Nossa Lisboa (dia 2): a festa da lusofonia

por Tiago Mendes,    14 Setembro, 2021
Nossa Lisboa (dia 2): a festa da lusofonia
Soraia Ramos. Fotografia de @worldacademy.pt (Facebook do Nossa Lisboa)
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O Nossa Lisboa continuou a mostrar a montra de talento que habita no território da capital portuguesa, no segundo dia do festival. A programação revelou a riqueza dos patrimónios geográficos que habitam e trabalham na capital do nosso país, e a generosidade do público mostrou a alargada abertura e permeabilidade de tantos ouvidos nesta festa musical e cultural que foi e é de todos — num cenário ainda pandémico que desafiou a paciência mútua dos espectadores e da organização. Fez-se a festa possível, e dançou-se muito, embora cada um no seu metro quadrado.

Começámos a tarde no palco secundário, na Sala Tejo, para ouvir Ivandro. O artista de alternativo foi recebido por uma plateia imensa que praticamente encheu aquele recinto (na véspera, os concertos à mesma hora na Sala Tejo haviam contado com plateias bem mais reduzidas). Dava a impressão de que o público deste segundo dia do festival era, em média, mais novo que no anterior. E as vozes acompanharam os temas de Ivandro com uma devoção calorosa, que o músico agradeceu muitas vezes. De tema em tema, a voz melódica de Ivandro explorava a emocionalidade das palavras; e o momento mais especial do concerto acontece quando chama Bispo ao palco, para interpretar consigo “Essa Saia”.

Ivandro. Fotografia de @worldacademy.pt (Facebook do Nossa Lisboa)

Damos um salto à sala principal da Altice Arena, infelizmente praticamente vazia, para assistir à primeira metade do concerto de Nancy Vieira. Acontece que no exterior se avolumavam imensas filas para aceder ao Palco 3, na escadaria exterior; o hype para o concerto de Soraia Ramos captou a atenção e a mobilização da maior parte da assistência do Nossa Lisboa. Ainda assim, Nancy Vieira terá oferecido um dos mais suis generis concertos desta edição do festival: acompanhada de Fred Martins na voz e na guitarra, e de mais um baixista e percussionista, Nancy ofereceu generosamente ao público um momento improvavelmente intimista naquela que é a maior arena fechada do país. Entre mornas e sambas, sentiu-se o cuidado e o carinho na abordagem à música, com arranjos minimalistas e aconchegantes. Um momento com sabor a pequeno tesouro escondido num cartaz amplo e ambicioso.

Mas não ficamos até ao fim, porque chegava a hora de início do concerto de Soraia Ramos, no Palco 3 (escadaria exterior da Altice Arena). A voz da artista portuguesa — de origens cabo-verdianas e emigrante em França e na Suíça na sua juventude — é um diamante cristalino; a forma como Soraia entoa as palavras é dotada de uma clareza límpida, e deliciosa de ser ouvida. Sabemos que o número de ouvintes mensais no Spotify não é um dado que deva ser analisado isoladamente na alocação dos artistas a cada palco, mas os mais de 300.000 ouvintes de Soraia Ramos exigiam a sua alocação a um palco com maior lotação no Nossa Lisboa. A consequência foi as centenas de pessoas que, sem acesso ao Palco 3, procuraram outras formas menos propícias para desfrutar do espectáculo (foram muitos os que, num perímetro alargado, assistiram ao concerto através do gradeamento exterior do festival).

Selma Uamusse. Fotografia de @worldacademy.pt (Facebook do Nossa Lisboa)

O público de Soraia Ramos cantava muitas das músicas de cor, também de acordo com o convite que a artista constantemente dirigia à plateia, repetindo os refrões a capella no final de cada tema. São canções de empoderamento, composições contagiantes mas que teriam exigido um contexto de fruição mais próximo e caloroso. Lisandro Cuxi vem ao palco interpretar um tema seu, e depois “Bae” com Soraia; a artista comove-se com o sucesso e o talento do amigo. Mas havia muitas outras razões para derramar lágrimas de felicidade: que início de noite cheio se viveu ali, ao som da música pop e do kizomba de Soraia Ramos.

Por termos ali ficado até ao fim, apenas tivemos oportunidade de assistir ao final do concerto de Selma Uamusse na Sala Tejo. Isso não nos impediu, contudo, de perceber que ali ocorreu um grande espectáculo. Nos quatro temas finais a que tivemos oportunidade de assistir, Selma entregou-se com uma energia e intuição comparáveis às de Erykah Badu — mas ainda mais selvagem e intensa. Passeando-se por entre o público, dançando freneticamente, aventurando-se por trilhos vocais arriscados e apaixonados, foi um final de concerto que guardamos na forma de promessa: numa próxima oportunidade, teremos de ouvir um concerto inteiro da artista. Foi neste concerto que ouvimos a ovação mais prolongada em todo o festival — quase um minuto seguido de aplausos. Brilhante.

Nelson Freitas. Fotografia de @worldacademy.pt (Facebook do Nossa Lisboa)

Dançámos ao som de Nelson Freitas na sala principal da Altice Arena. A música cabo-verdiana transformada num R&B que gerou enorme popularidade foi contagiante, embora o concerto tenha tido um sabor algo formulaico. Mas o ritmo contagiante e a banda mais que competente, a par de entrega vocal do próprio Nelson Freitas, fizeram do espectáculo um dos momentos altos da noite. Por ali termos ficado agarrados (embora cada pé não permanecesse no chão mais de dois segundos), perdemos grande parte do concerto de Valete no palco secundário; do pouco que ouvimos, entendemos que o rapper estava a surfar uma onda de energia contagiante, com o público a vibrar com os beats e a deliver fluída e vertiginosa do artista.

A noite e o festival terminaram com o concerto de Ana Moura na sala principal da Altice Arena. A fadista portuguesa — que ultimamente tem vindo a ousar trilhar novas latitudes sónicas — apresentou-se com uma banda imensamente talentosa, embora infelizmente o público não abundasse nas bancadas do recinto (foi o último concerto de um dia em que uma percentagem significativa do público havia sido mais nova, cativada por outros artistas). O concerto de Ana Moura coseu as pontas de todo o festival, com um repertório que fez jus a vários géneros musicais e com um foco muito particular em África. A última da noite foi precisamente um cover de “Kaxexe”, de Bonga, artista presente na véspera. Foi um final digno para um festival que se veio implantar num timing complicado e ousado, mas que se afirmou com um carácter de força e urgência no panorama musical lisboeta. Ao conhecermos todas estas cidades dentro da nossa cidade, sentimo-nos um pouco mais parte dela e uns dos outros. Fica a sensação de que, sim, é por aqui o caminho.

Ana Moura. Fotografia de @worldacademy.pt (Facebook do Nossa Lisboa)

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