O dia em que Scorsese recusou conhecer o Lobo de Wall Street
O Lobo de Wall Street (2013) de Martin Scorsese é talvez um dos filmes mais emblemáticos da passada década pela capacidade de retratar através de uma história verídica uma característica cada vez mais enraizada na nossa sociedade: a ganância por ser rico. Cada vez há mais pessoas a estudar temas financeiros, a comprar livros de autoajuda para ser mais eficiente na sua carreira, livros sobre como investir na bolsa etc. É comum ter a sensação que o homem moderno, entre outras coisas, está numa luta constante para maximizar a sua riqueza e a obtenção dessa riqueza hipoteticamente significa felicidade e vitória. Dentro do grupo de pessoas dos mercados financeiros, o dinheiro é um tema ainda mais recorrente porque faz parte do seu trabalho e naturalmente do seu interesse pessoal. Neste filme vemos bem retratado esse jogo que é o dinheiro, ou seja, a ideia de que no mundo há uma certa quantidade de dinheiro e quanto mais desse dinheiro eu tiver, isso fará de mim um vencedor. Neste filme vemos que os personagens principais seguem esse jogo, essas regras, de aumentar o meu valor vendendo mais, tendo mais ativos e vão medindo a cada dia o retorno dos seus investimentos. Chegamos inclusive a ver uma personagem celebrar o facto de ter feito uma quantidade recorde de dinheiro em 3 horas.
Este obra é um autêntico carrocel de cenas incríveis e acabamos por nem dar conta da longa duração da mesmo. Quando o filme saiu, muitas pessoas perguntaram-se se a história era verdadeira e, em caso afirmativo, até que ponto é ficção. O curioso disto tudo, dito por vários membros do filme, é que a insanidade da história é o facto de esta ser mesmo verdadeira! Tudo foi inspirado em Jordan Belfort, que aliás ajudou no filme e até tem uma pequena participação. Numa cena final vemos o próprio Jordan Belfort introduzir a uma plateia… Jordan Belfort, magnificamente interpretado por Di Caprio.
Numa entrevista a Patrick Bet David, para o seu canal de Youtube “Vluetainment” em 2018, Jordan Belfort revelou que Scorsese o surpreendeu. O realizador americano explicou-lhe a sua admiração pelo sistema de técnicas de vendas que Belfort tinha desenvolvido. Em concreto, Scorsese amou a capacidade que ele tinha de transformar pessoas “banais” em “espetaculares” ensinando-lhes estas técnicas de vendas. Cuidadoso com todos os pormenores, o cineasta submeteu-se ao trabalho imenso de estudar todos os vídeos e conteúdos do verdadeiro lobo de Wall street ensinando como vender a outras pessoas. Embora Scorsese estivesse completamente por dentro do assunto, depois de ter passado horas a estudar o centeúdo, este surpreendeu Belfort dizendo-lhe: “tenho uma certa visão de ti e não quero que o verdadeiro Jordan Belfort influencie a minha maneira de ver esta personagem”. Ele já estava apaixonado pela personagem que tinha na cabeça. Esta atitude revela o respeito que Scorsese tem pela sua própria arte, pela atenção ao detalhe e pela noção das suas debilidades enquanto homem. Mesmo nos filmes baseados em histórias verídicas, há sempre um distanciamento entre a pessoa que a viveu e personagem que se cria para o filme. Neste caso vemos um personagem que, por vezes, mostra não ter escrúpulos e ser capaz de atuar passando limites éticos pela sua ganância. Provavelmente o realizador sabia que lá no fundo Belfort era melhor pessoa do que isto, mas para o propósito do seu filme estava mais interessado nessa versão mais imperfeita dele por ser mais interessante para os seus propósitos artísticos.
Por outro lado, conta como Di Caprio passou centenas de horas em contacto com ele. Descreve como o ator que vai até ao mais ínfimo pormenor com as suas personagens, completamente obsessivo, o que faz dele um dos melhores da sua geração. Para alguém que passou tanto tempo a formar e motivar pessoas Di Caprio é visto sem dúvida como um talento que tem um método de trabalho que o permite chegar cada vez mais longe. Um exemplo para todo o tipo de profissional.
O filme tem ainda um conteúdo forte de drogas e de poder, que é diferente de dinheiro. Aliás, explorar o poder interessa mais a Scorsese do que o dinheiro. Em 2013, em entrevista à Screen Plan, explica que o mais fascinante para si foi esta corrida incessante e obsessiva de continuar a lutar por mais e mais e mais. Um sentimento que o filme capta bastante bem pela corrida infernal do personagem principal. Não havia limites para mais dinheiro, a pesar de já ter quase tudo o que desejava ao principio. O método funcionava e as personagens já estavam “viciadas” ao ponto de terem de optar por estratégias para se defenderam de iminentes problemas com as autoridades, coisa que acabou mesmo por acontecer. Este lado negro do ser humano foi algo que Scorsese explorou muito bem. Como dizia Abraham Lincoln: “Quase todos os homens são capazes de suportar adversidades, mas se quiser por à prova o caráter de um homem, dê-lhe poder.” É este teste de Lincoln que vemos depois de Belfort adquirir poder. Muito do charme desta obra vem deste jogo de risco, sabemos que no cinema o perigo é muitas vezes sinal de entretenimento. Disfrutamos da loucura da personagem e até certo ponto admiramos a sua inteligência para enriquecer depressa, mas lá no fundo também a quereremos ver derrubada e a pagar as consequências. A ética é um tema central no filme, porque com o aumento louco de dinheiro e de poder vem o teste ético da pessoa. A este respeito, Jordan Belfort diz que ele não foi tão mal-intencionado como pode parecer, ou seja, não tinha o objetivo de prejudicar outras pessoas vendendo ações que não valiam nada para cobrar a sua boa comissão.
A história já nos ofereceu vários filmes sobre o “jogo” do dinheiro. Desde o Wall Street (1987) passando pelo Margin Call (2011) até ao Big Short (2015), mas o Lobo de Wall Street vai provavelmente ficar como a referência intemporal sobre os mercados financeiro, um sector de importância muito elevada no sistema da economia mundial.