Entrevista. Rui Tavares: “Se Trump perder, veremos que estes tipos são derrotáveis”
Nota prévia: Entrevistámos o historiador e político Rui Tavares no passado dia 22 de outubro, em Lisboa. A História e a política são dois temas amplos, ricos e intensamente interligados, pelo que as duas horas de entrevista passaram rapidamente. Para isso também contribuíram as pessoas que acompanham a Comunidade Cultura e Arte, que enviaram temas e questões, que em muito enriqueceram esta conversa. Agradecemos a vossa colaboração. Queremos que estes trabalhos sejam representativos dos vossos interesses, porém, não foi possível incluir algumas das temáticas que propuseram, dadas as limitações do tempo. Assim, priorizámos temas prementes, que estejam na ordem do dia e que podem ser apresentados da seguinte forma: a) eleições norte-americanas; b) a atualidade política e presidenciais portuguesas; e c) o mais recente projeto de Rui Tavares, “Agora, Agora e Mais Agora”, que originou um podcast e, em breve, um livro.
Como foi fazer campanha pelo Bernie Sanders?
Fiz pouca campanha por ele. Estava a dar aulas nos Estados Unidos, enquanto as eleições primárias do Partido Democrata avançavam rapidamente de estado em estado, e integrei a campanha em New Hampshire, ao lado do estado onde estava. Mas respondendo de forma rápida, o que eu senti foi imenso frio, pois estava com umas botas que não davam para aquela quantidade de neve… A água entrava por baixo das botas! (risos)
Mas foi impressionante! Fiz campanha nas zonas rurais do New Hampshire e, basicamente, andei de pick up pelo estado, com um tipo que era estofador, com uma aplicação no telemóvel. Assim, procurávamos uma quinta perdida no meio daquilo, graças ao telemóvel com o GPS, e com acesso à base de dados, porque lá sabe-se quantas pessoas vivem numa determinada casa, quantas são democratas e quantas são republicanas. Portanto, era muito rural, mas muito tecnológico, ao mesmo tempo. Também nos deram um repositório de argumentos, com as posições do Bernie Sanders para fazermos campanha e prepararmo-nos, de um momento para o outro.
Tudo aquilo tinha um sentimento de entreajuda muito interessante. A base de operações era numa casa na cidade mais importante daquela região de New Hampshire — em Portugal, dificilmente seria considerada cidade, pois só tinha uma estação de correios, um bar e pouco mais, eram tipo três ruas —, cujos donos eram um casal, que passavam o tempo todo a fazer sopa para o pessoal da campanha. Por ali passavam dezenas de pessoas, que andavam de carrinha para cá e para lá, paravam ali, aqueciam-se um pouco à lareira, comiam uma sopa, recebiam mais uma lista de casas para visitar e iam por ali fora… Só com muitos voluntários era possível fazer algo assim. Isto diz-nos sobre a enorme e extraordinária vida política do Bernie Sanders.
Em 2018, estive em Vermont, estado onde ele é eleito e organiza um encontro regular, chamado “The Gathering”. Nessa ocasião, o Bernie Sanders contou que na primeira vez que se candidatou teve 2%. Na segunda vez que se candidatou, teve 1%. Portanto, a coisa estava a evoluir, mas não numa boa direção.
Mas as pessoas sabem que a política mudou e que ele, naturalmente, teve posições novas, mas baseadas num cerne de princípios que é o mesmo, o que permite que as pessoas confiem nele, quer concordem, quer não. Todos sabem de onde vêm as ideias de Bernie Sanders. E assim se explica como se pode ter um milhão de voluntários, pelo país todo, a falar com as pessoas.
Com o afastamento do Bernie Sanders, o futuro da esquerda progressista, que os norte-americanos chamam de socialismo democrático, fica enfraquecido?
Estão a ver coisas bem, por lá: a primeira tarefa é salvar a democracia americana e o planeta. Se Trump for derrotado, o Biden, que é de uma ala mais centrista do Partido Democrata, vai, pelo menos, voltar a colocar os Estados Unidos nos Acordos de Paris. Apesar de tudo, já não é pouco. Por isso é que desde Bernie Sanders a Noam Chomsky dizem, de forma declarada “votem no Biden!”. As instituições norte-americanas foram extremamente frágeis perante Trump. Se ele for um bocadinho mais competente no segundo mandato, não sei se as instituições americanas aguentam. Ele vai começar logo por “limpar” os últimos focos de resistência que existam no Estado Federal.
Portanto, a primeira parte passa por derrotar Trump, colocar o país nos Acordos de Paris e começar a usar bem o pouco tempo que temos para combater as alterações climáticas, antes que isto se torne inviável para a manutenção da biodiversidade e para a própria estabilidade da vida no planeta.
