Análise. O que pensam os que votaram no Chega, de André Ventura?
Análise de Pedro Magalhães. Licenciado em Sociologia pelo ISCTE e Doutorado em Ciência Política pela Ohio State University. Investigador Principal do ICS-ULisboa. Investigação na área da opinião pública, atitudes e comportamentos políticos e instituições políticas e judiciais.
Num artigo publicado no Observador, na sequência de algumas entrevistas com fundadores e quadros e monitorização de redes sociais frequentadas por simpatizantes do partido, Riccardo Marchi lançou um olhar exploratório sobre o Chega. Definindo o partido como trazendo uma “proposta populista de nova direita radical”, Marchi detectou alguns elementos distintivos no discurso ideológico do partido e da cultura política dos seus líderes:
- “Populismo” (“a voz do povo atraiçoado pela elite política do sistema capturada pelo politicamente correcto”), mas sem clara predileção pela democracia directa em detrimento da democracia representativa;
- “Autoritarismo” (“Lei e Ordem” e agenda legalista e securitária), mas sem ataque directo à democracia liberal;
- “Nacionalismo cívico”, mas com conotações jacobinas (“assimilação das minorias no corpo social homogéneo”) e defesa de “políticas mais restritivas de controle e selecção dos migrantes em função das necessidades económicas do País”.
Marchi assinala também que “não há sinais consistentes de rejeição da qualificação de português para as minorias étnicas, nomeadamente as afrodescendentes” — apesar de declarações recentes de André Ventura, posteriores ao artigo de Marchi, lançarem dúvidas sobre esse diagnóstico — e que, noutros temas, o programa do Chega “não reflecte uma homogeneidade ideológica dos quadros, entre os quais, pelo contrário, existem sensibilidades diferentes, algumas mais outras menos flexíveis quanto ao liberalismo económico radical”.
O Estudo Eleitoral Português de 2019, coordenado por Marina Costa Lobo e agora disponível, permite, no mesmo estilo exploratório, perceber em que medida aqueles que votaram no Chega se aproximam, nas suas opiniões e atitudes, destes elementos que Marchi aponta como sendo distintivos do discurso do partido. “Exploratório” por duas razões. Primeiro, os instrumentos dos inquéritos — perguntas e respectivas opções de resposta — são sempre rudimentares e simplificadores como formas de medir de atitudes e opiniões. Segundo, apenas 0,7% dos eleitores votaram no Chega nas eleições de 2019. O grau de incerteza em torno de qualquer estimativa que se possa fazer sobre esta parcela da população na base de uma amostra de um inquérito é enorme (pouco mais de 1% dos inquiridos afirmaram ter votado no Chega). Em vários momentos, assinalarei quando essa incerteza impede completamente que se identifique qualquer particularidade do votante no Chega.
Populismo
Uma definição possível de “populismo” é a de que consiste numa ideologia que “concebe a sociedade como estando dividida em dois grupos homogéneos e antagónicos: ‘o povo puro’ e ‘a elite corrupta’, e defende que a política deve ser uma expressão da vontade geral do povo” (Mudde 2004; Mudde and Rovira Kaltwasser 2017). No gráfico abaixo, agrupamos os eleitores em três grupos: votantes no Chega; votantes noutros partidos; e abstencionistas. Mostra-se a percentagem de eleitores, dentro de cada um destes grupos, que consideram que práticas de corrupção se encontram “muito difundidas” entre os políticos portugueses. Quando olhamos para os resultados, ficam poucas dúvidas de que, entre os que dizem ter votado no Chega em Outubro, a percepção de que “elite política” é na sua generalidade “corrupta” é claramente prevalecente, e parece seguro que, mesmo com os cuidados que se impõem na análise de uma subamostra tão pequena, é-o de forma mais acentuada do que entre qualquer outro grupo de eleitores.
Outras questões do inquérito geram distribuições semelhantes: a percepção de que “os políticos são o principal problema de Portugal”, de que “a maioria dos políticos só se preocupa com os interesses dos ricos e dos poderosos” ou de que “a maioria dos políticos não se interessa pelo povo”. Note-se que, em duas das questões — as relacionadas com a percepção de desinteresse dos políticos em relação ao “cidadão comum” — a concordância da população em geral com estas ideias é ela própria tão difundida que o eleitorado do Chega em 2019 mal se distingue de forma significativa, pelo menos em comparação com os abstencionistas.
