Almada Negreiros, o modernista autodidata

por Lucas Brandão,    3 Fevereiro, 2017
Almada Negreiros, o modernista autodidata
Almada Negreiros / Ilustração de Marta Nunes – CCA (@martanunesilustra)

Almada Negreiros, essencialmente autodidata (não frequentou qualquer escola de ensino artístico), foi um dos principais artistas no que toca à cultura portuguesa, sem, no entanto, despontar somente pela virtude da sua obra. Também a vastidão de áreas que tiveram o seu cunho é de se salutar, tendo este produzido obras escritas, pinturas e desenhos. Notável futurista, foi contemporâneo de homens como Fernando Pessoa, Amadeo de Souza-Cardoso e emigrou de forma a descobrir o mundo que o rodeava e a consolidar a sua vida artística. O legado que deixa fala por si e perpetua alguém que, sem educação, se fez longa e bela criação.

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Autorretrato (1940)

José Sobral de Almada Negreiros nasceu a 7 de abril de 1883 no arquipélago de São Tomé e Príncipe, nomeadamente na freguesia de Trindade. Ainda numa tenra idade, Negreiros moveu-se com a família para a capital portuguesa, onde foi matriculado no Colégio Jesuíta de Campolide, instituição que frequentou até à implantação da República. Depois de uma pequena passagem pelo Liceu de Coimbra, inscreveu-se na Escola Internacional e de forma simultânea publicou as suas primeiras caricaturas e desenhos na revista “A Sátira”. Começando por expor as suas obras em algumas exposições, a mais marcante foi a de 1913, na Escola Internacional, onde disponibilizou à volta de 90 das suas criações.

No seguimento deste percurso, estabeleceu contacto próximo com o escritor Fernando Pessoa e é convidado a colaborar no primeiro número da revista Orpheu (1915). É aqui que nasce o primeiro registo escrito de vulto de Almada, sendo este o “Manifesto Anti-Dantas” (1915), em que responde acerrimamente às críticas conservadoras do médico e escritor Júlio Dantas quanto à revista vanguardista. Priva também com o casal francês de artistas Delaunay, que então residiam em Vila do Conde, lançando-se também em esboços para bailados e projeções de exposições em grandes cidades europeias. De forma a consolidar o movimento vanguardista emergente e para abrir as portas do futurismo em Portugal, redige alguns manifestos de louvor a artistas como Amadeo de Souza-Cardoso e Santa-Rita Pintor e realiza conferências em espaços como o Teatro da República, agora Teatro São Luiz.

Contudo, as precoces mortes destes dois pintores motivam a emigração de Almada, que se sentiu desamparado na defesa da sua causa artística e combalido após a retoma aos preceitos por parte da comunidade lusa com a Primeira Guerra Mundial. Chegado a Paris, trabalha a sua consciência social e lírica ao mesmo tempo que sobrevive com ofícios como dançarino de cabaret e empregado de armazém. Desapontado com a cidade, o português regressa a Lisboa em 1920 com uma nova abordagem artística.

Mais ponderado e desvinculado do fulgor e furor vanguardistas, Negreiros revela-se mais construtivo e dedicado ao sentimento e ao seu tratamento. Colabora assim com periódicos, como o Diário de Lisboa, onde produz ilustrações, textos e capas, não descartando a via humorística; e também redige o romance “Nome de Guerra” (1925). Atraído pela emergência intelectual da capital espanhola, Almada volta a pegar nas malas e a deslocar-se para uma cidade de renome continental, mais concretamente Madrid. Aqui redige a obra cénica “El Uno, tragédia de la Unidad” e realiza algumas decorações murais, estreitando o seu talento com a dimensão da arquitetura.

