Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra: os pais da filosofia portuguesa do século XX
José Pereira de Sampaio (pseudónimo Bruno, do italiano Giordano Bruno, vítima da Inquisição na agora Itália), nascido a 30 de novembro de 1857 e falecido a 11 de novembro de 1915, e Leonardo José Coimbra, nascido a 30 de dezembro de 1883 e falecido a 2 de janeiro de 1936, são dois dos grandes nomes da filosofia portuguesa, na forma de movimento e de corrente de pensamento. Com sede no Porto, partilharam orientações e perspetivas com outros vultos, como Pedro de Amorim Viana, Delfim Santos ou até Teixeira de Pascoaes. Sampaio Bruno faria parte de uma corrente mais teórica, mais dedicada à escrita e ao desenvolvimento do pensamento; por sua vez, Leonardo Coimbra expandiria os seus horizontes, chegando a Ministro da Instrução Pública, mas também sendo o responsável pela criação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, assim como do próprio movimento da Renascença Portuguesa, um fértil berço de cultura e de produção literária e artística. Unidos, ambos, pela vontade de pensar mais e melhor, com base nos antepassados europeus, mas com sentido transcendente.
A figura de Sampaio Bruno
Sampaio Bruno fez a sua vida e carreira na cidade do Porto. Cresceu numa família em que a maçonaria era presente, sendo que o seu pai pertencia-lhe, embora, durante a sua vida, se tornasse distante dessas instituições. Na Rua do Bonjardim, conheceu as suas origens e as primeiras influências do republicanismo emergente nesse fim do século XIX, cada vez mais crítico da monarquia. Teve uma formação à portuense na altura, com esses valores republicanos mesclados com o liberalismo. Por aí, criaria logo polémica, quando efetuou uma “Análise da Crença Cristã” (1874), que faria estremecer a moralidade da monarquia então vigente, por ter apelidado o catolicismo de obsoleto, anacrónico e moribundo. Faria parte de uma intensa atividade jornalística e literária, que pautaria os ideais republicanos com a experiência internacional que se seguiria ao fracasso da revolta do 31 de janeiro de 1891, na cidade do Porto. Foi nesta atividade que se firmou como um ensaísta, já distante do curso de Medicina em que se havia inscrito. Havia escrito sobre os autores contemporâneos da literatura portuguesa em “A Geração Nova” (1886), analisando o realismo e o naturalismo nos romances literários.
Com esse falhanço, partiria para Paris, onde teve uma privilegiada proximidade em relação à poesia que lá se escrevia, assim como ao próprio socialismo, sobre o qual se escrevia e se experimentava. Foi, também, uma fase onde teve a oportunidade de abrir as fronteiras do seu pensamento e encontrar o misticismo e o esoterismo das religiões convencionais, nomeadamente do judaísmo. Assentes, contudo, estiveram sempre os ideais iluministas, que lhe abriam as portas a uma relação dialética entre o racional e o irracional, entre o positivismo e o misticismo, entre a razão e a natureza (das coisas e da existência). É um encontro com o oculto, que pode ser revelado de forma profética ou mitológica, de forma a encontrar o caminho mais polido para a redenção humana e universal. O ponto de partida acaba de ser o ponto de chegada, o da uniformização de um espírito puro e depurado, na descoberta e na resolução de um dilema universal, que vai diminuindo o homem, enquanto este se distancia da figura divina, e que, nessa tomada de consciência, se retransforma.
Sampaio Bruno pretendia, assim, alcançar um plano filosófico superior ao que a razão lhe proporcionava por ela mesma, onde o mal não é visto como algo nocivo, mas antes como instrumento de superação e de aproximação a uma verdade que procura encontrar o progresso moral e humano. Por exemplo, o caso das touradas é visto, por Bruno, como uma ofensa aos seres vivos e a tentativa de as restringir uma forma de transformar costumes e de mudar o valor subjacente do prazer obtido pelo sofrimento alheio. Por isso, de igual modo, era contra a pena de morte. Trata-se de uma evolução, de um caminho de libertação constante, no qual o ser humano tem um papel ativo e necessário, de cooperação e de entreajuda, no qual o próprio processo sociopolítico deve acompanhar. Por isso, faz uma crítica à presença da Inquisição e da Companhia de Jesus no país, que contribuíram para a decadência moral nacional. Essas fontes de autoritarismo e de indignidade moral frustram Sampaio Bruno, que lhes visa numa crítica que pretende erradicar o mal a partir da República, para si, fonte de uma reintegração do absoluto humano e universal. Tratava-se, assim, de um progresso essencial perante decadências essenciais e acidentais, sendo que eram estas últimas que Bruno considerava que tinham tido lugar em Portugal.
