Crónica literária. Velhas e religião pelos olhos de uma criança

por Ana Monteiro Fernandes,    5 Setembro, 2021
Crónica literária. Velhas e religião pelos olhos de uma criança
Fotografia de Michał Parzuchowski / Unsplash
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As casas têm paredes e um tecto e, tanto quanto sei, as paredes e os tectos protegem, acho que sim. Por isso não consigo perceber porque é que a avó fica com tanto medo quando chove e trovoa no final do Verão. Geralmente é essa a altura que a voz zangada do céu escolhe para ralhar e assusta, eu já a ouvi muitas vezes, assusta mesmo. Deita também umas luzes brancas que caem aos zigue-zagues. Mas temos uma casa, deve ser o suficiente para ficarmos salvas. O senhor da voz zangada deve ser muito grande para passar pelas paredes como a água. Se não lhe abrirmos a porta deve estar tudo bem. Há vezes em que as paredes do corredor choram as lágrimas da chuva, é verdade, e o chão alagado molha os pés. Mas estamos seguras à mesma porque vamos, primeiro, buscar os baldes para onde as lágrimas caem e depois corremos para o quarto onde as paredes já não estão tão tristes porque já não choram chuva. Se calhar as paredes do corredor choram porque também têm medo do senhor da voz zangada. Eu não tenho medo. Os cobertores enterram-me na cama num peso sufocante e não consigo ver nada. Incomodam-me, mas o escuro é ainda mais pesado que os cobertores porque me obriga a fechar os olhos. E quando fecho os olhos penso na Santa Bárbara porque é nela que a minha avó pensa quando trovoa. Deve ser porque na igreja ela está sempre com uma torre na mão. Que raio de utilidade tem uma torre na mão? As torres também têm paredes é para gente estar dentro delas não fora. Como é que a coitada vai fazer agora? Vai-se molhar, de certeza, e toda a gente sabe que a voz zangada do céu mete mais medo quando se está na rua.

Mas logo a Santa Bárbara, que cresceu tanto. É tão alta que já não cabe mais na torre, por isso é que tem de andar com ela na mão. É verdade, foi o que a avó me disse quando, na missa, estava a olhar para santa e lhe perguntei porque raio andava com uma torre mão. Se não cabe na casa dela, por ser tão alta, já não vai caber na casa de mais ninguém. Mete-me pena por causa disso mas o São Sebastião está bem pior do que ela. Tem setas que se lhe enterram na carne e não pode fugir porque está preso ao tronco de uma árvore. A corda é muito grossa. Os maus apanharam-no e não há ninguém capaz de o libertar. O São Sebastião, aquele São Sebastião, tem um olhar muito triste. As cores dele também são tristes porque já deixaram de existir e tem fissuras no nariz e nas pernas. Não está ao pé do altar como a Santa Bárbara. Sempre que entro na sacristia com a minha avó quero ver se o São Sebastião já está solto, mas não. Quem são os maus que o amarram daquela maneira contra à sua vontade e disparam as setas? É que as setas magoam mesmo e fazem sangue, eu sei. No escuro do quarto a avó reza para a trovoada se calar e ir embora. Eu peço à Nossa Senhora dos Remédios, que deve ser a médica do céu, que limpe as feridas do São Sebastião e dê um remédio à Santa Bárbara para se curar da constipação. Não deve ser fácil não se poder entrar em casa quando a voz zangada do céu desce à terra e as lágrimas das pessoas com quem ralha caem na rua. A Santa Bárbara deve andar sempre constipada, de certeza. Não custa nada à nossa senhora dos remédios dar-lhe um remédio para ficar melhor.

Os Santos cheiram-me ao algodão que minha avó utiliza para limpar as pratas da igreja. É que são os santos, a casa e a missa inteira. Um cheiro forte, velho e agudo que sobe pelas minha narinas acima e não quer sair de mim. É que é mesmo a missa inteira. As paredes, o tecto, os santos, o altar, os bancos, o padre, o vestido do padre, as palavras do padre. Não gosto do padre. A viver na igreja e ainda não libertou o São Sebastião? Quem me garante que não é ele o mau que lhe atira as setas? E para mim as mãos de todas as velhas têm de ser pretas também porque o algodão da minha avó mancha. Passa naquilo toda a noite, a esfregar, e durante toda a noite o cheiro a entrar em mim. O cheiro do algodão, o cheiro das lágrimas da chuva antiga dentro de casa que também pinta as paredes de negro, mais o cheiro da lareira. O cheiro entra em mim e não se vai embora.

