Entrevista. João Carvalho: “Paredes de Coura é de afectos e terá ainda mais cumplicidade, reencontros e alegria”
João Carvalho é um dos nomes mais reconhecidos na indústria nacional dos festivais de verão. Diretor da promotora de eventos Ritmos, é responsável pela organização do Vodafone Paredes de Coura. O fundador do festival que decorre na vila minhota há 27 anos consecutivos vê agora o evento adiado devido à pandemia mundial da Covid-19.
O Espalha-Factos conversou com o promotor sobre o panorama atual e os planos para o futuro. Numa conversa repleta de histórias daquele que é considerado o festival do amor, desvenda-nos ainda que é um eterno apaixonado por aquilo que faz.
O festival Vodafone Paredes de Coura realiza-se há 27 anos consecutivos. Qual foi a sensação ao perceber que a edição de 2020 não iria realizar-se?
Senti uma tristeza enorme e, como sempre fui honesto com o meu público, achei que devia partilhar essa tristeza. Não conseguia lançar um comunicado normal a informar que a edição ficava adiada para o próximo ano, sem qualquer tipo de sentimento. Um dos segredos de Coura é que quando as edições correm mal, nós contamos ao nosso público, assim como quando correm bem. Ultimamente fizemos estudos sobre o impacto que o festival tem para quem usufrui dele e os resultados têm sido ótimos. Entre zero a dez, ronda os nove, o que é uma coisa absolutamente incrível. O que fazemos nós com isto? O bom senso diria “isto correu tão bem, a pontuação é tão boa, fiquem quietos”. Mas nós nunca ficamos quietos. Tenho muita pena, porque este ano tínhamos já uma série de projetos para a edição, mas levaremos a cabo na próxima. Este tempo vai servir também para fazer obras no recinto e melhorar ainda mais o espaço.
Portanto, vão aproveitar este entrave para fazer com que o próximo ano seja ainda melhor?
Sim. Mas, na verdade, sempre estivemos assim na vida. O festival nasce em 1993 sem objetivos mercantilistas, com o objetivo de promover Paredes de Coura e ser um pretexto para um grupo de amigos se juntar. Portanto, essa forma tão natural e bonita da génese do festival, embora hoje tenha também objetivos comerciais, nunca se perdeu. Além de sermos promotores, adoramos música. Hoje, gosto mais de música do que gostava em 93, e nessa altura já gostava muito. Quando falo com alguns amigos meus, também eles promotores, e dizem que já não têm paciência para ver concertos, eu não percebo. Gosto imenso de concertos. Aliás, preciso de os ver durante o ano e ouço música todos os dias. Isto também faz diferença, porque ponho-me no lugar do público. Quando contrato uma banda, imagino sempre a reação dos espetadores.
“Eu já disse, e até fui mal interpretado, que queria fazer alguma coisa no inverno. As pessoas começaram a achar que seria uma edição de Paredes de Coura no inverno, mas não. O que disse foi precisamente pela preocupação com o comércio courense. Gostava de envolver patrocinadores e fazer alguma coisa em salas. Também podia alugar outros espaços como garagens ou uma central de camionagem. É preciso é criatividade.”
Como era a vila de Paredes de Coura antes do Festival?
Como posso dizer isto sem parecer patético ou ser pretensioso? Bem, parece-me que mudámos a forma de pensar das pessoas. Quando fizemos as primeiras edições, havia um “burburinho” que iria trazer pessoas que não interessam, como drogas e skinheads. Chegaram a ir à casa dos meus pais dizer “vêm aí não sei quantas camionetas com skinheads”, portanto havia ali um certo pânico. A primeira e segunda edição foram muito curiosas, porque as pessoas tinham receio, mas foram na mesma. Foi um choque, mas facilmente perceberam que o festival só trazia coisas boas. A grande diferença que noto para hoje é falar com as pessoas e elas dizerem: “tomara que durante o ano os Courenses também se comportassem assim”. São pessoas educadas, que sabem esperar e falar, por isso são pessoas bem-vindas a Paredes de Coura. Este é o nosso maior legado. O maior orgulho que tenho é acabar o festival com as pessoas satisfeitas. É quase um sonho fazer um festival num meio pequeno, que hoje é sinónimo de música. Mas, quando começámos, era só uma terra perdida no interior do Alto Minho. Tínhamos de dizer que ficava a 25km de Valença, no distrito de Viana do Castelo, etc. Hoje, toda a gente já ouviu falar de Paredes de Coura.
