“Coisas de Loucos”, da jornalista Catarina Gomes, procura a humanidade nos doentes psiquiátricos
Houve um tempo em que se achava que o único possível tratamento para os doentes psiquiátricos, os “loucos”, passava por fechá-los em instituições onde acabavam tratados de forma não muito diferente da dos prisioneiros. Em parte pela ausência de tratamentos eficazes, dificilmente havia para estas pessoas outro fim que não o total isolamento da sociedade.
O primeiro desses locais em Portugal foi o Hospital Miguel Bombarda, antes Manicómio Miguel Bombarda, e, anteriormente ainda, Hospital de Rilhafolhes, tendo-se estabelecido no edifício de um antigo convento com o mesmo nome no ano de 1848. Encerrado em 2011, agora meio abandonado, é utilizado para pouco mais que visitas guiadas e pequenas exposições de obras de antigos pacientes (ainda que recentemente tenha sido revelado um projecto de o transformar em casas para arrendamento acessível). No sótão de um dos seus edifícios, no entanto, Catarina Gomes, jornalista, encontrou um caixote contendo objectos perdidos e, deles, partiu em busca das histórias dos seus anteriores donos.
Juntando vários artigos que escreveu para o jornal Público no final de 2019, Coisas de Loucos (Tinta-da-China, 2020) é um livro ambicioso porque o próprio projecto o é: buscar a humanidade em quem, em vida, fora tratado de forma animalesca.
Tirando os casos do bailarino Valentim de Barros, internado por ser homossexual, e do agricultor tornado artista Jaime Fernandes (com exposições internacionais e até um documentário feito pelo cineasta António Reis), cujas histórias já tinham sido contadas noutros locais, aqueles sobre quem Catarina se debruça são anónimos aqui revelados no seu quotidiano e normalidade. E é precisamente quando Catarina Gomes parte dos objectos para descobrir quem estes anónimos são, que a obra mais brilha.
Por muito intrigantes e impressionantes que sejam as histórias de Valentim e de Jaime, é no arqueológico trabalho de busca de Catarina, com pequenos detalhes nos objectos a revelarem as identidades e parte da psique daqueles a quem estes pertenciam, que está a maior valência e atractividade desta obra. A busca parece também nossa, vamos acompanhando o caminho de Catarina pelas histórias, é através dos seus passos que passamos a conhecer as vidas de pessoas como Leopoldina d’Almeida, modista, detida por mendigar e diagnosticada com parafrenia (doença entretanto desaparecida das classificações de doenças mentais actuais, muitas vezes englobada nas doenças de âmbito esquizofrénico) ou Ricardo Vinte e Um, antigo dono de um armazém de louças em Alfama que julgava ter o poder de fazer aviões cair e é detido pela PIDE “para averiguações” por querer chegar à fala com Salazar para o informar de que o país estaria prestes a ser bombardeado.
Mas se Leopoldina e Ricardo haviam sido efectivamente diagnosticados com doenças do foro psiquiátrico, outros há cujo internamento nos transparece ainda mais chocante aos olhos de hoje, como o já acima referido Valentim de Barros, internado por ser homossexual, que acaba ainda para mais internado no panóptico, a zona de elevada segurança do Hospital, onde os doentes são mantidos em celas dispostas num edifício circular, viradas umas para as outras, por alegadamente ter sido violento aquando da sua detenção, ou Noé Galvão, relojoeiro, que passa a grande maioria da sua vida internado num asilo psiquiátrico mesmo tendo uma doença de foro neurológico, pois é epiléptico.
Nas mãos de Catarina Gomes, as suas vidas ganham um tom quase ficcionista, imaginamo-las quase como personagens de romance, tal é a capacidade quase arqueológica da autora ao encontrar detalhes que lhe permitem unir os factos da vida daqueles cujos objectos encontrou. Através das fotos que nos vai apresentando imagina possíveis cenários, passados, aquilo que possam ter vivido entre as linhas oficiais que sobraram das suas vidas. O que as terá levado a desenvolver as perturbações psiquiátricas que acabam por condená-los a uma vida encarcerada? Como seria a sua vida antes disso? Haveria outra hipótese, para estas pessoas? Porque, mesmo no caso daqueles cujas famílias ainda mantêm algum registo destes seus familiares, os detalhes são escassos, as suas histórias não foram passadas de geração em geração, em muitos casos até por vergonha do pai, irmã, tio ou avô, que era “louco”. Na maior parte dos casos eram até os próprios familiares quem os internava no Bombarda. Como os objectos que acabaram por chegar a Catarina Gomes, também eles foram abandonados.
Do livro que nos chega, fica um travo agridoce com a falta de um maior cuidado na edição, de forma a retirar da versão final os factos repetidos que são partilhados pelos textos, sejam eles sobre o Miguel Bombarda ou sobre tipos de terapia, ou sobre a inexistência de psicofármacos até à década de 50 do século passado, perfeitamente justificáveis aquando da sua publicação no jornal Público, dado o seu carácter isolado, mas francamente incompreensíveis numa edição que os agrega e que, aparte disso, é totalmente bem sucedida em fazer-nos chegar uma das obras mais humanas e tocantes dos últimos anos.