“Spiritfarer”: o último abraço
Quando Stella chega ao pós-vida é recebida por Charon (Caronte), o barqueiro que transporta os espíritos dos falecidos até ao seu final. Ele entrega-lhe o seu cargo, que intitula o jogo, e assim começa uma aventura sobre a morte e sobre como dizer adeus. Por muito sombrio que aparente ser, Spiritfarer é um dos jogos mais alegres, sorridentes e coloridos que se podem jogar.
Este é um jogo de aventura e gestão, pelo que antes de levar as almas à eternidade devemos construir na nossa embarcação uma pequena comunidade com horta, ferraria, pomar, cozinha e muito mais, isto para além das casas dos nossos inquilinos. Embora seja fácil deixar-se levar pelas tarefas que se acumulam rapidamente se perdermos o foco, o jogo tem uma conclusão bem definida que exige apenas que se cumpram as missões principais, cujo objetivo é satisfazer os últimos desejos dos espíritos e ajudá-los a ultrapassar as suas inquietações pessoais para que partam em paz. Devemos cultivar alimentos e cozinhar para eles, melhorar as suas casas, acatar os seus pedidos e abraçá-los regularmente para que sejam felizes antes de os levarmos até ao portal para o fim. Para isso, vamos precisar de construir e melhorar as infraestruturas, o que exige a recolha de matérias-primas nas diversas ilhas e o seu respetivo processamento no barco.
Os controlos nem sempre são ideais, há, por exemplo, um conflito entre a descida de plataformas (agachar e saltar) e o duplo salto (saltar no ar), já que o salto não é ignorado quando nos agachamos pelo ar, o que obriga a estar em contacto com o chão e ceifa alguma fluidez. Também a sobreposição de elementos interativos leva a ações indesejadas mais frequentemente do que o pretendido (à exceção de abraçar o gatinho: abraçar o gatinho por engano nunca é demais). Algumas animações podiam ser mais curtas e certas opções podiam ter atalhos mais competentes, como o diálogo repetido, que podia ser mais compactado para ser saltado eficazmente. Existem muitos minijogos, bem diversos, para nos entreter enquanto reunimos recursos, mas não convém repeti-los em demasia, pois acumular material em excesso não serve de nada. Aos poucos, o mapa vai revelando novas zonas com mais recursos, personagens e pequenas ilhas para explorar através de secções de plataformas. Estas secções divertidas só não são especialmente boas devido a um design de níveis que nem sempre aproveita bem as mecânicas de jogo. Explorar as minas e os os locais com maior verticalidade é o mais interessante e há sempre incentivo a voltar devido às partes fechadas que requerem habilidades que só se desbloqueiam mais à frente no jogo.
Todas as personagens, únicas e humanas, têm algo para nos ensinar. Do âmago da sua vivência, cada uma retira uma nova forma de encarar a partida e no-la oferece cordialmente. Os espíritos, alguns baseados em familiares falecidos de membros do estúdio, contam histórias do seu passado para que possamos entender os seus problemas e desejos, contudo, o jogo faz questão de traçar as personagens muito largamente, sem ligar as suas histórias de forma clara, o que por vezes gera uma sensação de haver espaços por preencher, sobretudo no caso da protagonista. Esta decisão é algo duvidosa visto existir uma boa quantidade de informação acerca das personagens no livro de arte digital do jogo (não incluído) que faz falta no jogo. Ainda assim, a escrita tem muita qualidade e sabe evocar temas bem distintos capazes de conter humor, profundidade e tristeza ao mesmo tempo. Para além da história principal, há também missões secundárias espalhadas pelas ilhas que nos dão mais algum conhecimento acerca dos habitantes daquele mundo. O que se passa no jogo, a nível geral, deixa várias questões em aberto que levam a especular acerca da origem do mundo de jogo, mas, apesar de isso abrir as interpretações, não afeta a consistência da experiência.
É difícil não nos babarmos constantemente com a arte deliciosa de Spiritfarer. Os visuais são extraordinários, com animações topo de gama recheadas de feedback visual e de identidade no caso das personagens. As cores vivas variam com subtileza e os traços desenhados à mão criam um mundo altamente bidimensional com composições de contraste entre linhas paralelas e curvas para destaque. Nota-se algo de Studio Ghibli no jogo, mas mais pelas animações, música e ambiente geral do que propriamente pelo visual (aí, Forgotton Anne ou os dois Ni No Kuni que de facto têm cinemáticas feitas pelo estúdio seriam uma melhor comparação). Os efeitos de partículas são ótimos e usados com mestria, com destaque para o nevoeiro e para os efeitos cósmicos dos minijogos, enquanto a neve é menos boa. Os reflexos na água, que até são afetados pela temperatura, acrescentam um esplendor extra. Existem, no entanto, alguns bugs com a inteligência artificial do gatinho, tornando-o imóvel; com algumas animações de Stella, que prendem; ou com a música, que se sumiu uma vez, mas tudo rapidamente resolvível e extremamente infrequente.
Os menus são esbeltos e suculentos, só têm alguns problemas de organização, faltando categorização de itens por tipo ou por ordem alfabética em certos separadores do inventário. O facto de existirem quinze separadores também não ajuda. A saída automática do mapa é dispensável e há pelo menos uma missão que exige o regresso a uma personagem sem relembrar a sua localização em lado nenhum. Diga-se ainda que a câmara por vezes tem alguma dificuldade em acompanhar-nos ao ritmo certo, deixando alguns balões de diálogo cortados, mas nada de grave. O jogo conta com um modo cooperativo local, sendo possível um segundo jogador controlar Daffodil, o felino que acompanha Stella nas mais de 30 horas de jogo.
A banda sonora excecional trata de ser bastante diversificada em intensidade e ritmos para gerar ambientes entusiasmantes, tristes ou alegres muito competentemente. Os efeitos sonoros são de qualidade e, na ausência de vozes, as vocalizações que cada personagem emite são merecedoras de elogios, pois emulam impecavelmente as personalidades dos falantes. Juntamente com as animações, é o som que torna o jogo tão expressivo.
Nada é perfeito, e Spiritfarer não foge à regra com as suas pequenas farpas nos controlos, menus e outros tecnicismos, mas, com um grafismo lustroso, uma sonoridade de excelência e uma narrativa profunda numa armação improvável, o jogo da Thunder Lotus tanto nos põe a plantar cenouras como nos põe a chorar, tanto nos faz sorrir como nos faz tratar das galinhas. É difícil manter a apatia num jogo que nos implora por soltar emoções e aprender com isso; é, no fundo, essa habilidade que faz de Spiritfarer uma experiência tão meritória e um candidato ao que de melhor há para se jogar neste ano. Trata-se de uma magnífica viagem de emoções agridoces que mescla a efemeridade da vida com o arrastar da despedida numa perspetiva multifacetada da morte. É a conquista sobre o medo de partir, a absorção da perda em forma de um abraço.