Bienal anozero de Coimbra – A Terceira Margem
Não faz sentido algum que seja a arte a voltar à cidade. A cidade é a polis onde todas as atividades de um grupo de cidadãos (biopoliticus) – incluindo as estéticas – estão representadas. Pode ser assim que algumas culturas se auto-referem, outras de dois em dois anos. Mas depois de em 2017 terem curado para reparar e tendo criado o que já existia, este ano conheceremos a “terceira margem” do rio Mondego.
“Há algo de poético numa cidade entrecortada por um rio, como o Mondego fluindo imperturbável por entre as margens, a partir das quais se esparrama Coimbra. O rio é a imagem da continuidade e da impermanência, o seu tempo tangencia o infinito. (…) As nossas existências (…) são o sumo da descontinuidade (…)”; é esta a justificação da escolha pela curadoria do conto de 1962 do grande escritor brasileiro João Guimarães Rosa. Mas a principal justificação é na verdade, a Poesia, no sentido etimológico do termo que significa criação. A terceira margem “(…) é a que não está, que vive em suspensão: é a margem formada pela linha entrecortada da vida humana…”. A arte este ano também vem armada de Literatura.
Poderá ser só a Literatura, como cabalmente tem sido, a descrever Coimbra por aquilo que ela realmente é?
Para o curador da bienal Agnaldo Farias, professor de arquitetura na Universidade de São Paulo sendo também crítico de arte e curador com bastante experiência internacional, “toda a arte é política” porque “é importante preservar o espaço da inquietação, da pergunta, sobretudo numa cidade da Ciência”. E é também a curadora-adjunta, Lígia Afonso, que na conferência de apresentação da anozero confessa que a Literatura move o pensamento de Agnaldo, reconfortando-nos com a confirmação. Para ele, a sua equipa está a ser inspiradora pela dedicação, só porque tentou, como sempre, se associar com pessoas melhores que ele.
E nesta margem que é a nossa, da descontinuidade continuada, foi claro o risco que se queria assumir ao instigar artistas jovens, inexperientes, a participar na bienal através de obras comissionadas a eles/as: para que as gerações vindouras reconheçam que o espaço que vai ser momentaneamente (de 2 de Novembro a 29 de Dezembro) ressuscitado, só o será por conta “da inquietude dos espíritos daqueles que a construíram, e também da ousadia daqueles que hoje seguem a construí-la”, podemos ler no manifesto da equipa curadora de quem também faz parte Nuno de Brito Rocha, historiador de arte radicado em Berlim. Já Lígia Afonso, que assim completa o trio, é investigadora do Instituto da História da Arte da FCSH-UNL. Os dois são também jovens artistas e académicos que contactaram com Agnaldo no passado e assim ele os elegeu para que juntos consigam expandir o papel da literatura “como estratégia de reforço da natureza multidisciplinar da cultura”, acima de tudo porque esse conto perfaz uma analogia perfeita com os tempos incertos que hoje vivemos, a “situação de suspensão generalizada”; esta pode ser uma terceira margem.
Já Carlos Antunes, figura sempre central na total coordenação do(s) evento(s) – porque esta bienal, mais do que as anteriores, irá ser múltipla – afirma que o material central é a cidade. Serão 9 espaços utilizados mais 1 – a própria cidade. Será que um mês e meio de ativação da alma, a parte humana recetora dos estímulos estéticos, que combate a anomia ou anestesia social, (em Latim, aesthesis é o oposto de anaesthesis) o suficiente? Qual é a ambição de um evento como a bienal de Coimbra? Basta apenas e por si só ser um anti-evento, para que seja feita uma “reflexão continuada” sobre o que nos rodeia e os outros que nos habitam, afirmou o diretor do Centro de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC) e professor na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Coimbra.
Pensamento partilhado pela curadoria tripla:
“(Arte contemporânea …) Que ela aconteça numa cidade como Coimbra serve como antídoto para sua consagração como património da humanidade, porquanto isso pode sugerir aos desavidados que ela parou. Antes pelo contrário.”
