O pessimismo e o niilismo de Emil Cioran

por Lucas Brandão,    10 Setembro, 2021
O pessimismo e o niilismo de Emil Cioran
Emil Cioran via IMDB
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Nascido na Roménia, Emil Cioran é um dos escritores filosóficos de referência do século XX, consolidando ideias que foram trazidas por Schopenhauer ou por Nietzsche no século anterior. Foi, assim, um dos filósofos de destaque quando se aborda o pessimismo e, em especial, o niilismo. Sim, a posição de negação perante os aspetos gerais e comuns da vida, questionando a própria realidade e as suas configurações. O conhecimento, a existência humana e o significado da sua vida foram sempre interrogações, ao invés de exclamações ou de declarações. No fundo, declarou a oscilação infrutífera da história, em que um passo em frente traz, a si subjacente, o respetivo passo atrás; história essa na qual se fez, também, a sua vida, entre a Roménia e a cidade que o acolheu na adultidade, Paris.

Emil Mihai Cioran nasceu a 8 de abril de 1911 e faleceu a 20 de junho de 1995, com uns longos 84 anos de vida. A pequena vila em que nasceu, Resinar, era, então, pertencente ao reino húngaro e só uns bons anos depois é que se tornaria parte do território romeno, assim como o próprio distrito em que se integra essa vila, Sibiu. Filho de um padre ortodoxo e de uma feminista cristã, Cioran viu as portas de uma vida académica serem-lhe abertas, ingressando na Universidade de Bucareste em 1928. O seu grupo de amigos seria distinto, incluindo futuros nomes consagrados da vida cultural e literária romena e até europeia: entre outros, o dramaturgo Eugène Ionesco, o académico Mircea Eliade e os pensadores Tudor Vianu e Nae Ionescu. Todos eles beberiam de uma outra referência, Nae Ionescu, um pensador sobre questões relacionadas com a religião comparada e com o misticismo. Cioran falava, para além de romeno, o alemão, que o ajudou a investir muito na leitura de filosofia alemã, como a de Schopenhauer, Heidegger e Nietzsche, que o ajudaram a assentar o seu agnosticismo e a ideia de que a existência era inconveniente. Aliás, algo que defenderia como mote para a rutura em relação ao objeto da sua tese de graduação, o filósofo Henri Bergson.

Cioran, que sofreria de insónias para o resto da sua vida, começou a desenvolver um pensamento filosófico em muito assente numa gradual escuridão em relação à vida, em que os grandes problemas que assolam a existência escapam à capacidade de resposta da filosofia. Foram ideias que bebeu do russo Lev Shestov, conhecido pela filosofia do “desespero”. A sua mudança para a Alemanha, para a cidade de Berlim, em 1933, acentuaria esse mergulhar cada vez mais denso na filosofia, conhecendo Hegel e Edmund Husserl, para além de outros, como Georg Simmel ou Johann Gottlieb Fichte. Foi nessa Alemanha que conheceu o emergente nazismo, com o qual se simpatizou, reconhecendo valor e mérito à figura de Hitler e, de igual modo, ao fascismo italiano, saudando as suas tomadas de posição, em especial no que toca à “questão judaica”. No ano seguinte, lançaria o seu primeiro livro, “Nos Cumes do Desespero”, um conjunto de ensaios sobre temas prementes no pensamento existencialista, nomeadamente os conceitos de morte, de insanidade e de insónia, que experienciava na primeira pessoa. No entanto, as suas primeiras obras não seriam muito bem recebidas.

Cioran afeiçoar-se-ia à Guarda de Ferro, um movimento de pendor fascista criado na Roménia, revendo-se na ideologia nacionalista do grupo. Porém, discordaria, cada vez mais, das suas condutas violentas e chegaria ao fim dos seus dias a sentir desdém por, na sua juventude, ter sentido afinidade e apreço pelo fascismo. Reviu, assim, algumas das suas obras, retirando afirmações de cariz extremista e depurando o que escreveu de conotações totalitárias. Contudo, ainda nesse período, apelava a uma maior modernização, capaz de superar as tradições que foram prevalecendo com a passagem do tempo na Roménia, solo que considerava ser fértil, criativo e vigoroso, em contradição em relação às suas gentes, passivas e resignadas. O pensador regressaria, por um breve momento, ao seu país, lecionando em Brasov a sua área de estudos. Porém, em 1937, passaria a viver em Paris, numa altura em que o movimento fascista que continuava a apoiar, na Roménia, já havia assumido o poder.

Beneficiou, assim, de uma bolsa de estudos, que aproveitou para ampliar a sua bibliografia, criando vários aforismos com laivos misantropos e pessimistas, sobre temas cruciais da moralidade e da sentimentalidade humanas, e compilando-os nesses livros que lançava (um dos mais notáveis é datado de 1987, intitulado “Confissões e Anátemas”). De igual modo, passou a dominar o francês, idioma no qual começou a redigir com maior frequência, superando as dificuldades que havia experienciado, inicialmente, na sua aprendizagem. Essa mudança para Paris alteraria a sua forma de olhar para o seu país de nascença, ganhando uma maior aversão aos seus compatriotas, numa rebelião permanente em relação à sua linhagem. De tal maneira era essa postura combativa e avessa que o próprio chefe de estado romeno Nicola Ceausescu baniria as obras de Cioran no país, num período que durou pouco mais de duas décadas.