Depois, e aí sim, pode pensar-se no futuro do socialismo democrático e do progressismo americano, que está em boas mãos. Há uma nova geração, que foi eleita em 2018 e voltará a ser em 2020, que está a ganhar primárias no Partido Democrata. O mapa para 2022, do Senado, é favorável aos Democratas e é mau para Republicanos. Acredito que esta nova geração vai puxar o Partido Democrata para a esquerda.
Por outro lado, apesar deste afloramento de nacional populismo autoritário dos anos Trump, as tendências demográficas nos Estados Unidos da América apontam para que, ou o Partido Republicano toma o poder agora e não larga, como estão a tentar fazer com o Supremo Tribunal, ou então vão estar isolados durante bastante tempo. No dia em que um estado como o Texas passar da coluna republicana para a democrata, os republicanos vão ter uma travessia no deserto. Alguns vão continuar a achar que só chegarão ao poder pelo extremar do discurso, ou seja, falando para os setores mais racistas e reacionários da sociedade, mas vão isolar-se mais ainda. Pode acontecer o que aconteceu com a vitória de Roosevelt, nos anos 30, a partir da qual o Partido Republicano passou duas décadas sem chegar ao poder.
No entanto, Trump vai deixar a sua marca no Supremo Tribunal e no judiciário americano durante, talvez, meio século, se nada mudar. Os democratas só conseguem combater isto se estiverem dispostos a tomar medidas corajosas, como tornar Washington DC e Porto Rico em estados, que é algo que já se devia ter feito há muito tempo, para ter maioria no Senado e expandir-se, provavelmente, o Supremo Tribunal.
Caso Trump seja derrotado, as forças reacionárias e neofascistas ao redor do mundo vão ressentir-se?
Vai quebrar a ideia de que era inevitável a vaga nacional populista. Em nenhum lado, nas democracias consolidadas, essas forças têm maioria. Trump ganhou com minoria. Em nenhum país da Europa ocidental têm maiorias, apesar de se ter dito que a Le Pen ganhava. No Reino Unido, ganharam o referendo do Brexit, mas, na verdade, Boris Johnson não tem maioria social. Só com aquele sistema eleitoral é que tem uma maioria no parlamento, que corresponde a 40% de votos. Havia comentadores, alguns à esquerda, infelizmente, a quem interessava fazer um discurso de que o nacionalismo era o futuro, para conseguirem “bater” na Europa e na ideia do projeto europeu. Mas se Trump perder, veremos que estes tipos são derrotáveis.
O meu medo, na Europa, é que o regresso dos democratas à Casa Branca, que não é ainda garantido, possa ser interpretada como um “regresso à normalidade”, em que a Europa desista de ter a sua autonomia estratégica, achando que estar na coluna de seguidores dos Estados Unidos, regressados ao normal, é suficiente. O “normal” da super-potência mundial que são os Estados Unidos da América não tem um historial sempre positivo. O normal é também guerra no Iraque, Guantanamo… Nem os interesses dos Estados Unidos da América são sempre coincidentes com os interesses europeus ou da União Europeia, que é constituída por médios e, principalmente, pequenos países. Espero que se aprenda a lição de quatro anos de Trump, mesmo que se transformem em oito anos, e que a Europa perceba que tem de democratizar-se, para que os 500 milhões de europeus possam construir o nosso próprio destino, numa globalização que pode estar à beira de uma bipolarização entre Estados Unidos e China. Nem na proteção de dados, nem na ecologia, nem nas questões pandémicas, nem nas questões do autoritarismo e vigilância, nem nos interessa o modelo chinês ou o modelo dos Estados Unidos da América. A Europa tem que construir o seu próprio modelo. E só o pode fazer unida. Se os países médios e pequenos europeus se deixarem fragmentar, basicamente, são pasto para as novas super-potências globais. Tal como as esquerdas sonharam no século XIX, com Victor Hugo, e antes, com Voltaire e outros autores, podia fazer-se uma grande república europeia. Só assim se terá força para falar cara a cara com os Xi Jinpings, Putins e Trumps e, a nível internacional, impor uma agenda que seja favorável a países médios e pequenos.
Em determinado momento, Pepe Mujica, que abandonou a vida política recentemente, disse uma coisa engraçada: “os europeus queixam-se da União Europeia, mas quem me dera ter isso na América do Sul”. A MERCOSUL não é um parlamento totalmente eleito, como é o Parlamento Europeu, nem o mesmo tipo de integração que temos na União Europeia. Portanto, quando ouvimos Mujica dizer que temos aqui, na Europa, algo precioso e de que devemos cuidar, ao mesmo tempo que ouvimos Putin ou Trump a dizerem que a União Europeia é o pior inimigo deles, parece-me que há aqui uma mensagem. Se um tipo dos mais progressistas e clarividentes na maneira de ver a atualidade, de um país pequeno como é o Uruguai, diz que temos que transformar a União Europeia numa ideia audaz e ambiciosa, acho que ele está a dar-nos uma boa rota, uma boa dica.
Esta entrevista também teve o contributo de Rui André Soares.