O cancelamento tem um grande impacto para todo o comércio local. Como é que os habitantes estão a lidar com a notícia?
Ainda esta semana recebi uma fotografia que me assustou. Aparecia alguém a rasgar o bilhete da edição deste ano e eu pensei: “Bem, vão começar os protestos relativamente ao cancelamento e querem o dinheiro de volta”. Depois da fotografia, veio uma mensagem tão bonita que me deixou com uma lágrima no olho. Foi a pessoa em questão a dizer que “estou a rasgar o bilhete deste ano, porque imagino as dificuldades e exijo comprar o bilhete da próxima edição, portanto nem vou utilizar este voucher”. E tu ficas “Meu Deus, que público é este?”. Que coisa bonita. Houve dezenas de pessoas que me disseram que vão na mesma para Paredes de Coura nos dias do festival, que voltaram a confirmar o aluguer da casa, porque querem ajudar o comércio local, querem ir almoçar e jantar nos restaurantes da vila.
Mas, apesar destes feedbacks, as pessoas da vila estão preocupadas. Se esta situação teve um impacto económico em todo o mundo, imaginem numa terra pequena no interior do país. As pessoas esperavam pelo festival para tentarem contrariar estes momentos menos bons. Infelizmente não aconteceu. Mas não sei se vai ser possível fazê-lo, neste momento reina a incerteza. Deitamo-nos a pensar que as coisas vão correr melhor. Depois, no dia a seguir, vemos uma notícia ou o próprio Telejornal e já ficámos com a sensação contrária. Estive a ver uma entrevista do Bill Gates. Neste momento, é o meu orientador espiritual, digamos assim [risos]. Esta pandemia aconteceu precisamente quando não há bons líderes mundiais. Olhamos para as grandes potências e vemos líderes medíocres e sem sentido de estado, por isso todos nós precisamos de uma luz ao fundo do túnel. Stephen Colbert é uma pessoa ligada ao humor e ele próprio ficou incomodado quando o Bill disse que não sabe se haverá uma vacina daqui a dois anos. Portanto, quando vemos uma pessoa que está a investir milhões sem um único objetivo comercial a falar assim, ficamos receosos.
“Se já é um festival de afetos, para o ano será um festival que transborda amor no rio Coura. Vai ser um festival com ainda mais cumplicidade, cheio de reencontros e de alegria.”
A cultura, no geral, está a ser gravemente afetada pela pandemia Covid-19. Na tua opinião, quais são as medidas que o Governo deveria implementar para proteger o setor?
Acho que tem de haver linhas de crédito para os grandes festivais e temos de ser criativos para criar eventos. Tão mal ou pior que as promotoras estão todas as pessoas que trabalham nos festivais. Há centenas ou milhares de pessoas que dependem dos festivais e da música e que neste momento estão proibidas de trabalhar. Percebo que ainda não tenha havido tempo para soluções, mas quando começar a haver fome, será complicado. Por isso temos nós de nos inventar rapidamente e o Governo de pensar rapidamente. Eu não queria ser governante neste momento, aliás, na última vez que estive com o Primeiro-Ministro, dei-lhe os parabéns. Se nós estamos exaustos, imaginem um político. Não quero pedir palmas especificamente para António Costa, mas batem-se palmas a médicos e enfermeiros (e muito bem), e às vezes os políticos só são criticados. Eles também merecem compreensão. É preciso bom senso e esperar, não eternamente, mas pelo menos ter paciência e acreditar que haverá medidas para o setor.
Inevitavelmente, ultrapassar uma situação de pandemia mundial vai deixar marcas em todos nós. Achas que em 2021 estaremos prontos para conviver da mesma forma num festival?
No próximo verão eu acredito que sim. Se me perguntarem em janeiro ou fevereiro, estou cético. Acho que o próximo ano vai ser mágico. Vai ser o mais bonito de sempre. Estou a contar os dias para a próxima edição porque continuo a entusiasmar-me tal como no início. Gosto muito do que faço, sou um sortudo.
Há palavras para descrever a tua paixão por este projeto, que sentimos que também é nosso?
Amor. Essa é palavra. Chegar ao fim e ver que as pessoas adoraram o festival e receber e-mails das bandas a dizer que adoraram o público, é incrível. Temos a Patti Smith, por exemplo, que tem décadas de palcos e de repente faz uma publicação a dizer que já não sentia aquela energia há não sei quantos anos. Isto é um festival que espalha a felicidade e sempre será assim.
Entrevista de Madalena Soares, originalmente publicada em Espalha Factos.