Em 1942, conheceria a sua companheira de vida, Simone Boué, com quem partilharia os dias e as noites até à sua morte. Cioran ia criando uma espécie de culto em torno de si naquela cidade de Paris, colecionando uma série de galardões. Porém, recusaria todos eles. A sua convivência era muito limitada, evitando o mediatismo, mas reencontrando amigos, como Ionesco ou Eliade, mas também o encontro de novos, como o poeta Paul Celan, o dramaturgo irlandês Samuel Beckett e o pensador espanhol Fernando Savater. Seria, assim, uma vida muito recatada até ao fim da sua morte, em 1995, padecendo da doença de Alzheimer. Depois da sua morte, o seu culto ainda ganhou maior expressão, aquando da descoberta das suas reflexões pessoais e do seu lirismo filosófico. Considerava-se o “secretário” das suas emoções e sensações e, como tal, arrumava e geria aquilo que pensava e experienciava. Com os aforismos, era económico na sua expressão, evitando o desgaste no seu processo de reflexão e de escrita, criando espécies de “verdades momentâneas”, que podem encontrar o seu oposto de seguida. De igual modo, era mais fácil para o pensador poder contextualizar o que disse, onde disse e o porquê da sua chegada ao papel.

No âmago destes aforismos, está a sua perspetiva pessoal sobre a existência e a vida. Essa perspetiva, pessimista, cética e niilista, começa na possível acidentalidade da sua vida – a sua mãe havia equacionado abortá-lo no tempo de gestação. Como tal, e refletindo sobre essa possibilidade, Cioran desenvolveu uma postura muito assente nessa dimensão da dor, do sofrimento e da morte. É uma névoa de tormenta constante que paira no lirismo que advém da experiência pessoal do autor e que, não raras vezes, equaciona o suicídio como resposta. Isto perante o exílio da existência, numa realidade em que o vazio é a casa do ser humano. Para chegar a este estado do seu pensamento, o francorromeno evoca a história e a tragédia que, tantas vezes, está presente no desenvolvimentos das civilizações (é o caso de “História e Utopia”, de 1960, onde aborda as utopias pela história, caraterizando-as como o exprimir sôfrego por parte das comunidades das energias retidas, excessos esses que podem colocar em causa a liberdade individual e pública).

Nesta viagem, nunca se apega à fé como possível consolação, mas antes vê o absoluto do que é real e esse já mencionado exílio da existência, de um ponto de vista metafísico. A ideia da decadência (tão trabalhada no livro “A Desvantagem de Nascer”, de 1973) é, todavia, contraposta com a possibilidade do ser humano se ligar às suas origens e, a partir delas, fortalecer a sua sensação de identidade e de conexão à realidade. O caminho dessa decadência é desenhado, antes, pelas dinâmicas desenfreadas da produção e da reprodução, pela objetificação humana e pelos excessos da introspeção e, também, da própria transparência artificial.

Para Cioran, a ideia de divindade não estava no plano metafísico, mas antes naquilo que a própria humanidade havia criado: a música, pelos génios de Bach ou de Beethoven, ou a literatura, nas imaginações de Dostoiévski e de Shakespeare. Eram a resposta mais concreta perante as ameaças da alienação, do tédio, da futilidade e da tirania, que desembocavam no absurdo que desencadeava agonia e doença física e mental. A natureza dolorosa do viver, que ainda se intensifica com a fixação numa crença sobrenatural e com a ganância em relação ao poder. Algo a que o ser humano é vulnerável, abrindo fissuras que ainda tornam a existência mais abissal. São ideias que ficam patentes no “Breviário de Decomposição” (1949), para além da coleção de ensaios de 1956, de seu título “A Tentação de Existir”, numa odisseia entre as civilizações e as suas crenças, os seus mitos, assim como entre os filósofos e os apóstolos. O ponto da cristandade seria um prolongamento daquilo que abordou uns bons anos antes, com “Sobre Lágrimas e Santos” (1937), ainda na Roménia, numa fase em que se havia entregue à investigação da vida dos santos (hagiografia). O romeno assume o papel de cronista das histórias destas figuras (maioritariamente femininas) e dos seus confrontos (e lágrimas) com a metafísica e da sua relação com a existência humana, nessa renúncia a ser-se humano e a alcançar a santidade pela força da intuição e do sentimento, à qual Cioran apontava uma camuflada mas fanática vontade de poder.

Emil Cioran imortalizou-se como um autor soturno, marcado pela sombra da sua afeição fascista e nazi, embora como um quase artista dramático, que não dispensava o lirismo para, do mais escuro, abrir sonante claridade. Apesar de pessimista e de assumir o seu niilismo como grande força motriz da sua escrita, não deixou de ser, Cioran, um comovente denunciador da realidade e da existência humana, com perspetivas que, marcadas pelos seus antecessores, se fizeram iluminar com diferença e distinção. Foi de uma bagagem cultural e literária rica e de uma vida mais voltada para o interior que para o exterior que o pensador fez dos seus aforismos um catálogo das suas impressões humanas e existenciais, com um léxico ao alcance de todos que procuram encontrar consensos para as suas interrogações; ou, então, encontrar outras tantas perguntas para as quais as respostas nunca existirão.

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