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Capa da Ilustração nº 316, de 16 de Fevereiro de 1939 (Edição relativa ao Carnaval)

Ficando por cinco anos em terras madrilenhas, o artista regressa para ficar a Portugal em 1932, e, não obstante a sua afeição à monarquia, revela-se concordante em relação ao nacionalismo vigente, sem, no entanto, defender uma eventual subordinação da arte à política. Em 1934, casa-se com Sarah Afonso e, no ano seguinte, nasce o seu primeiro filho, de nome José. Nesta década, o seu trabalho alcança a plenitude da sua diversidade, escrevendo poesia, ensaios e romances, realizando palestras e colóquios, pintando e desenhando e colaborando em frescos e vitrais em edifícios como o do Diário de Notícias, em Lisboa.

No início da década seguinte, em 1941, o Secretariado da Propaganda Nacional organizou uma exposição denominada “Almada – Trinta Anos de Desenho”, esta que se revela um sucesso e que funciona como um marco no que toca à notoriedade assumida pelo artista. Os convites aumentam exponencialmente e Almada é especialmente requisitado para a pintura de murais e de cenários para peças de teatro. É por este registo que se carateriza o resto da produção artística do português, concedendo algumas entrevistas a órgãos da comunicação social, recebendo vários galardões e chegando até a produzir tapeçarias para exposições em Lausana, na Suíça, e para hotéis em Lisboa. A sua vida finda a 15 de junho de 1970, com 77 anos, partindo no mesmo quarto do Hospital de São Luís dos Franceses em que faleceu Fernando Pessoa 35 anos antes.

“As pessoas que mais admiro são aquelas que melhor divergem da minha pessoa. Claro está, só se diverge de outrem dentro do que nos é comum. Porque há quem nada tenha de comum connosco, nem sequer a própria existência e a mesma humanidade. E não esqueçamos que o espaço e o tempo são aparências por nós fabricadas para dar passo ao espírito e não lenha para nos queimarmos”

Almada Negreiros, in ’Textos de Intervenção’

A sua obra plástica foi tendencialmente marcada pelo polimorfismo e pelo caráter multifacetado que assumiu. O desenho foi a via que evidenciou mais atributos qualitativos, derivando de uma postura inicialmente ingénua e fútil para uma mais consciente e original, afirmando-se pela firmeza e elegância da sua expressão. Despojado de preceitos no que toca à sua criação, destacou-se pela personalização da sua obra no que toca à contundência da linha que desenhava, com esta a ser caraterizada pela sua elasticidade e pelo vigor inerente, sem nunca esquecer o poder dos sombreados e da estilização que estes conferiam.

Numa primeira fase, a curiosidade da linha estilística seguida por Almada Negreiros detém-se com o facto de não se associar ao estilo futurístico, contrariamente ao que escrevia, especialmente durante os tempos em que fez parte da revista Orpheu. Isto salvo raras exceções, em que se pode detetar alguma influência cubista. No entanto, isto muda mal se muda para Paris e contacta com a galopante onda de criação artística. O neoclassicismo empreendido inicialmente por Pablo Picasso foi uma influência, assim como as deformações empregues por este e a conjugação dos contrastes apoiados por planos e suas linhas.

A pintura que conferia aos seus desenhos era somente consolidativa, sendo o enfoque da obra colocada no desenho e na estrutura em que este se dispunha. Este aspeto foi sendo melhorando paulatinamente enquanto contactava com outros artistas plásticos durante as várias décadas em que viveu. Apesar da sua autonomia artística, Almada sentia-se atraído pelas emergentes correntes de valores cosmopolitas e libertinos e concedeu maior flexibilidade e abertura à sua produção.

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Retrato de Fernando Pessoa (1964)

No que toca à intervenção arquitetónica, o luso assume uma mera condição de decorador em espaços pré-definidos, sem, contudo, passar discreto nos seus toques. A alma que suscitava nestes acabava por transcender a estrutura física e acabava adaptada ao contexto no qual se inseria a reprodução pictórica. No que toca aos murais, uma das suas maiores produções foi o conjunto de painéis da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos. Este acaba por sintetizar a atividade plástica do artista, fundindo o registo tradicional com a audácia fragmentativa cubista, sem nunca descurar o reuso de objetos de obras precedentes e o reforço da teatralidade da ação representada.

