“The Disciple”, realizado por Chaitanya Tamhane: magnífico conto sobre a vida árdua do artista
Uma característica de um bom filme é a sua capacidade de encapsular na primeira cena todo o filme. “The Disciple” é exemplo de tal. O filme abre com uma interpretação musical: em palco, o vocalista, acompanhado de quatro músicos, canta um raga, elemento central da música clássica indiana. A câmara, que de início tem o vocalista como figura central, lentamente nos redireciona o olhar para um dos músicos. Este é Sharad, o discípulo titular, que admira o talento do seu mestre. Em uma só cena, Chaitanya Tamhane apresenta-nos as personagens e os temas principais do seu novo filme.
“The Disciple” foi escrito, montado e realizado por Tamhane, cineasta de apenas 33 anos de idade. O filme estreou em setembro no Festival de Veneza, onde foi distinguido com o prémio de Melhor Argumento e o prémio FIPRESCI (atribuído pela Federação Internacional de Críticos de Cinema). Por cá, integra a secção Em Competição do LEFFEST’20. Tamhane dera já que falar em 2014 quando a sua primeira longa, “Court”, vencera Melhor Realizador no Festival de Mumbai e fora selecionada para representar a Índia nos Óscares.
Sharad é um jovem de 24 anos que ambiciona cantar Hindustani, música tradicional do norte da Índia. Segue as pisadas de duas figuras-chave: uma presente (o seu mestre Guruji) e uma passada (o seu falecido pai). Ambos tiveram como mentora Maai, lendária cantora que nunca permitira a filmagem das suas interpretações. O único vestígio do seu génio é um conjunto de cassetes que o pai de Sharad gravara em segredo. Seja em casa, no trabalho ou na rua, Sharad faz-se sempre acompanhar destas gravações, para ele ensinamentos sem igual.
Hindustani é uma arte delicada e exigente, que é tão técnica quanto espiritual. Requer anos, décadas de prática, como também uma imersão completa na sua filosofia. Sharad está ciente do preço e a sua dedicação é, portanto, total. Não há tempo para distrações, nem mesmo amorosas. A solidão é uma constante na sua vida: em criança mal brincava com os amigos, em jovem rejeita empregos a tempo inteiro, em adulto a música continua como prioridade – como obsessão.
A sua busca pela perfeição contrasta com uma Mumbai em constante mudança. A sociedade não tem ouvidos para a música que ele vive e respira. São várias as situações em que Sharad se confronta com este facto inevitável. Veja-se o seu aluno, que deseja pertencer a uma banda de fusão de música clássica com música ocidental. A funcionária da biblioteca que nunca ouviu falar de Maai. A concorrente do programa televisivo, que abandona as suas raízes tradicionais por canções comerciais. Todos estes são atos de alta traição aos olhos de Sharad.
Falemos do ator por detrás de Sharad, Aditya Modak. Músico na vida real, Modak é apenas um estreante na representação – um facto surpreendente atendendo à sua interpretação incrível. Modak pinta um retrato do artista frustrado sem precisar de se expressar oralmente. Transmite o seu conflito interior pelo seu rosto, as suas dúvidas pelo seu olhar. Poderá ser difícil compreender um personagem que pouco fala, mas é inevitável sentirmos empatia nas cenas dilacerantes que Sharad enfrenta. A tristeza que transparece quando lê comentários negativos sobre si no YouTube, a frustração e inveja que manifesta quando a sua voz falha e a prestação da amiga o suplanta, a ira prestes a eclodir quando um crítico de música difama os seus ídolos – a cena de maior emoção do filme. O desempenho de Modak é ímpar e constitui, de longe, a melhor interpretação masculina a que assisti este ano.
Outro aspeto relevante da interpretação de Modak é a sua inacreditável transformação física. O jovem Sharad – magro, de olhar esperançoso e de barba feita – dá lugar a um adulto com quase 40 anos e um semblante de quem podia ser pai do jovem Sharad. Assistimos a uma mudança drástica tanto de fisionomia (o andar, a postura, a barriga, o bigode) como de íntimo (a sua determinação apaga-se e cede a um resignar, face a todos os contratempos e dúvidas que a vida lhe lançou). Este é o raro exemplo de uma transformação que realmente contribui para a narrativa, ao invés dos tão comuns “ganhou 30 quilos para o papel? Óscar!”
Afirmar que Modak carrega o filme seria injusto para com Tamhane, porque a sua obra está longe de ter como única qualidade a interpretação de Modak. “The Disciple” é exemplar em todos os domínios do cinema: um argumento empático e comovente, uma fotografia sublime que enquadra em cada plano dimensões emocionais e culturais, um domínio da luz e da cor que distingue o presente do passado e o tradicional do moderno, uma banda sonora que tanto serve o tema do filme como abre uma porta para a cultura musical indiana, uma montagem que salta delicadamente de som em som sem qualquer falha.
“The Disciple” é um filme musical sobre as tradições indianas. É um estudo de personagem e uma examinação da relação mestre-discípulo. É uma história sobre devoção com a qual qualquer pessoa se consegue identificar. É também um dos melhores filmes do ano e caso o júri do LEFFEST’20 decida distingui-lo com o Prémio de Melhor Filme, a honra será muito merecida.