Por isso dentro da cidade os espaços a ser explorados são alguns dos já utilizados – Mosteiro Stª Clara-a-Nova, Sala da Cidade, CAPC Sereia e Sede e o Colégio das Artes; os destaques das novidades para novo “usufruto” municipal é o Cine-Teatro Avenida e o Jardim da Manga, que contará com uma instalação sonora que envolverá toda a estrutura barroca. O Museu da Ciência, Edifício Chiado fecham a lista de espaços da exposição poli-localizada.
Quanto aos 39 de 21 países, dos inicialmente 100, que foram convidados com um convite para ler o conto que subtitula esta bienal estão divididos entre “trabalhos” e “artistas”, porque foi esta a base de decisão da equipa da exibição que assim selecionariam os mais variados e melhores artistas/obras. Uma artista foi Leão de Ouro (Alexandra Pirici) em Veneza e Steve McQueen, que participará com uma curta-metragem obteve um Óscar. São no total 20 as obras comissionadas e 19 do grupo são mulheres. Lígia afirmou que “este é o lugar da oportunidade” sobretudo para os que ainda não tiveram reais oportunidades; já Agnaldo responde como ele mesmo: “não se sabe quanta precisão existe naquilo que se constrói enigmático”. Oxalá os visitantes resolvam algum dos enigmas.
Como é apanágio, as exposições físicas compõem apenas uma parte do todo. Como referido acima o Avenida exibirá filmes novamente. O edifício Chiado irá estar aberto a todos. Mas mais que isso. Há um programa de activação educativo em parceria com o Mestrado de Estudos Curatoriais; Agnaldo Farias reside na Casa da Escrita e é professor-convidado da Faculdade de Arquitetura com uma série de palestras durante o semestre; Tomás Cunha Ferreira terá uma exposição no CAPC-Sede de poesia visual; será composto um livro pelos participantes bem como de outros ensaístas num livro que “foge ao formato habitual”; outras palestras e concertos e atividades “secundárias” acontecerão de início de Novembro, a começar este sábado dia 2 até final de Dezembro – visitas-percursos, leituras, aulas abertas, oficinas, etc.
Serão muitas as questões que tentaremos compreender, no momento da nossa visita, as que colocaremos e as que foram colocadas por esta tríade curatorial sem contar com a mensagem da arte que passa ao visitante. De que forma se pensa a cidade? Qual é o papel da Arte? Houve mais perguntas ou até nem foram estas as que Lígia tão fogosamente nos elencou na conferência de imprensa; tantas delas parecem essenciais e quase nunca indagadas! Será consolador saber que eles assim o pensam? Ou será que por assim (nos) perguntarem, o alerta deveria ser outro? De qualquer das formas, sentimos a seriedade assumida pela equipa. Como quem sabe perfeitamente qual é a responsabilidade do intelectual (cf. Noam Chomsky) ou do artista, de que falava James Baldwin.
É por isso que, concomitantemente, terá de ser feita uma reclamação do local vis-à-vis o global. Coimbra é uma realidade incomparável a qualquer par europeu ou global, e toda a equipa da bienal sabe disso! Carlos Antunes afirma-o sem medo, reclamando para nós o património que é parte integrante de todos. É assim que todos nos relacionamos connosco próprios e com outros, pelo meio da Cultura. Em Coimbra parece que ela tem uma presença invisível como já referi durante 730 dias, ou seja, só existe arte de 2 em 2 anos. Mas e a arte que vem d’A poesia do Pensamento que, durante todo esse período, ou mesmo períodos anteriores está sempre ou a dançar com a cidade, ou a pensar na cidade como pensar com a cidade. É este e sempre será o mérito desta iniciativa, desta maestranza desenvolvida pela equipa em conjunto com os curadores e curadora.
Tal qual José Gil referiu no FOLIO em Óbidos, alguns dias depois da apresentação da bienal:
“Como nos podemos infinitizar sem nos perdermos? A Arte é a possibilidade de irmos longe sem nos de-territorializar.”
Só assim poderemos encontrar a terceira margem, se conhecermos o ponto de partida. Cuja nascente é hoje o Mondego, mas que amanhã poderá já ser outro esquisso. Na terceira margem existe lugar para a memória.