Outras duas de menção são o “Retrato de Fernando Pessoa”(1964) e o painel em pedra “Começar” (1968-69), situando-se no átrio da entrada do edifício-sede da Fundação Calouste Gulbenkian. Enquanto que na primeira reúne a formalidade tradicional das correntes artísticas habituais, na segunda, a geometria cubista e as reminiscências futuristas acasalam e dão origem a um mural vasto em quantidade e em orientação artística, visitando perspetivas históricas que são componentes fundamentais da História da Arte.


Estudo para os painéis da Gare Rocha Conde de Óbidos (1943-45)

Na literatura, para além do caráter satírico e crítico aludido acima dos manifestos redigidos, Negreiros segue numa linha dicotómica e estreita que conjuga o simbolismo e o discurso direto, estando esta orientação produtiva associada a todos os tipos de criação literária que desenvolveu. A imaginação fértil que colocou ao serviço do desenho também é verificável na sua literatura, nomeadamente nas novelas que escreveu, como “A Engomadeira” e “Saltimbancos”.

Para além da crítica dos manifestos, o português exortava em conferências para a necessidade de construir um futuro sustentado e de recriar a pátria portuguesa, esta que, segundo ele, se encontrava preso numa saudade decadente e “a dormir desde Camões”. Esta robustez, irreverência e pungência discursiva eram os métodos transgressivos pelos quais o autor gostava de se libertar da cela em que se sentia confinado. Tal como referido acima, após emigrar e retornar, Almada atenuou o seu caráter desmesurado e amadureceu o seu registo, tomando consciência da seriedade da prosa poética.

Em “Nome de Guerra”, tenta reavivar a inocência de outrora e manter a alegria como força catalisadora da sua obra e vida. Outra obra de pendor reflexivo foi “El Uno, tragédia de la Unidad”, em que inicia um processo de especulação onde tenta comungar as dimensões individual e coletiva da sociedade, defendendo a relação sistémica entre os vários intervenientes. No teatro, o ênfase recai não só na rutura com o naturalismo nem com a dimensão tangível do teatro mas também com a disseminação dos efeitos provocados e consequentes da representação. Nesta difusão, salientam-se o registo das pinturas cénicas, as poses das personagens e dos desenhos complementares e os gestos envolventes na interpretação dramática.

Canção da Saudade

“Se eu fosse cego amava toda a gente.

Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu amo a minha irmã gemea que nasceu sem vida, e amo-a a fantazia-la viva na minha edade.

Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives, dize onde móras, dize se vives ou se já nasceste.

Eu amo aquella mão branca dependurada da amurada da galé que partia em busca de outras galés perdidas em mares longissimos.

Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por entre as gentes apressadas.

Eu amo aquellas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas.

Eu amo os cemiterios – as lágens são espessas vidraças transparentes, e eu vejo deitadas em leitos florídos virgens núas, mulheres bellas rindo-se para mim.

Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos. Eu amo a lua do lado que eu nunca vi.

Se eu fosse cego amava toda a gente.”

Almada Negreiros, in ‘Frisos – Revista Orpheu nº1’

Elemento único da cultura portuguesa, Almada Negreiros transcendeu a mera condição de artista. Não se tratou somente de um criador mas sim da própria arte. Tanto na pintura como na literatura como no desenho como no intervencionismo arquitetónico Almada chegou sempre mais longe. Não lhe bastou ser um mero desenhador ou autor. Teve de ser mais do que isso. Almada quis o mundo e ainda quis mais. Almada quis representar o que ia para além do olho e do corpo, o que ia para além de si mas que só o próprio conhecia. Almada quis ser arte. Almada foi arte. É a partir destes que se ama a verdadeira e sentida arte.

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“Começar”, 1968/1969, desenho inciso na parede do átrio de entrada da Fundação Calouste Gulbenkian -França, José Augusto (1974), Almada o Português sem Mestre. Lisboa: Estúdios Cor

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