Ary dos Santos, um poeta com uma extensão extracorporal
“Poeta de combate disparate
palavrão de machão no escaparate
porém morrendo aos poucos de ternura.”
Feira do Livro, Lisboa, agosto de 2020. O nonagésimo aniversário traduziu-se na primeira edição através da qual ninguém trespassava a sentinela na área delimitadora do recinto sem mordaça de efeito labial e nasal e a respetiva dosagem de lixívia para as palmas das mãos e espaços interdigitais. Entre a pressa de atracar na primeira banca de venda e o percorrer furtivo de outras tantas que os pregos queriam suportar, o repouso sobre a parafernália de palavras e folhas que teimavam em saltar à vista, em catadupa.
O tempo foi esguichado pelo conta-horas, assim como a indecisão, as conversas em família sobre o calhamaço x e y, a espera diante do ramal de cabeças de livro em riste e os níqueis — a designação é benévola e inocente — resistentes, audazes soldados do período de férias, de modo a que permanecessem no bolso até à última gota de luxúria. Ary dos Santos regressou no braço, firme, e integrou a comitiva que comigo se deslocara à “pseudo euro-cidade”.
O usufruto da compra reinou meses mais tarde. No decurso de uma aula universitária que bradava aborrecimento e me impelia num comboio de bocejos, a obra poética aceitou ser arremesso e solução para o tédio.
Iniciei a travessia pela Liturgia do Sangue (1963). O sangue, o líquido ruborizado, sempre ele, apto a desbravar inúmeros caminhos pela densa e vasta floresta das emoções e da condição humana. Se Ecce Homo apresenta laivos de descrença, soterrando os deuses à efemeridade humana, Intróito representa a tão comum e sôfrega vontade de agarrar a pessoa amada e não mais dela se desprender. Soneto é a batalha interna em busca do manancial da angústia e do embate com os pecados destrinçados no senso comum e Viagem a demonstração in extremis da alma que tem sede do desconhecido, da descoberta e de todas as vicissitudes aí implicadas, mesmo que o medo a tolha.
De súbito, a transposição para o impressionante: Adentrei pelo Tempo da Lenda das Amendoeiras (1964): a mente perpetrou o plano da poesia teatral e ergue-se como instrumento ficcional acompanhado de um rei, uma princesa, um mago, uma bruxa, um curandeiro e um poeta.
Nessa mesma noite — e posterior madrugada — adornei, preveni e acalentei um cubículo glacial na região transmontana e folheei Adereços e Endereços (1965): o capítulo (re)veste a poesia e o próprio poeta, contornando-lhes as linhas e as feições e conferindo-lhes uma postura mais requintada, matura e com uma certa incumbência no decorrer das interações sociais, promovendo o estilo mordaz ao expoente profundo e supremo, simultaneamente.
A aproximação à época natalícia e a paradoxal diáspora familiar incitou-me ao Insofrimento In Sofrimento (1969): daqui, extraem-se as extensas antíteses provocadas pela simplicidade de uma palavra, os gritos mudos, os silêncios registados por elevados decibéis, uma burguesa descascada a bel-prazer de uma língua afiada (Pavana para Uma Burguesa Defunta), uma Lisboa pútrida e depravada (Lisbon By Night) e os ofícios que por si escorrem suor, lágrimas e indigência (A Pesca e A Cortiça). Resta, ainda, um Posfácio capaz de instigar à autorreflexão nos meios não líricos, recheado de defesa e resistência próprias, salvaguarda da sua espécie: através dos sete pecados capitais — e não somente os reunidos na Capital — Ary puxa a brasa à sua dourada.
Até que enfim! A quadra natalícia atravessou o globo terrestre. Todos os anos chegam, através das plataformas digitais, fotografias relativas ao período visado. Em 2020, precavi-me e debrucei-me sobre Fotos-Grafias (1970): aqui, observa-se o cruzamento de intervenientes literários de gerações díspares entre si com uma trabalhadora agrícola mártir do salazarismo (Catarina Eufémia) e uma ativista e ex-dirigente do Partido Comunista Português (Carolina Loff). Os ideais, a constatação de feitos (para si) gloriosos, as palavras de amor tecidas e os súbitos desejos traduziram-se nos versos dirigidos, postumamente ou não, capazes de redigir a construção de Ary enquanto poeta.
O capítulo que se seguia suplicava a vinda de abril. Para quê a espera, quando pode ser celebrado todos os dias? Escancarei as portas do pensamento, As Portas Que Abril Abriu (1975): a liberdade na sua plenitude; as palavras, soltas, percorrem um dos períodos mais negros da história do lusitanismo.
Continuei a folhear. O embevecimento fluía nas veias. Deslindei O Sangue das Palavras (1978): um aglomerado de poemas repletos de carga política (Aos Mortos-Vivos do Tarrafal, A Bandeira Comunista e Não Passam Mais), odes à fação operária, ao seu passado, presente e futuro (Soneto do Trabalho, A Terra e A Fábrica), uma tríplice de retratos velados e evidenciados por qualquer comum mortal (O Burguês, O Bombista e A Bruxa), uma homenagem a um companheiro falecido (Mais Pode a Vida) e até a descrição de umas férias algures (As Férias).
O fim. Sentia o término do livro. Talvez Ary o tivesse sentido também. Num propósito de 35, deixou apenas VIII Sonetos (1983-1984) onde ressalta à vista, num primeiro impacto, os tributos a Adriano Correia de Oliveira (Memória de Adriano) e a Manuel Maria Barbosa Du Bocage (Ao Meu Falecido Irmão Manuel Maria Barbosa Du Bocage), intitulado de “irmão” pelo poder da influência e das semelhanças satíricas.
Desde a juventude alvoroçada, um poeta com uma extensão extracorporal, as Asas. Num breve anexo, As Edições do Avante brindaram os leitores e depositaram na brancura do papel as suas trovas imberbes. Na frescura do quinquénio, uma promessa cumprida:
“E canto na certeza do porvir,
Que todo o mundo é meu e eu vou partir
À conquista dos reinos da poesia”