“Nomadland”, de Chloé Zhao: o retrato de uma América à margem
“Quantas vezes choraste?” perguntava um espectador a outro à saída da sala. A questão é pertinente, pois são várias os momentos de grande emoção ao longo dos 110 minutos de “Nomadland”. O filme teve a sua estreia mundial em setembro no Festival de Veneza, onde ganhou o Leão de Ouro (para melhor filme). Passou depois por Toronto, onde ganhou o People’s Choice Award (prémio máximo do festival), e esta semana por Lisboa, como filme de encerramento do LEFFEST’20.
“Nomadland” é o fruto de uma mulher de muitos ofícios: Chloé Zhao (pronuncia-se “jau”). Nascida e criada em Pequim mas formada em cinema em Nova Iorque, a cineasta chinesa escreveu, montou, realizou e produziu esta que é a sua terceira longa. O filme é uma adaptação do livro de 2017 da escritora e jornalista Jessica Bruder. Estamos no ano de 2011. O impacto da crise financeira de 2008 é evidente logo pelos créditos iniciais. Empire, uma cidade do estado do Nevada, erguera-se há quase um século em torno de uma fábrica de pladur, que empregava a maioria da população. Com o fecho da fábrica seguiu-se o fecho da cidade. Sem emprego e sem casa, os trabalhadores viram-se obrigados a procurarem uma vida nova noutro lugar.
Uma das habitantes de Empire é Fern (Frances McDormand), mulher na casa dos sessenta. A tragédia é ainda maior no seu caso, com o recente falecimento do marido. Sem nada a perder, Fern embarca numa viagem de autocaravana pelas regiões oeste e centro-norte dos E.U.A. – Califórnia, Arizona, Nebrasca, Dacota do Sul – em busca de emprego. Pelo caminho, cruzar-se-á com um mosaico de personagens, todas elas trabalhadoras itinerantes. Personagens estas que são na realidade pessoas. Nos créditos finais, vemos que Linda May é interpretada por Linda May, Swankie por Swankie, Bob Wells por Bob Wells. Zhao reúne uma série de verdadeiros nómadas e coloca-os em primeiro plano. A autenticidade e o à vontade que estes atores não-profissionais transmitem no ecrã são magníficos. O monólogo de Swankie sobre a vida que levou, uma vida em comunhão com a natureza que lhe proporcionou momentos belíssimos, é talvez a cena mais comovente a que assisti em 2020.
Falemos agora de McDormand. A actriz de “Fargo” (1996), “Olive Kitteridge” (2014), “Three Billboards…” (2017) e muitos outros tem em “Nomadland” uma das suas melhores interpretações. Logo na primeira cena, um simples abraço de Fern ao casaco que pertencera ao marido diz-nos tudo. Quem não conhecesse a atriz, acreditaria que também ela é uma nómada na vida real. É impressionante como uma estrela de Hollywood como McDormand não emana por um segundo que seja aquela qualidade de estrela que associamos a uma atriz da sua fama.
“Nomadland” é portanto um híbrido que entrelaça narrativas fictícias e reais. Esta que é a sua principal característica será também o que diferenciará fãs de detratores. O cruzamento entre a ficção e o documentário poderá não convencer os espectadores que tomem o projeto de Zhao como uma exploração da desgraça dos outros. Uma posição justa mas que a meu ver não se justifica no caso de “Nomadland”. Zhao filma os seus sujeitos com empatia, nunca com pena – uma linha ténue de se percorrer. Swankie, Bob e Linda não são desgraçados, mas sim sobreviventes. Zhao demonstra uma sensibilidade e sinceridade fundamentais para abordar o tema sem cair no miserabilismo.
Formalmente, Zhao monta um filme lírico sem nunca ceder a exibicionismos. A sua câmara é estática durante os momentos de partilha das personagens. O importante é o testemunho, não qualquer encenação dramática. Joshua James Richards, diretor de fotografia de “God’s Own Country” (2017) e das duas longas anteriores de Zhao, captura a beleza intocada dos E.UA.. As paisagens são deslumbrantes e diversas, desde violentas ondas, a desertos rochosos, a sequoias gigantes.
“A gente leva da vida a vida que a gente leva” disse o músico Tom Jobim. “Nomadland” é a encarnação fílmica desta frase. Um filme meigo e compreensivo, que é tanto sobre a vida como sobre a morte. Uma coisa é certa: esta não será a última vez que ouvimos falar de Chloé Zhao. Nem que seja porque a cineasta é a realizadora de “Eternals”, novo filme da saga MCU (Marvel Cinematic Universe). Terá estofo para fazer tanto cinema de autor como megaproduções sobre super-heróis? Já nos provou que sim quanto ao primeiro. Quanto ao segundo, aguardamos ansiosamente.