Deus deve gostar muito de flores porque é muito esquisito com elas. As casas também gostam de flores. Por isso, eu mais a minha avó temos flores e plantas em casa. Mas Deus deve ser mais difícil de agradar do que a casa, deve mesmo. A cada passo as velhas chateiam-se porque parece que há flores que podem entrar na igreja e outras não. Ainda há dias a minha avó riu-se porque a velha encarregue de cuidar da igreja naquela semana parece que se enganou e levou umas flores que não deviam estar lá. A minha avó jamais levaria umas flores daquelas, jamais! Ela sabe as flores que Deus gosta. E porque sabe disse à outra velha e a outra velha não gostou e ralharam uma com outra na igreja. Deus também deve gostar muito de músicas porque as velhas não param de cantar. Mas também deve ser muito difícil agradar-lhe com as músicas porque não é de qualquer uma que ele gosta. E todos os Domingos as velhas têm de lhe cantar uma música diferente. Também não deve ser fácil descobrir as que devem ser cantadas a cada Domingo porque cada velha diz saber as canções que Deus gosta a cada Domingo. Mas Deus deve ter dito coisas diferentes a cada uma porque cada uma quer músicas diferentes. É a casa de Deus e se é a casa de Deus as velhas têm de lhe levar as flores que ele quer e de lhe cantar as músicas que ele quer. A velha de que Deus gostar mais vai para o céu e assim vai ter a oportunidade de ser feliz. Feliz, mas mesmo feliz para sempre. Numa casa com paredes que fiquem sempre brancas e não chorem as lágrimas da chuva. Por isso é que é tão importante esforçarmo-nos. Para vivermos numa casa sem chuva e alguém, como Deus, gostar mesmo, mesmo, mesmo de nós.

A minha avó diz-me que nem todas as velhas se portam mesmo bem. Há umas que antes não iam todos os Domingos à igreja, outras que não foram boas esposas, outras que são desafinadas e não cantam bem as canções dos Domingos, outras que são viúvas e usam fios de ouro e roupa sem ser preta, outras que não sabem escolher bem as orações. Também já me disseram que a minha avó, antes, não se portava bem. Mas a avó já me explicou que Deus é grande e, se gostar mesmo das canções que lhe canta e das flores que lhe dá, vai perdoá-la e vai para uma casa sem chuva e sem lágrimas.Ela é má quando diz que sou impossível, que só faço asneiras e que sou tola de mais para que alguma coisa seja feita de mim. É boa quando todas as noites me diz para fechar os olhos, abrir a boca e poe lá um bocadinho de chocolate. Sei o que vai acontecer todas as noites, mas finjo que não sei para voltar a estar ansiosa outra vez. Assim é sempre Natal. Quando a avó se for embora, era bom que Deus também visse que sabe fazer o Natal todos os dias.

As casas são importantes e é bom ter-se uma que proteja. Por isso é que as velhas vão ao cemitério de vez em quando. É para visitarem o lugar onde vivem aqueles que já foram. Farejam as casas uma a uma, levam flores e velas. Curvam-se, olham para as fotografias e dizem os nomes, não se esquecem de ninguém. Vêem qual é a casa mais bonita, com mais gosto, com a flores mais frescas. Pensam, ‘também hei-de querer uma assim,com aquelas flores e palavras tão bonitas. Se Deus gostar mesmo de mim, é assim que quero viver. Não como aquela ali, destruída, suja, aos pedaços, com a cruz tombada e partida em duas. Da casa que ninguém se lembra, esquecida, que não recebe flores nem ninguém limpa.’

A água da chuva está a começar a chorar outra vez. Chora muito, muito. O vento vai e vem e não tem direcção. Ninguém lhe apanha o sentido. Sopra e leva as coisas com ele, nem o vento sabe para onde as leva. As paredes da casa também começam a chorar. As lágrimas vertem e molham-me os pés. As coisas que o vento rouba e leva com ele, a baterem e a morrerem nas janelas. Ramos das árvores, os restos do nosso jardim. Daqui a nada vai começar a levar restos de telhados. Os telhados das casas que fazem os tectos. A cruz, a cruz partida no cemitério que todos esqueceram. O vento também a vai levar, para onde não sei, nem o vento sabe, mas vai levá-la. A voz zangada do céu deve estar mesmo zangada porque está a gritar mesmo muito e o barulho enche o ar. A avó leva-me para o quarto, leva-me para o quarto e reza. Reza e diz coisas a Deus, “Dá-me a mão e não me esqueças, sobretudo não me esqueças e dá-me uma casa onde não chova e onde possa encher os pulmões de ar. Quero voltar a ser criança Deus. Sabes ser criança e dar as mãos? Dá-me uma casa onde não chova e brinca comigo. Quero brincar contigo. Dou-te as flores que quiseres se me fizeres sentir. Se me livrares das vozes zangadas que gritam e armadilham a vida.”

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