No regresso a Portugal, já em 1893, publicou as suas primeiras obras de teor filosófico, nomeadamente “Notas do Exílio”, “O Brasil Mental” (1898) e “A Ideia de Deus” (1902) , onde apelava a uma filosofia com menos tangibilidade e com mais transcendência, onde as questões do espírito devem ser atendidas com a mesma vivacidade e importância que as da razão. A sua afiliação ao Partido Republicano seria findada em 1902, altura em que, apesar de ainda permanecer, nos seus ideais, um acérrimo republicano, se tornou autónomo no que fazia e escrevia. Assumiria a direção da Biblioteca Municipal do Porto, enquanto escrevia mais duas obras importantes em “O Encoberto” (1904, no qual aborda a questão messiânica na sociedade portuguesa, personificada pelo sebastianismo) e “A Questão Religiosa” (1907). Crescia, assim, uma vertente mais mística e menos racional, algo que viria a interessar Fernando Pessoa, poeta que o assumiria como uma referência futura, apesar da sua morte precoce, aos 57 anos.
É um homem que refina o seu espírito republicano com um pensamento filosófico trabalhado e que, não raras vezes, alude quando aborda conceitos-chave da ideologia republicana. Sobre a liberdade, assume-a como o pensamento sem fronteiras ou limites, onde haja a expansão da moralidade, onde o espírito individual possa ser estimulado e incentivado. É a liberdade que condena que não exista em Portugal até ao momento da Implantação da República e reforça a importância da desobediência fazer parte da própria obediência, assim como o desrespeito do respeito. E é essa liberdade que deve ser suporte da democracia, que deve começar ao nível local, estendendo-se, por sua vez, à escala nacional. Inspira-se nos ganhos da Revolução Francesa e apela ao respeito pelos direitos individuais, para além da participação de cada um nas questões regionais e nacionais, assente nessa dignificação de cada um.
É algo que reforça para vencer a crise de valores da monarquia portuguesa, contando com a contribuição da ação educativa e da iniciativa privada, vencendo a superação do Estado em relação à sociedade. Impõe essa crítica ao despotismo monárquico e do seu autoritarismo face ao comum cidadão, para além da corrupção associada à representação parlamentar existente. As elites devem-se manifestar como fontes de educação e de pedagogia e não de as manipular com fim aos seus próprios objetivos, tornando-as figuras quase messiânicas, pessoalizando ao invés de perceber o que, de facto, estas assumem como suas ideias e perspetivas. De igual modo, é defensor de um conceito mais cosmopolita e diplomata, entendendo o vizinho como alguém que pode ser parceiro e não necessariamente um rival, de forma a dialogar e a contribuir para o desenvolvimento de todas as partes.
“A oração é a aspiração do espírito alterado para o espírito puro; subordina-se a uma lei transcendente de atração. O milagre é a emanação que impulsiona o espírito alterado a avançar na libertação. A providência é o concurso do espírito puro diminuído com o espírito alterado para, pela libertação deste, se completar reintegrando-se o absoluto.”
“A Ideia de Deus” (1902)
A importância de Leonardo Coimbra
Leonardo Coimbra nasceu em Borba de Godim, na Lixa, Felgueiras, e foi lá perto que seguiu os estudos, na cidade de Penafiel. Seria Sol de pouca dura, no entanto, já que saltou para Coimbra e, depois, para o Porto, onde se viria a fixar, depois, já, de ter ido para Lisboa finalizar o seu curso e de ter ingressado na Escola Naval. Neste périplo dentro do país, foi ganhando o gosto pelas tertúlias culturais e intelectuais, para além de adquirir uma consciência crítica muito viva, avivada pelo sentido de instruir e de formar a sociedade. Ao lado de Jaime Cortesão, criaria vários projetos literários e culturais, como a “Nova Silva”, uma revista de cariz libertário e anarquista. Como mencionado, um desses projetos seria a Renascença Portuguesa, do qual a revista “A Águia” é o grande veículo de comunicação, criado no ano de 1913. Seria aqui que, nos seus artigos, escreveria a sua própria perspetiva filosófica, com um pendor de abertura às religiões e à metafísica, assente no essencialismo e na presença de uma entidade sobrenatural a ordenar os acontecimentos e os pensamentos, embora fosse o ser humano a sua maior vocação. Também escreveria em “Serões”, na “Contemporânea” e na “Atlantida” sobre esses aspetos, onde pôde aflorar e aprimorar a sua filosofia. Como obras sonantes, teria “O Pensamento Criacionista” (1915), “A Alegria, a Dor e a Graça” (1916), “A Luta Pela Imortalidade” (1918), “A Razão Experimental: Lógica e Metafísica” (1923).
