Como é que o bicho mexe
Este texto nada tem a ver com o famoso bicho que tem mexido connosco durante a noite, pelas mãos de Bruno Nogueira e companhia. É sim, sobre como parte da sociedade portuguesa escolheu virar as costas à Joacine Katar Moreira. Tratá-la com indiferença, com repulsa, como um corpo estranho. Tudo porque ela teve ousadia de mexer com o bicho.
Lembro-me bem de ser criança e azucrinar a cabeça da minha avó com a minha incapacidade de estar quieto. Muito se esforçava para ter mão em mim, algo difícil, diga-se. E, perante a minha insistência em fazer o contrário do que ela apregoava, dizia: “se os ouvidos não te doem, a garganta também não me dói”. Deixava-me confortável para ser “rebelde”, como me chamava, ao mesmo tempo que me lembrava que estaria sempre por perto para me gritar ao ouvido. Não cresci com traumas, mas cresci com a sensação de que tenho de berrar ao ouvido dos que se portam mal. Diz-se que o mundo não é uma creche e que as pessoas odeiam ser ensinadas: culpem a minha avó!
Na madrugada de quinta-feira, Valete anunciava o lançamento de cinco novas músicas. De todas há uma que se destaca: Rua Do Poço Dos Negros. Com um vídeo carregado de imagens históricas e contemporâneas da luta anti-racista, Valete surge a dizer coisas como: “Tutorial de racismo estrutural /Diz-me, quantos George Floyds já tivemos em Portugal? / Nosso povo ainda está na cruz / Sou preto como a minha luz / Preto como Jesus. / Não vamos fingir que agora é só progressistas / Interessados em salvar os negros do linchamento/Não vamos fingir (…) que o André é o único fascista no parlamento.” E acrescenta: “Beyoncé não, eu quero Joacine”.
Se antes tinha ficado com a sensação de que Valete tinha estado menos bem com a música “BFF”, e tudo o que se seguiu, desta vez não podia estar mais feliz. Valete apontou a caçadeira para os que a merecem de facto. E basta um passeio, nada higiénico, nas caixas de comentários para se perceber isso. Se, por norma, às caixas de comentários não se leva a sério, desta vez teremos de abrir uma exceção. Aqueles comentários, escritos maioritariamente por fãs de Valete, são reveladores de como a fragilidade humana pode levar-nos até um lugar muito estranho. No meio de todas as problemáticas urgentes mencionadas por Valete, a indignação vira-se contra a menção a Joacine. Muitos escolheram demitir-se do lugar de fã, ou de apreciador da obra do Valete porque, segundo estas pessoas, Valete está a contribuir para a divisão no país com esta música. Há até quem o chame de racista e extremista. A música de intervenção é agradável de se ouvir até tocar no nosso privilégio.
Arrisco-me a dizer que os mesmos que aceitam refletir quando o Kendrick Lamar canta sobre a mesma temática (“You hate my people, your plan is to terminate my culture /You’re fuckin’ evil I want you to recognize that I’m a proud monkey”); ou que se deixam tocar com o This is America de Childish Gambino, acharam que Valete foi longe demais. Porque, lá está, Portugal não é América. E não é, de facto.
O que ficou provado com a reação à música de Valete, mas sobretudo com a reação à menção a Joacine Katar Moreira em particular, é que, mais uma vez, quem se tenta mover contra as estruturas da sua sociedade precisa de o fazer com convicção e força imensuráveis, porque a estrutura retalia ainda com mais força. São elefantes na sala que se acordam, apesar de terem sempre lá estado. Aí é que vemos como é que o bicho mexe. E mexe contra quem o tenta mover do lugar de conforto onde se encontra há tanto tempo quanto a sua própria existência.
A sociedade portuguesa é estruturalmente misógina, racista, homofóbica e xenófoba. Podia já́ ser desnecessário explicar, mas isto não significa que todos os elementos desta mesma sociedade sejam misóginos, racistas, homofóbicos e xenófobos. No entanto, aqueles que o são, são-no em resultado de um sistema que os produz — é a sua função. Sendo assim, seria natural que a maioria de nós fosse instrumento de opressão deste sistema, devido à socialização nas suas instituições. Simultaneamente, somos todos suas vítimas, directa ou indirectamente.
