Dinheiro como caminho para a insanidade
Desde tempos mitológicos, inúmeros impérios caíram graças ao amor, nem os deuses do Olimpo conseguiram fugir desta batalha tão humana. No entanto, hoje em dia, é a fortuna – tanto impalpável, mas presente como o amor – que pode levar qualquer um de nós à insanidade. Atire a primeira pedra aquele que vir uma nota de 50 euros no chão e não vá a correr para apanhá-la, enquanto a adrenalina lhe percorre as veias. Num instante, perdemos toda a racionalidade. Por isso, faço a seguinte questão: o momento em que adquirimos riqueza define as decisões que tomamos? Diria que sim. Há uma diferença bastante substancial entre nascermos ricos e criarmos riqueza ao longo da nossa vida adulta. Essa disparidade poderia traduzir-se numa procura de felicidade e de conforto, logo no início das nossas vidas, numa forma completamente diferente de olhar para a vida e o nosso papel no mundo.
Para quem nasce pobre, a maioria das suas decisões na vida vão em direcção à angariação de mais riqueza, ou seja, de dinheiro. Esta é uma decisão racional, porque, em teoria, mais dinheiro significa melhor qualidade de vida. Assim, passamos a maior parte do nosso tempo acordados atrás de um equilíbrio, que poderá nunca ser alcançado, já que depende mais de factores exteriores a nós do que propriamente das nossas capacidades, tanto físicas como intelectuais ou ainda psicológicas. Porém, o que aconteceria se essa mesma pessoa nascesse rica? Ela diria, à partida, que o seu percurso de vida seria substancialmente diferente; ao invés de procurar dinheiro, teria procurado felicidade. E essa felicidade – indo, naturalmente, para além de questões superficiais como objectos e posses (também podemos discutir em que se traduz realmente a felicidade) – poderia significar, por exemplo, escolher um percurso académico diferente, em vez de escolher o curso com maior empregabilidade ou que poderá propiciar maiores rendimentos. Por outras palavras, em vez de seguir o padrão habitual que a sociedade nos ensina – olhar para o seu futuro da forma mais fria e racional possível-, escolheria uma vida em que os seus gostos não se limitariam em ser meros hobbies, como costumamos fazer, infelizmente.
De uma perspectiva genética, estamos codificados para olhar o planeta de uma forma expansionista. E isso é visível ao longo da história: conquistámos outros territórios e tentámos mudar a cultura numa determinada região impondo a nossa, supostamente superior. Isto é importante referenciar e, acima de tudo, explorar, porque vai no mesmo sentido do pensamento puramente capitalista “riqueza cria mais riqueza”. Aliás, esta última ideologia tem, na sua raiz, um sentimento esquizofrénico. Este desejo doentio não se limita a ficar num patamar em que a pessoa se contenta com o necessário, para criar uma vida de relativo conforto tanto para si como para os que o rodeiam. Assim, o capitalismo refina ainda mais um desejo de conquista e coloco-o como a principal figura na nossa sociedade. A maioria de nós já não consegue sequer conceber uma vida sem capitalismo, já que este pode ser traduzido da seguinte forma: uma ideia, ao ser transformada num produto, com o passar do tempo, fica cada vez mais barato, sendo possível chegar às mãos até daqueles que são pobres; e assim, há a convicção de existir uma certa democracia .
Os novos ricos (segundo os valores da Forbes), com mais dinheiro do que o PIB de alguns países pequenos, distinguem-se pelo facto de não quererem pertencer a uma (ou somente a uma) elite com base na riqueza. Por outras palavras, a ideia de elite burguesa rica que preserva a arte maior, como era a ópera há séculos atrás, e que gosta de grandes banquetes para socializar, desvanece-se a uma velocidade sem precedentes. Precisam, sim, de controlar o mundo, ou seja, controlar-nos. Por isso, já não são diamantes, barras de ouro ou notas de papel que nos distinguem realmente, mas sim um desejo assente na fantasia de controlo. E isto estende-se à forma como percepcionamos o mundo, desde a informação, através dos meios de comunicação, até ao futuro da humanidade e a sua presença no espaço sideral. Entre uma coisa e outra entretêm-nos com a selva que são as redes sociais.
Pessoas como Musk ou Bezos constroem foguetões para colonizarmos Marte. Mas até que ponto vale a pena investir tanto dinheiro quando antes de conseguirmos navegar à velocidade da luz ou construir um habitat num planeta inóspito o nosso planeta, provavelmente, já se terá extinguido? Há um lado megalomaníaco nesta obsessão de controlar um outro planeta, serem os reis de uma nova sociedade que eles controlam, o que, na realidade, é um sentimento dos primórdios das civilizações.
Hoje em dia, existe uma enorme diversidade na forma como é possível criar riqueza, como é o caso daquela que é produzida através da atenção. Quanto mais forte a nossa imagem e a atenção que advir daí, mais a sociedade está disposta em nos dar dinheiro, sendo o caso das celebridades o melhor exemplo para discutir este aspecto. Elas vivem no limbo entre a realidade e a fantasia, um jogo de personagens e de drama e isso faz-nos libertar das dores do quotidiano. Aliás, elas não estão, na verdade, a vender a sua imagem, mas a imagem que nós queremos. Por outras palavras, a personagem que elas criam nunca esteve dependente delas mesmas, elas não controlam este jogo e isso faz com que, no fundo, sejam peões dos nossos desejos ou dos desejos que alguém nas sombras nos impôs sem nós nos apercebermos. Desta forma, a maioria de nós paga para ver outras a serem o que nós queríamos ser ou a viver uma vida que queríamos ter. Assim, aos poucos e poucos estamos a afastar-nos da criação de um produto físico, palpável e facilmente descritível; estamos a diversificar o conceito de produto válido no mercado e a apostar cada vez mais no capital individual de um determinado e restrito número de personagens. E isso é assustador.
Talvez as únicas pessoas verdadeiramente sãs (diria melhor, as mais sãs dentro de uma hipotética escala de sanidade criada por nós mesmos, irónico) sejam aquelas que acabam por nunca obter o que desejam e, assim, a sua luta é constante ao longo da sua vida. No momento em que tocarmos na pepita de ouro desistimos de tudo, vivemos unicamente para encontrar a segunda pepita e assim por diante. No fundo, nós nunca quisemos uma pepita de ouro ou até a segunda no mero sentido de número; quisemos, sim, conseguir alcançar o sentimento de plena satisfação da posse do objecto, porque ele só vale o que nós quisermos que valha. E é exactamente por isso que o custo de um diamante vale tanto, mesmo não tendo nenhuma utilidade prática para além de nos maravilhar. Assim, esta disparidade entre valor e utilidade das coisas mostra a nossa loucura na plenitude.
A revista Electra é um projeto da Fundação EDP lançado em março de 2018. É uma revista trimestral de pensamento e de crítica, conta exclusivamente com trabalhos originais de pensadores nacionais e estrangeiros. É editada em português e em inglês. A revista é vendida nas bancas, em livrarias, na loja do MAAT e online (aqui).