O conceito de criacionismo é o que pauta toda a sua obra e o seu pensamento, orientando-se por uma linha de pensamento que conduz à liberdade e que apela à infinita capacidade do pensamento humano e à sua libertação de determinismos ao nível social e natural. É por isso que saúda o desenvolvimento científico, já que se trata de uma autoridade por si mesma, superadora de princípios impostos a priori. É um exemplo de como se pode concretizar um acordo social tácito, que contribua para a formação de uma comunidade verdadeiramente solidária e unida, que possa dotar a realidade de um encontro mais real com a verdade e com o sentido da vida. A realidade é movida pela capacidade infinita do pensamento ser gerador de noções e de sentidos e, em termos concretos, da matéria que a forma. Em relação a esta matéria, entra o espírito, a entidade mobilizadora do ser humano de criar e de partilhar as suas criações. É esta dimensão espiritual que permite engrandecer os ganhos da arte e da filosofia, elevando aquilo que a imaginação e os sentimentos lhes trazem. É uma liberdade que não se intimida quando aponta a altos voos, nomeadamente à elevação até ao encontro com a eternidade e com o absoluto.
Isto não implica uma renúncia radical com aquilo que é a vida no seu dia-a-dia, mas antes uma aproximação ao mais puro e real que possibilita que os seres humanos possam ser mais solidários e vão formando autênticas comunidades. No fundo, este criacionismo sustenta-se na liberdade e no pensamento para valorizar a ação humana. Porém, aquilo que lhe traz, de facto, uma partilha autêntica, uma verdadeira socialização da humanidade, são os valores que a religião importa para a conduta humana. É um sentimento que permite expandir-se nessa comunhão de seres, de estares e de fazeres, fazendo de cada humano portador de uma consciência que lhe permite ser, ele mesmo, o todo, enquanto uno e integrado. Trata-se de um processo dialético, que conduz o ser humano, na sua criação, ao alcançar da divindade, a que ilumina aquilo que este cria, dado o infinito alcance da sua ação moral. Com isto, Coimbra quer sublinhar o amor, o amor que a religião possibilita a partir da divindade perante todos os seres humanos, unindo as “almas afastadas” e diminuindo a saudade, essa força tão potencializadora de uma procura pelo auge dessa espiritualidade.
Assim, a filosofia, para Coimbra, é um encontro com a criação, que explica a integração do ser e do saber, numa dualidade que integra, por si só, o ser humano. A existência é explicada desta forma, à luz do que é o pensamento, a sua atividade e a sua verdadeira essência. A filosofia não deixa de ser um sistema aberto e em contínua construção, sendo movida por essa força constante e dinâmica que é o pensamento. Nesta vocação espiritual, está presente o peso da sua formação cristã, que mune a filosofia de Coimbra com um encontro diferente com o anarquismo, que lhe permite acender as suas velas à importância da fraternidade e do amor transcendente. É neste prisma que se cruza com Sampaio Bruno, com esta perceção de uma realidade espiritual e metafísica, embora pese as diferenças existentes, já que Coimbra afirma mesmo a figura de Deus neste plano transcendente. Dois conceitos tornam-se chave para o filósofo poder fortalecer o seu pensamento: o de memória inventiva, que se trata da ação divina como criadora, inventora daquilo que é a ação e, por consequência, o que é a vida; e o de razão experimental, que une a razão teórica com a prática e que obriga o ser humano a superar, a partir da sua capacidade de inventar e de criar, aquilo que já está inventado e aquilo que já é conhecido.
Há aqui uma constante transcendência do que é feito, do que é pensado e criado. Volta-se à questão de exceder, de ir além, para que se possa fundamentar esta intuição da criação, a única que consegue encontrar respostas para aquele que é o mistério da existência. O pensamento quer-se, assim, pensante e não (já) pensado, algo que inanima a força criadora da mente e, por conseguinte, do ser humano. Permite-se, assim, muito mais especulação do que o de Sampaio Bruno, mais fechado em conceitos determinantes da moral e da própria existência; assim como se permite uma construção muito mais ampla de uma realidade que não se confina a um só indivíduo, mas a todos, numa dinâmica verdadeiramente universal. Prende-se com uma revelação constante daquilo que a humanidade é, descobrindo-se na comunicação que estabelece consigo e com os seus, naquilo que é a sua subjetividade e a sua intuição criativa para alcançar a verdade e, de certa forma, também essa transcendência.
