“O Irlandês”, de Martin Scorsese: a vontade de fazer algo grandioso, de deixar uma marca definitiva
Eis finalmente o momento em que recebemos O Irlandês, o novo filme de Martin Scorsese, só que em vez do ecrã de cinema as suas 3 horas e meia serão apenas vistas em Portugal na televisão, tablet, laptop ou smartphone. Paradoxalmente, é este o sinal dos tempos para os novos “goodfellas” que afinal de contas são “oldfellas”. Talvez por isso, O Irlandês tenha feito lembrar o recentíssimo (e pouco amado) O Traidor, do italiano veterano Marco Bellocchio. Na verdade, as comparações até serão bem-vindas, embora a maior inspiração de Scorsese seja mesmo a sua.
Mesmo sem embandeirarmos em arco e apregoar The Irishman como a nova obra-prima do cinema – que não é, falta-lhe o golpe de asa de Os Bons Rapazes, a que alguma falta de imaginação do guião de Steve Zaillian não ajuda – ainda assim olhamos para este fresco do maestro Scorsese como a vontade de fazer algo grandioso, de deixar uma marca definitiva. Pela ambição, o arrojo, a magnitude, bem como pela duração, dir-se-ia que Marty tentou conceber a sua Capela Cistina ou, pelo menos, a sua Última Ceia, no sentido de imortalizar uma certa monumentalidade de personagens que marcaram o renascimento da gesta “americana” surgida depois do pós-guerra.
De facto, parece-nos que esse statement terá estado na mente de Scorsese. Dedicar este épico à galeria de ícones (alguns serão mesmo santos!) e personagens, mas personagens que são acima de tudo os protagonistas. Incontornáveis a essa mesa Robert De Niro e Joe Pesci, que contracenaram em Tudo Bons Rapazes há quase três décadas, e em Casino, cinco anos depois. A concretizar uma digna trilogia de época dos velhos bons rapazes com O Irlandês. Em que De Niro, mais do que Pesci, conseguiu a proeza de refletir ao longo da sua carreira uma alma simples por detrás de um rol de mais vilões que heróis marcantes. De uma forma mais exuberante Al Pacino (parceiro de De Niro em O Padrinho II e III) ou sempre mais discreto Harvey Keitel – ele foi um “Cavaleiro do Asfalto”, na estreia de Scorsese, para além do estatuto de Taxi Driver (mais um De Niro) e também, claro, Tudo Bons Rapazes. Naturalmente, Scorsese será sempre o elemento por detrás do gangue, já que a sua carreira foi construída por essa gente que “pinta paredes” como se lê no feliz título do livro de Charles Brandt que inspira o filme e se baseia na vida do “bom rapaz” Frank Sheeran que à hora da morte decide “confessar-se” e assumir a morte de Jimmy Hoffa, dando assim solução a um dos mais intrigantes mitos americanos.
Ainda assim, O Irlandês tem dificuldades em libertar-se de um incontornável paradoxo. Ou seja, o de prescindir a fruição por parte do grande público desta sua obra ambiciosa nas salas de cinema – o filme foi recentemente exibido em diversos festivais e, na passada segunda-feira, em Lisboa, numa sessão especial para a imprensa –, limitando-se agora à experiência facilitada pela Netflix, ou seja, na televisão, num tablet ou num telemóvel. Se por um lado, beneficiou da “total liberdade”, em alternativa às exigências da Paramount, em grande parte para garantir o corpo dos atores ao longo desta narrativa de mais de meio século, abriu mão da teimosia do cinema em sala para fazer “o seu filme”.
Percebe-se o dilema (e até a mágoa), sobretudo vinda de um cineasta cinéfilo como Scorsese, de imortalizar uma geração que espelha as mais geniais criações neste género que nos embalou a pintar personagens macabras que se descrevem em voz off e nos encantam em fundos musicais de época. Se bem que o gesto de manter os seus ‘bons rapazes’ em todos os momentos da narrativa, em vez de próteses, embora com correções digitais e perucas, algumas delas algo risíveis, sublinha precisamente o ritual estético que desejou aqui imprimir. De resto bem patente nos desacertos corporais e nas expressões de vitalidade forçada a atores que estão mais perto dos 80 do que dos 70. É precisamente à medida em que o filme vai avançando e a caracterização de vai tornando cada vez mais real – digamos num processo inversos ao sofrido por Brad Pitt em O Estranho Caso de Benjamin Button. Isto até culminar na derradeira parte do filme em que o ambiente se torna mais escuro e soturno e onde o filme verdadeiramente se encontra com o seu autor.
Naturalmente, O Irlandês será o filme obrigatório nas listas dos melhores do ano, dos Óscares, mesmo que a esmagadora maioria não o veja no cinema e até supere este estranho feitiço do tempo. Seja como for, de pé estarão sempre os códigos de honra com a simplicidade de quem diz “It is what it is!”, ou seja “É o que é!”. O Irlandês é isso tudo.
Crítica de Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt.