Yves Tumor mostrou-nos um futuro cheio de ruído
Entramos em Fevereiro com um zumbido nos ouvidos. O culpado é Yves Tumor, o músico dos Estados Unidos que se dedica a levar um híbrido de R&B, pop e rock para as franjas da música mais extrema, afogando-o em ruído e criando música verdadeiramente crua, possante e, por vezes, aflitiva. Sobre o seu concerto na última edição do NOS Primavera Sound (um dos nossos preferidos de 2019), escrevemos que a música de Yves Tumor é “para o apocalipse, para o caos dos tempos modernos, para um futuro em que somos todos surdos por ouvirmos tanta música e apenas saberemos distinguir sons se estiverem no meio do ruído”. Desta vez, o artista apresentou-se a solo na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, onde encabeçou mais uma noite Superballet. O resultado não foi tão hipnotizante como com banda, mas foi, ainda assim, bastante intenso.
O concerto de abertura esteve a cargo dos Império Pacífico. O duo de Luan Belussi e Pedro Tavares veio apresentar a música que compõe Exílio, o álbum que irão lançar ainda este mês. A música instrumental do grupo é mais acerca da viagem do que do destino. Uns sintetizadores vaporosos meio new age serviam de base a canções nem sempre focadas na batida, mas sim no desdobramento de várias camadas sónicas que as tornam imersivas. À terceira canção, uma batida quebrada com a cadência do reggaeton leva-nos para um lugar mais tropical que a Lisboa invernal e lembra-nos dos beats lo-fi de Dj Python. A tropicalidade é ainda auxiliada pelas teclas, que nos remetem para o balearic house e os sons de Ibiza dos anos 90.
Entretanto, o microfone solitário colocado do lado direito da mesa de Belussi e Tavares é apoderado por Maria Reis, convidada que dá voz a duas canções de Exílio. Essas são mais directas ao assunto, levando-nos sem vergonha para a pista de dança, ao mesmo tempo que acabam também por ser mais lineares. A voz bastante processada de Reis atribui-lhes uma certa qualidade inocente e nostálgica, com “Nitsusada” a sugerir uma sonoridade nipónica que coaduna com o título e o videoclipe filmado em Tóquio. O concerto deixou-nos de água na boca pelo lançamento do segundo trabalho do grupo, que certamente trará algo de novo para a produção musical nacional.
Entretanto, a sala enche-se de fumo com um odor doce, não nos permitindo ver para além de cinco palmos à nossa frente e não nos deixando assistir à entrada de Sean Bowie. Sabemos que o concerto começa, pois as trompetes introdutórias de “Faith in Nothing Except in Salvation” avisam-nos. De repente, a figura enorme de Yves Tumor surge por entre o nevoeiro do palco e sabemos logo que assistiremos a uma performance bem íntima e completamente dedicada.
O palco vazio foi quase todo utilizado pelo idiossincrático artista enquanto gritava com a sua voz comandante ou se abanava de forma maníaca, mas a escolha preferida foi estar quase em cima do público e, por uma vez, no meio dele. A primeira fila foi por algumas vezes inadvertidamente chicoteada com o fio do microfone, objecto que estendia a personagem de Yves Tumor; alguns espectadores foram seduzidos durante “Superstar” – um deles quase estrangulado com o seu próprio lenço. O concerto privilegiou o contacto e, sendo a música tão futurista, é quase como um apelo à interacção e ao poder do amor – não esquecer que o óptimo álbum lançado em 2018 se chama Safe in the Hands of Love – vindo de um qualquer futuro distópico.
Ouvimos muita música nova, que molha mais o pé na piscina do R&B, trazendo até uma certa ginga funk. No entanto, sem surpresa, as músicas mais celebradas são as que o público já reconhece. “Noid” continua com a sua reconhecida urgência, com letras como “Have you looked outside? / I’m scared for my life” ou “911, 911, 911 / Can’t trust ‘em”, mais e mais pertinentes num mundo em rebuliço, entoadas pelo público numa partilha revolucionária que nos faz sentir que, juntos, podemos tudo. “Licking an Orchid” foi mais solene que sensual, mas sempre lindíssima, com a bridge bem ruidosa e catártica.
Um certo excesso na performance do artista faz-nos ter saudades da presença da banda, para complementar toda a panache visual com o improviso orgânico e mestria dos artistas que compõem a banda, excelsa em construir os épicos rock/R&B num nível de volume bem elevado. Aqui, a música simplesmente passa numa lista controlada pelo próprio Sean, que se liberta das amarras da produção em estúdio para se dedicar à experiência ao vivo, que nos impressionou mais no concerto do Primavera. Sente-se que o artista podia ter ido mais além, quiçá emparelhando os gestos mais físicos e viscerais de rebolar pelo chão, enrolado no fio do microfone, com os momentos mais ruidosos de Safe in the Hands of Love, como a angustiante “Hope in Suffering (Escaping Oblivion & Overcoming Powerlessness)”.
Ainda assim, a sua música continua a ser um portento ao vivo, ouvida num volume bem alto que nos deixa com o tal zumbido nos ouvidos, mas ao mesmo tempo que somos confrontados pelo artista, que se apoia e confia em nós, enquanto nos canta quase na cara. As canções seguem-se umas às outras e têm todas um certo pedigree incomparável, um testemunho da qualidade de um músico verdadeiramente inovador. Yves Tumor mostra-nos que o futuro já aqui está, e é bem ruidoso.