o empreendimento imperialista, industrial e capitalista. Se Sílvia das Fadas retratava uma existência presente de uma revolução, a abordagem sobre o antes e o depois de uma revolução de Sousa Dias não menos revela o poder transformativo desta palavra quando tornada ação.
Por fim, uma pequena nota relativa a Estudos de Muybridge e Etc… (2019). Esta breve animação de meia dezena de minutos faz de si uma investigação sobre as origens do cinema: estudos sobre movimento como os de Muybridge, decerto, mas também as condições materiais que tornam o nascimento do filme viável. Sem dinheiro nada se faz, portanto, diz Júlio F. R. Costa, “é necessário soltar o artista do capital”. Curto e doce.
Por falar em doçura, retomemos as nossas barras. Que podemos retirar disto? Tudo? Nada? A ilha Indielisboa em nada parece refletir a realidade e, no entanto, está, olhando para lá dos filmes, tão nela presa como outra coisa qualquer. Nada mais havendo a fazer, resta-nos saborear a ingrata barra de cereais, ir para casa, dormir, acordar e repetir. Seremos todos cavalos sob o olhar de Schlöndorff? Saíremos alguma vez da imagem, do espetáculo? Um dia saberemos. Para o ano há mais.