Um apontamento sobre “Onironauta”, de Tânia Carvalho
Um (feliz) acaso laboral ditou que estivesse em Marselha na data em que a artista portuguesa Tânia Carvalho estreou mundialmente “Onironauta”. De outro modo teria perdido uma criação invulgarmente assertiva e por demais equilibrada. Ela seguirá, desta feita, para a capital portuguesa para figurar por 4 (!!!) datas no auditório principal da Culturgest (de 30 de Janeiro a 2 de Fevereiro).
Apesar de a conhecermos sobretudo como coreógrafa, esta peça reafirma a sina de Tânia Carvalho como artista total, incapaz de separar os mundos da concepção e da execução artística. E é talvez a partir daqui, na verdade, que tudo se desdobra. Podemos ler o espectáculo como resultado de uma vivência metódica e persistente do mundo dos sonhos, como a canção-dança onde são reunidos e ordenados os despojos do combate por uma permanência necessariamente dolorosa (mas salvífica) nesse mundo onírico. A artista mostra-nos o que decorre dessa permanência, que parte do compromisso para com uma navegação interior afirmada como necessidade. Esta perspectiva constitui, acima de tudo, um importante lembrete de uma duração – a da vida do sonho – e das possibilidades que ela nos oferece para a edificação de um domínio necessariamente privado e solitário. E é a ele que a peça nos incita a aceder, ao contacto com um crescente grau de separação do nosso corpo enquanto invólucro degenerescente, enclausurado na sua vigília.
Neste espectáculo encontramos a artista ao piano, profundamente espelhada: mesmo antes da sua real entrada em palco ela já lá está, a tocar para o público até que este sossegue. Frente a frente, ambos ao piano, artista e seu duplo exibem longuíssimos vestidos primos, tão sedosos quanto coloridos. Sugerem, desde logo, nesse espelhamento, aquele que vai ser o trabalho essencial dos 7 bailarinos. Ele transporta-nos para movimentos de descoberta e para o aprofundar da relação com as possibilidades de criação (e de destruição) oferecidas pelo mundo onírico aquando do abraçar de uma resoluta navegação. Inaugura-se, assim, um espaço-tempo outro que convida à inteira revisão do corpo através de uma violenta (mas levíssima) dissolução das suas formas, mesmo dos traços que ainda afirmam masculinidade ou feminilidade nos corpos dançantes, rumo a um ideal de indistinção, a um horizonte andrógino. Mas trata-se da afirmação de uma indistinção que não se esgota em si mesma e consegue fazer reflorescer uma diferença que só pode ser vista com os olhos que aprendemos a abrir: uma diferença renascida apenas como evidência, já liberta da canga do julgamento.
A coreografia está profundamente assente em princípios de repetição e espelhamento, embora pareça sempre resguardar-se no resíduo de um importante desfasamento (talvez aquele que permite o reflorescer dessa diferença despida de todo o terror): os bailarinos mostram-nos séries de sucessivos movimentos refractados, ora em duo, trio ou quarteto, ora em formação de conjunto. O ambiente é transformado numa féerie animalesca, na pintura em movimento que sobra da navegação nesse alhures que só os sonhos permitem. É através das repetições sucessivas de sublimes espelhamentos que ele nos convida a aderir a uma delicada demolição do catálogo do corpo difundido pelo ideal greco-latino da beleza (tão exaustivamente continuado e perseguido pela dança clássica) e a abolir a tentação da proporcionalidade que Da Vinci buscava nos seus estudos. Cria-se um ambiente que continua o trabalho simbólico com vista a uma outra alta aspiração: a da transfiguração contínua do corpo, que só o sonho (hoje, aqui, deste lado) permite ensaiar com tanta leveza, mas que encontramos representada, sob um outro prisma, no mundo criado pelo butoh. Talvez seja este acto de coragem que nos impele a seguir, refugiados num mundo onírico, nessa senda de “apagar a triste topologia do corpo”, de que falava Foucault. Torna-se inequívoca e palpável a busca pelo derradeiro gesto que permitiria inaugurar um novo agir incapaz de ser constrangido pela violência do espaço, que ensaiaria a aproximação a uma outra dança, fora do reino da perfeição temporal ditado pela música (talvez também por isso a maioria das marcações dos dançarinos pareçam guiadas pelo silêncio que nasce entre os dois pianos). É um agir que esta peça professa, como consequência de um trabalho diarístico e contínuo; um agir que não força o espectador a descer às suas profundezas nem o confronta, mas antes tece hábeis convites, ora através de gestos de insólita leveza humorística, ora ousando alguma clareza narrativa e o poder da súmula trazidas pela canção, onde inesperadamente a voz da artista se faz ouvir. Surpresa das surpresas: acordamos, ainda respiramos. E podemos tentar o nosso próprio corpo.
“Onironauta” de Tânia Carvalho estreia hoje na Culturgest, onde permanecerá até domingo, dia 2 de Fevereiro. Em Fevereiro e Março passará pelo Guidance, Teatro Campo Alegre e Teatro Viriato.
Crítica escrita por Manuel Seiça, leitor da Comunidade Cultura e Arte, que passou por Marselha. A sua biografia é apenas “Tiro notas trigosas e temo vir a ser macróbio.”