Como disse Audre Lorde: “Não serei livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as suas correntes sejam diferentes das minhas”. Podemos aplicar este ideal a toda a humanidade: não seremos livres enquanto outros seres humanos forem oprimidos, especialmente se for na nossa sociedade. Até porque, lutar contra as estruturas opressivas não é lutar contra indivíduos em particular, ainda que o seja também. Nesse sentido, alguém ser atacado pelo sistema individualmente deveria ser entendido como um ataque a todos nós.
O anti-racismo em Portugal, que tanta tinta fez correr nos últimos meses, tem sido uma luta coletiva. Mas o sistema escolheu um alvo especifico e imperdoavelmente unânime: Joacine Katar Moreira. Uma das três mulheres negras na Assembleia da República tem sobre si canalizada o ódio racial e misógino, juntos e não separados.
Portugal desconfiou quando viu chegar Joacine, riu-se quando a ouviu falar, e mandou-a para a sua terra quando perdeu a paciência para o debate que ela forçava. A facilidade como que se ataca Joacine não tem precedentes. Existe, contra ela, uma cobrança como não se vê em relação a mais nenhum político. À Joacine pede-se moderação, recato e obediência. Pede-se que saiba estar e que não reaja mesmo que esteja a apanhar.
Enquanto isso há um deputado que se sente confortável para atropelar a Constituição, perseguir grupos étnicos e mandar uma deputada para a sua terra. Fá-lo porque pode. Fá-lo porque, se há quem não saiba como travá-lo, outros não se importam de abraçá-lo. Como foi o caso de Rui Rio — que escolheu não condenar os atropelos constantes que o André Ventura faz à democracia, mas sim premiá-lo com um acordo de governação e promessas de negociações futuras, contribuindo para o seu branqueamento, deixando-o cada vez mais confortável. Tão confortável que no mesmo dia em que André Ventura é multado por discriminar ciganos decide reincidir o crime, mandando novamente Joacine para a sua terra. Porque pode. Porque na vida como na creche, uns podem tudo, aos outros é pedido que cresçam e apareçam.
Tem sido recorrente o abuso que a deputada sofre dentro da casa da democracia, mas também fora dela. Que fez Joacine Katar Moreira para merecer tal perseguição? Moveu-se contra o bicho. E da esquerda à direita olha-se com indiferença. Arranjam-se desculpas para o silêncio. Há quem negue a existência dessas forças opressivas que ela denuncia. Há quem tente invalidar a forma como as denuncia. De um lado ao outro há um consenso em ficar-se quieto.
Admito que haja quem se sinta, de alguma forma, enganado ou desiludido com a Joacine mas política é feita de atropelos de expectativas, porque a política é feita por pessoas, e as pessoas desiludem. E para os que optam por levar a discussão para o campo da personalidade da Joacine, ou as quezílias entre ela e o antigo partido, não discuto traços de personalidade. Discuto, sim, esta postura de ataque, sem culpa nem remorso, porque em Portugal, até ver, somos todos boas pessoas, mas há quem mereça apanhar.
Joacine está na base da pirâmide da sociedade portuguesa. Ela é a cara das mulheres negras que um dia ambicionaram estar no seu lugar, e até mesmo das que se levantam às 4h da manhã para limpar os transportes públicos, centros comerciais, casas particulares e escritórios. Quando ela se move, toda a sociedade move, mesmo que contra ela. “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela” — Angela Davis.
E se grito sempre aos vossos ouvidos é porque este país, tal como o eu em criança, escolhe portar-se sempre mal (com os mesmos!).
Crónica escrita por Carlos Manuel Pereira e Airton Cesar Monteiro.
Carlos Manuel Pereira é licenciado em Ciência Política no ISCTE, mestrado em “discussões sobre o racismo” no Twitter. Humorista, pelo menos eles dizem que tenho piada e eu acredito neles. Tenho uma rubrica de humor da RDP África – NA CORDA BAMBA. E amigo dos seus amigos porque ser amigo dos seus inimigos é parvo.
Airton Cesar Monteiro é imigrante cabo-verdiano e licenciado em Relações Internacionais não praticante. Militante interseccional