Entrevista. O mundo trágico e cómico de “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas”
No dia 21 de Novembro, estreia nos cinemas portugueses Tristeza e Alegria na Vida das Girafas. Protagonizado por Maria Abreu e Tónan Quito, e realizado por Tiago Guedes, o filme é a segunda vida de um texto originalmente pensado para o teatro pela mão do Tiago Rodrigues. O que à partida parece um encantador filme de uma criança que parte à aventura com o seu amigo imaginário, torna-se num tumulto de ideias, nostalgias e introspecções que vão muito além da aparente ingenuidade infantil.
Rodado em apenas 3 semanas, o filme tem sensivelmente as mesmas cenas que a peça de teatro que lhe deu origem, o plano sai do palco do teatro para ter como palco a cidade de Lisboa, e os mesmos actores, à excepção da protagonista (agora Maria Abreu, que interpreta a Girafa) e de uma ou outra personagem, passaram também para a longa-metragem. Para Tónan Quito, que interpreta Judy Garland – ou o amigo imaginário da Girafa, o que difere em escala entre o teatro e o cinema não difere substancialmente no trabalho do actor, tendo-se uma maior ou menor proximidade com o encenador/realizador. Não foi também a primeira vez que Tónan Quito e Maria Abreu trabalharam juntos, o que terá proporcionado a empatia com que os dois interpretam um urso de peluche deprimido e frustrado e a sua dona, respectivamente.
A grande aventura que Judy Garland e a Girafa vivem como acto de revolta a uma discussão da Girafa com o pai, começa numa enérgica interpretação de Gloria (Patti Smith) na casa de banho e termina na morte de Judy Garland. Esta não é uma história feliz mas, para Tónan Quito, “é uma aventura e todos nós gostamos de aventuras, de seguir a miúda e o urso num roadmovie até ela chegar a casa e matar o urso e abraçar-se ao pai, e nós percebermos que ela percebe o pai e o pai percebe a miúda, já não há espaço para figuras imaginárias.” É também por isto que, para o actor, “os adultos deveriam ver o filme, para perceberem também a relação que nós temos com as crianças, com os nossos filhos e com o mundo à nossa volta, com as nossas incapacidades e frustrações e até que ponto não passamos essas incapacidades e frustrações para outros.”
É possível observarmos várias fases da vida normal, de um cidadão normal, neste filme. As transições nem sempre são observadas, mas à distância existem. Neste sentido, quando perguntamos a Maria Abreu se ela ainda achava que o mundo dos adultos era um emaranhado de confusões, Maria responde “acho que o mundo dos adultos é um emaranhado de confusões, sim. Quando era criança, muito mais criança, dizia que o mundo dos adultos era muito mais fácil do que o nosso, mas hoje em dia digo o contrário. Digo que quando se é mais novo não se tem a noção da quantidade de maldade que existe perante nós. Mas diria que o mundo dos adultos tem muita confusão, tem coisas boas, tem coisas más. Tem problemas, tem soluções, tem isso tudo.” Maria descreveria este filme a um dos colegas de escola como “um filme onde a personagem que eu faço, que é a Girafa, tem um perda de um pai, neste caso a mãe, e que é a forma de ela lidar com aquilo, mas com o seu eu interior, naquele momento, ou seja, com a Judy Garland, que é uma personagem imaginária e alguém que está sempre com ela e que a acompanha numa aventura enorme por Lisboa. No final, ela percebe tudo o que ia naquele mundo, durante o filme. Agora não vou estar a dar spoilers.”
