Crónica literária. Das braceletes de relógio e cordões desapertados

por Ana Monteiro Fernandes,    14 Setembro, 2021
Crónica literária. Das braceletes de relógio e cordões desapertados
Fotografia de Wilhelm Gunkel / Unsplash
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Ele entendia a mentira da forma mais humana possível, sem nunca lhe dar laivos de poesia. Qual era o mal? Toda a gente mente, sem excepção, e convém lembrar que quem tem mais engenho na mentira é porque é dotado de uma maior inteligência. Pelo menos é o que dizem. Já viram o esforço e a articulação necessárias à mentira? Saber-se uma coisa e vir-nos logo outra à boca. Depois, claro, há sempre a ilusão de que uma mentira, uma mentira humana, repetida várias vezes se funda com a realidade. Ela era o seu contrário. Quando enganava, esse engano tinha de ser poético. Nunca, mas nunca humano. Mesmo se o quisesse, não conseguia fazer de outra forma. Todos sabiam como apanhá-la numa pequena mentira sem poesia à mistura, mesmo naquelas ingénuas que se pensa não fazerem mal a ninguém. Eram os lábios que lhe tremiam, as pernas que subitamente lhe pareciam mais frágeis.

Mas, por seu lado, já ele precisava, precisava. Era a sua força a protegê-lo da sua fraqueza. Entrava em conflito consigo mesmo à noite quando tentava dormir. A imagem do seu corpo aparecia-lhe disforme na sua mente e assombrava-o. Não queria que os seus olhos tomassem consciência disso, jamais. Mas os olhos traíam-no, contra isso não podia fazer nada. E era com essa imagem na cabeça que adormecia enquanto desejava que todos os olhos se fechassem para ele. Tinha uma marca no pulso que suportava desde sempre. Não era feia nem bonita, mas detestava-a ao ponto de achá-la grotesca, monstruosa. Nunca deixou ninguém vê-la. Seria uma invasão, uma intrusão, uma falta de polidez demasiado forte para ser tolerada. Escondia-a com a bracelete do relógio que nunca tirava fosse à frente de quem fosse. Dava-se bem aos outros no sorriso que treinava todas as manhãs, bem demais, sorridente demais. Mas havia sempre a sensação de algo que faltava. Era como imaginar duas metades, duas metades gémeas do mesmo. O cavalo a priori mais sagaz a abandonar o outro cavalo da carroça que, afinal, só precisava de água para renovar as energias. Nunca imaginou que pudesse ser o contrário.

Mas era exactamente por isso, devido ao medo e à protecção do corpo e do pulso que nunca conseguiu sentir o amor nem a sua frustração. Sem a queda lenta do amor é possível sentir-se amor? Sem a inquietação é possível amar? Não sabia, nunca antes o havia o experimentado. Nessa manhã acordaram os dois para irem trabalhar. Humanamente ele treinou o sorriso ao espelho e garantiu que o sobretudo lhe assentava muito bem. Poeticamente ela saiu de casa e esqueceu-se de apertar os cordões das botas. Era sempre assim até que alguém lhe lembrasse. Nesse dia ninguém o fez. Deu-se conta quando Ia correr disparada para um serviço fora do escritório e, infortúnio dos infortúnios, tropeçou e fê-lo cair também no chão. A bracelete do relógio ficou torta e ele viu que ela reparou na marca. Mostrou um ar irritado, ela pediu desculpa, apertou os cordões e continuou a correr. Todos se riram, era impossível não repararem no ridículo. Como resposta à situação chamou-lhe destrambelhada, mas sem ocultar nos olhos uma estranha sensação de nudez, uma nudez de alívio.

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