Noutras questões relacionadas com o ideário populista, a distintividade do eleitorado do Chega não aparece. Por exemplo, não há uma concordância especialmente forte com a ideia de que “a vontade da maioria deve prevalecer sobre os direitos das minorias”. É curiosamente entre os abstencionistas que esta ideia mais prevalece. Talvez a questão seja demasiado abstracta; talvez esta ideia não tenha sido articulada no discurso do partido, como o próprio Marchi assinalava; e talvez o eleitor do Chega se sinta, ele próprio, pelo menos para já, parte de uma “minoria”, pelo menos política.
Autoritarismo
Questionados sobre com que frase mais tendem a concordar — “Devemos manter a lei e a ordem” ou “devemos defender as liberdades cívicas” — os portugueses inclinam-se um pouco mais para a primeira. E isso é assim para os eleitores do Chega mais do que para quaisquer outros.
Marchi defende também que, nas entrevistas com quadros do partido, não emerge um ataque em relação à democracia liberal. Não temos, neste inquérito, os instrumentos necessários para medir a adesão dos eleitores à democracia liberal enquanto regime ou conjunto de princípios. Contudo, uma das questões colocadas no inquérito foi a de saber até que ponto se concordava com a ideia de que “Ter um líder forte no governo é bom para Portugal mesmo que esse líder contorne as regras para fazer as coisas avançarem“. Esse “contornar as regras” para permitir o exercício da autoridade de um líder que “faz avançar as coisas” sugere uma secundarização da componente “liberal” do regime. Como vemos abaixo, essa ideia parece prevalecer mais entre os que dizem ter votado no Chega do que entre os restantes grupos (apesar de, como já sucede noutros indicadores, a concordância com esta ideia entre os restantes eleitores ser ela própria — perturbadoramente — alta).
Nacionalismo
Algumas das opiniões dos eleitores do Chega sobre o tema “imigração” poderão, à primeira vista, surpreender. Aqui vão elas:
Prevalece a concordância com a ideia de que os “imigrantes são bons para a economia”, ao passo que a ideia de que a “cultura portuguesa” é “prejudicada” por eles é partilhada por uma pequena minoria. Os eleitores do Chega não desalinham dos restantes. Mesmo quando se invoca uma combinação particularmente incendiária noutras paragens — “imigração” + “crime” — os eleitores do Chega não reagem de forma diferente dos restantes eleitores.
Os eleitores do Chega são, contudo, assimilacionistas, não pluralistas: as minorias devem “adaptar-se aos costumes e tradições de Portugal”. Dito isto, o assimilacionismo também tende a ser dominante entre os eleitores portugueses…
E em contraste com aquilo que Marchi encontra nos quadros do partido, não é evidente que o nacionalismo dos eleitores do Chega seja “cívico”. Questionados sobre aquilo que é importante para se ser “verdadeiramente português”, apesar de o domínio da língua ser “muito importante” — como é para todos os restantes grupos — a componente “étnica” — ter “antepassados portugueses” — é mais destacada do que entre os restantes grupos. Por outras palavras, isto é o contrário do “nacionalismo cívico”.
Tudo isto é, volto a assinalar, meramente exploratório. Este inquérito não foi concebido propositadamente para estudar este perfil de eleitor. E o peso eleitoral do Chega em 2019 foi, apesar da atenção desproporcional que suscita — e de que este post é só mais um exemplo — muito reduzido, o que aumenta muito a incerteza das comparações: nalguns casos, a sub-amostra de eleitores do Chega não é suficientemente grande para que a relação encontrada entre votos e atitudes se possa dizer existir com segurança entre a população. Mas o perfil — ainda hipotético — de quem votou no Chega em Outubro pode ser traçado brevemente: fortemente “anti-políticos”, mas (ainda) sem um projecto de imposição da “vontade da maioria”; tendencialmente autoritários, mas possivelmente pouco mais autoritários do que o eleitor português médio já é; os efeitos alegadamente negativos da imigração não são tema (ainda?), mas o modelo de integração é assimilacionista e mais baseado do que entre outros eleitores numa concepção étnica de nação.
Este artigo é da autoria de Pedro Magalhães e foi originalmente publicado em aqui, tendo sido aqui publicado com a devida autorização.
Pedro Magalhães é natural de Lisboa. Licenciado em Sociologia pelo ISCTE e Doutorado em Ciência Política pela Ohio State University. Investigador Principal do ICS-ULisboa. Investigação na área da opinião pública, atitudes e comportamentos políticos e instituições políticas e judiciais.