Com spoilers ou não, a perda da infância e a entrada na adolescência, a constatação das perdas e a percepção de uma realidade menos fantasiosa compõem subtilmente o impacto violento que esta história nos traz. Para Tónan Quito, “todos nós gostaríamos de voltar a esse tempo onde as coisas poderiam ser mais inconsequentes, ou sabíamos que se nos portássemos bem teríamos um reforço positivo ou se nos portássemos mal tínhamos um castigo. Quando crescemos também é assim. Mas naquela altura parece que há mais permissão para as crianças poderem falhar do que os adultos têm, temos pouca margem para errarmos, ou para experimentar e falhar, sem que alguém nos cubra ou tenha consequências algo graves. Crescer é isso mesmo, errar, tentar, errar, tentar. Como diz o Beckett, falhar melhor. As pessoas podem ver uma personagem como a Judy Garland e dizer que é fantástico porque pode dizer aquilo que já não podem dizer, por isso por vezes perdemos a capacidade ou da espontaneidade ou não nos é permitido não termos filtros; temos de estar filtrados conforme a situação que estamos a viver e não dizer a primeira coisa que nos vem à cabeça, para o bem ou para o mal, porque isso tem uma consequência. O que acontece é que por vezes não sabemos como agir, ficamos incapacitados de agir na nossa própria realidade, então deixamos passar a vida por nós.”
A experiência e a amargura, ainda que ficcionadas, com os altos e baixos de uma vida adulta, são-nos confrontadas na cena em que Miguel Guilherme, cuja personagem é simplesmente apelidada de “Velho”, diz à Girafa “Se puderes, não cresças”. Para a actriz, “é verdade que o crescer traz muito peso e traz uma diferença enorme, mas se não crescêssemos também não seríamos as pessoas que somos. Há gente que piora e há gente que melhora, mas acho que me abriu muito mais ao mundo real, porque se não continuava sempre num mundo fechado e não se pode viver nesse mundo para sempre.”
Se para Tónan Quito, passar 3 semanas em filmagens com um pesadíssimo fato de pelúcia da personagem que encarna foi duro, para Maria Abreu decorar as intrincadas falas não terá sido menos penoso. Mas a actriz, agora com 14 anos, não teve quaisquer problemas em superar a dificuldade e o peso, quer físico quer psicológico, de gravar um filme em 3 semanas. Maria Abreu, que é filha de Tiago Guedes, encarou o trabalho com o pai-realizador com um “maior à-vontade do que teria se trabalhasse com alguém diferente, sendo este o meu primeiro filme. Sempre se disse que haveria a diferença em pai e realizador, que o realizador era lá e o que me dissesse seria sempre como realizador e não como pai. Mas senti sempre que havia um lado de pai, porque era um apoio grande e estava sempre a fazer as coisas pelo meu melhor e pelo melhor do filme.” Para Tiago Guedes, trabalhar com a filha foi inicialmente encarado com algum medo, pela facilidade em como os dois factores poderão tornar-se algo conflituosos, mas, pela tranquilidade que o processo todo decorreu, cedo começou a tratar Maria Abreu como qualquer um dos outros actores.
Tiago Guedes divide-se entre o teatro e o cinema, firmando-se nos dois mundos com reconhecido mérito. Este ano já apresentou “A Herdade”, distinguido com o Prémio da Crítica Bisato d’Oro do Festival Internacional de Veneza, e agora apresenta a “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas.” Depois de ver a peça, da responsabilidade de Tiago Rodrigues, pegou no seu emaranhado de personagens que envolvem uma criança, um urso de peluche que fala e um cariz altamente existencialista que permeia toda a peça. Esta vertente existencialista fez com que Tiago Guedes quisesse “fazer um filme agridoce. Queria que tivesse vários momentos de humor, mas por isso quis que reforçasse também os momentos mais trágicos, mais profundos e dolorosos.”
O filme conta também com música de Manel Cruz, também devido ao facto de a ideia de fazer o filme “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” nascer “da peça e nasce de Foge Bandido [projecto de Manel Cruz], que andava a ouvir muito na altura. Vi a peça e pensei no Manel. Sempre considerei o filme com o Manel, para mim foi desde cedo uma parte fundamental do filme. Não é só o universo sonoro mas também o universo dramático das letras que ajuda na construção de muitos momentos do filme.”
Uma das personagens do filme é Anton Tchékhov, escritor/ensaísta russo. Nabokov disse um dia que o mundo para Tchékhov “é cómico e triste ao mesmo tempo, e sem repararmos na sua comicidade, não compreendemos a sua tristeza, porque são inseparáveis”. É sobre esta dualidade que Tristeza e Alegria na Vida das Girafas gira, assim como as nossas vidas.