Como é que o bicho mexe? (ou sobre importância da estrutura)
Sem limites, a não ser os da sua vontade e gosto, Bruno fez mais uma obra única. E, de forma fascinante, o processo que normalmente é feito durante meses atrás das câmaras, foi mais orgânico e público que nunca. Foi um privilégio assistir como confinado, mas também como criativo.
Passava da meia-noite do dia 15 de Maio de 2020 e Bruno Nogueira tinha mais de 170 mil pessoas a seguir atentamente o seu directo no Instagram. Numa noite difícil de descrever, um Nogueira emocionado, conduzido por Nuno Markl, passou por centenas de pessoas na rua que agradeceram e por milhares de janelas decoradas de Natal, como tinha pedido. Terminou num Coliseu dos Recreios vazio, onde juntou os “companheiros” de Quarentena, um “season-finale” digno de uma grande produção americana.
Recapitulando este improvável momento: durante a fase inicial do recolhimento de que todos fizemos parte às custas do Corona Vírus, Bruno Nogueira começou uma série de directos do seu Instagram. Justificando estar sozinho em casa com as filhas enquanto a mulher filmava fora do país, primeiro, e se isolava em quarentena, depois, estas sessões eram uma maneira eficaz de falar com adultos amigos bebendo um copo de vinho. Por sorte, Bruno é um grande artista e os seus amigos algumas das personalidades mais interessantes da cultura nacional – e, de repente, todo o país fazia parte desta nova Odisseia do comediante.
O impacto do “bicho” foi crescendo, tornando-se realmente extraordinário. Num tempo em que as pessoas foram obrigadas por lei ao mínimo contacto social possível, Bruno abriu a sua casa e recebeu-nos a todos, partilhando dramas e angústias pessoais dos anormais dias que vivíamos, e interacções “privadas” com gente que estava em igual estado de ansiedade. Foi divertido e emocionante, e deu a muitos uma sensação de comunidade fundamental num tempo de medo e solidão, confirmando o poder das histórias, da comédia, da arte, cultura e entretenimento. Merece todos os agradecimentos e mais alguns. No entanto, em vez de apelar ao coração, como outros tão bem têm feito, achei interessante agradecer de outra maneira: analisando formalmente aquilo que será, com toda a certeza, um conteúdo histórico, transversal e marcante para uma geração.
O que foi, afinal, o “Como é que o bicho mexe?”? Começou como um impulso e evoluiu para o formato mais criativo dos últimos tempos. E é difícil categorizá-lo, mas, apesar da espontaneidade, a existência de uma estrutura é inegável – algo fascinante num produto destes.
Com efeito, depois de um início selvagem, o “bicho” foi sendo domesticado, no melhor sentido: imagem, genérico e duração; um início claro, um grupo de personagens habituais, números ecléticos inesperados e um final definido. Até a uma despedida à Edward R. Murrow tivemos direito.
Esta estrutura destacada não implica repetição ou monotonia, atenção, e esse é exactamente o ponto: a existência de um esqueleto discretamente montado permitiu, isso sim, mais risco e imaginação.
Pudemos ir a uma rádio do Polo Norte que tinha 3 seguidores no Instagram e que passou a ter 50 mil; pudemos ver um dos artistas mais populares da actualidade fazer uma homenagem única à liberdade, sem conversa; pudemos desiludir-nos quando um corte de cabelo era, afinal, uma mentira… Vimos a Eunice Muñoz e a pila do Quadros, o talento do Albano, de frente e de trás, e até o melhor do mundo mesmo antes de ir dormir.
Com tudo isto, não surpreende que o tom tenha sido uma mistura difícil de classificar entre a confissão e a (meta)ficção, entre o insulto cómico e a revolta genuína, algures entre talk-show, sitcom, evento cultural e mesa de café. Mais vale não tentar.
Bruno, com instinto criativo ímpar, substituiu momentaneamente Herman como verdadeiro artista, acumulando os chapéus de realizador, produtor, editor, guionista e actor. Por exemplo: a escolha de Markl como habitual primeira conversa está longe de ser aleatória. É um dos seus amigos mais próximos, é certo, mas por isso mesmo era também aquele que mais temas conseguia introduzir e desenvolver, que mais facilmente partilhava a sua vida, que com mais vontade aceitava ser humilhado ou humilhar-se. Facilitava, à partida, a dinâmica improvisada do resto do “programa”.
O tal instinto, Bruno mostrava-o constantemente, saltando de “convidado” em “convidado” com apurado timing, promovendo propositadamente a comédia e/ou o conflito, criando pequenas narrativas que, mais cedo ou mais tarde, eram resolvidas. Em directo, recorde-se. E assim, como numa série, o público tinha os seus preferidos; como numa boa ficção, as surpresas eram constantes; como num “late night” típico, havia o monólogo inicial e a música final; como num espectáculo de improviso, não havia guião; e como em qualquer projecto de Bruno, o talento dos protagonistas era excepcional. O maestro nacional, como dizia Quadros.
Sem limites, a não ser os da sua vontade e gosto, Bruno fez mais uma obra única. E, de forma fascinante, o processo que normalmente é feito durante meses atrás das câmaras, foi mais orgânico e público que nunca. Foi um privilégio assistir como confinado, mas também como criativo.
Por fim, e porque as ideias funcionam se realmente significarem algo para quem as faz, Bruno completava diariamente esta estrutura do “bicho” com aquilo que o Sul-Americanos chamam de “sangue” – com coração. Emocionou-se connosco, abriu-se connosco, aprendeu connosco, sofreu connosco. Foi genuíno e generoso, e esse gesto foi-lhe justamente retribuído na inesquecível noite de 15 de Maio de 2020.
“Como é que o bicho mexe?” era para não ser nada e, no final, tornou-se numa enorme picha que as pessoas fizeram ao vírus. Juntou-as e motivou-as, qual salvação nacional. Foi uma companhia tremenda num tempo difícil. Foi, ao mesmo tempo, uma lição criativa do mais original autor português. Obrigado Bruno.