Seria professor em vários pontos do país, nomeadamente no Porto, em Braga e em Lisboa, nos grandes liceus de então. Porém, a sua posição anarquista seria-lhe nociva, já que muitas portas lhe seriam fechadas. Com isso, decidiu mudar-se para a Póvoa de Varzim, onde fundou uma Universidade Popular (uma das muitas que idealizaria, evocando a importância da liberdade do ensino). Porém, pouco tempo depois, estaria de volta ao Porto, cidade que nunca o abandonaria. Na República, depois de deputado pelo Partido Republicano, seria Ministro do Trabalho e da Previdência Social e, por duas ocasiões, Ministro de Instrução Pública, e foi no exercício dessas funções em que criou a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, resultante de um conflito entre Coimbra e, precisamente, a Universidade de Coimbra, que tinha, à data, a única Faculdade de Letras do país.
A fundação ficaria selada no ano de 1919 e faria parte dos seus quadros, entre a direção e o ensino, até 1931, ano em que seria extinta (reativada seria somente em 1961). Faria reestruturações ao nível das bibliotecas e dos teatros, mas também nos estudos ao nível da instrução primária e do liceu (atual Ensino Secundário), para além de criar cursos nas universidades do país. No entretanto, iniciar-se-ia na Maçonaria e até no Espiritismo, fazendo parte do primeiro congresso que ocorreu no país. Aliás, já a liberdade do ensino religioso havia sido defendida pelo próprio, enquanto Ministro. Pouco tempo antes da sua morte, num acidente de viação, converter-se-ia ao Catolicismo.
Leonardo Coimbra era entendido como um mestre, capaz de dominar as diferentes frentes de expressão social, política e filosófica. Tratava-se de um orador exímio, reconhecido pelos seus pares, mas também portador de um pensamento iluminado e trabalhado, muito por conta de uma tendência inata de assimilar e de desconstruir os conceitos mais difíceis, transformando-os em vocábulos acessíveis. Era resultado de muita indagação, de muita interrogação e posterior compreensão da realidade, usando as mais intuitivas perceções dos conceitos mais assustadores e abissais, que Coimbra encontrava uma linha de pensamento clara e inequívoca. Apelava, desde sempre, à elevação, à subida do verbo e do pensamento.
Entre a oratória, a educação e a filosofia, conseguiu coordenar como poucos estas vertentes a partir de um lema de vida: “conhecer, compreender e não aniquilar”. Nessa coordenação, construiu uma pedagogia orientada para o aluno, capaz de perceber os seus talentos e as suas vocações (“O Problema da Educação Nacional”, de 1926, é uma obra marcante neste percurso). Era com este sentimento que pretendia demover a educação da sua carga asfixiante de saberes e de afazeres e de tornar o estudante alguém com alegria em relação ao conhecer e ao conhecimento. Só assim se poderiam formar as mentes e os pensamentos criadores que tanto salutava. Acima de tudo, a pedagogia tinha de ser humana e eticamente responsável e não meramente técnica, para que a ação social futura dos estudantes possa dignificar a formação intelectual recebida, assim como a potencial produção científica que será realizada.
“Por falta de compreensão do valor dinâmico, criacionista, das normas da ética se têm enredado tantos e tantos problemas. É assim que se discute o problema do progresso moral, querendo-o medir, às vezes, pelo crescimento do saber moral em conceitos e normas. A moral está sempre e em cada momento, no mesmo nível, pois ela é simplesmente a opção pela vida espiritual universalmente fraterna”.
“A Luta pela Imortalidade” (1918)
Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra são dois dos grandes progenitores daquela que é a Filosofia Portuguesa, tal como é conhecida no século XX. São dois dos expoentes máximos de uma influência que se prolongou para nomes de gerações futuras, em tertúlias que se davam, nomeadamente, na cidade de Lisboa, com um cunho reformista muito acentuado, especialmente no capítulo da educação. É aqui que Leonardo Coimbra entra, com o seu criacionismo e com a sua mundividência em torno desta capacidade do ser pensante em criar e em inventar a realidade. Com Sampaio Bruno, encontra-se mais o sentido político daquilo que é a liberdade e do que é a necessidade de expandir os horizontes do pensar e do agir com a importância da valorização do espírito, reconhecendo e atendendo às suas necessidades. Em suma, dois nomes que, embora longe do panteão literário que os autores portugueses preenchem, muitos deles também filósofos (embora com o poder da ficção), enriqueceram a forma como se vê a existência humana, as suas origens e os seus fundamentos, sem deixar de querer ir mais além. Ser pensante, mas transcendente.