O Alentejo de Manuel da Fonseca
«Valgato fica no fundo de um córrego, cercada de carrascais e sobreiros descarnados. O mais é terra amarela, nua até se perder de vista. Não há searas em volta. Há a charneca sem fim (…) E, no meio do descampado, no fundo do vale tolhido de solidão, fica a aldeia de Valgato debaixo de um céu parado. Valgato é uma terra triste» (Aldeia Nova, 1942).
Ao falar-se em Manuel da Fonseca (1911-1993), uma das características que mais salta à vista na sua obra são as detalhadas e poéticas descrições que o autor faz da paisagem; mas falar de ‘paisagem’ implica sempre uma compreensão sobre como se operam as relações que perpassam as representações de espaço e de ‘natureza’, e também da própria relação de determinado indivíduo com a paisagem – ou espaço, lugar, terra, território… – em questão. Na obra de Manuel da Fonseca, considerado um dos vultos do neorrealismo literário português, o Alentejo é um lugar de crucial importância no seu universo, como vemos pela imagem que o autor projecta, assaz singular, íntima, profusamente descritiva, da província durante o Estado Novo, mais precisamente, do Baixo Alentejo (segundo a antiga unidade de referência geográfica). O seu contributo para o neorrealismo revela-se na poesia, no romance, no conto, e as suas obras vão repercutir a mitologia revolucionária da época, que ganha forma consistente na poesia de carácter social do Novo Cancioneiro, colecção poética lançada em 1941 por vários autores, e da qual Manuel da Fonseca também fez parte.
O Alentejo, território com forte simbolismo revolucionário durante o Estado Novo, marcado pelo conflito entre os grandes latifundiários e as camadas sociais exploradas, vai aparecer na obra de Manuel da Fonseca como um espaço com o qual o autor conserva uma ligação íntima, nutrindo por este um sentimento dividido entre o deslumbramento e a desilusão. Este paradoxo emocional, o autor expõe-no eruditamente, obstinado nas suas constantes descrições da paisagem alentejana, como em Cerromaior (1943), com as reminiscências dispersas da vida de Adriano, o protagonista, cuja dimensão emocional é exaltada por diferentes segmentos da paisagem: as planícies, os córregos, as pracetas e ruelas das aldeias – a recuperação da experiência infantil com uma figuração, por vezes cheia de carácter, dos conflitos e do processo social da região, dizem-nos António Saraiva e Óscar Lopes (2010).
Cerromaior (1943) e Seara de Vento (1958), os únicos dois romances de Manuel da Fonseca, espelham fielmente a sua filiação ao neorrealismo, sobretudo pela galeria de personagens ‘marginais’, que vivem à mercê das oligarquias dominantes, e pela descrição dos processos laborais da região campaniça. Ainda que exista uma dissensão no que diz respeito à estética neorrealista, o que considerável parte dos autores vislumbra como a ‘essência’ do movimento é o conteúdo – inspirado na denúncia da injustiça social – que deve ser exaltado através do despojamento formal. Deste modo, muitos desvendam, especialmente na poesia de Manuel da Fonseca, uma ruptura com os pressupostos do neorrealismo, sobretudo pelo uso de uma linguagem ‘rica’, inspirada no gongorismo, não obstante considerarem que a sua temática se inscreve na filosofia do movimento. Mas é no Alentejo que Manuel da Fonseca encontra o influxo inspirador que lhe vai conceder um lugar especial dentro do neorrealismo literário português, sobretudo na prosa de ficção, até a Um Anjo no Trapézio (1968), colectânea de contos, em que o espaço narrativo passa a ser Lisboa, cidade que os vários personagens das suas histórias anteriores evocam constantemente, seduzidos pelas oportunidades de vida que a terra-natal não lhes pode conceder.
O neorrealismo literário nacional tem uma importante estirpe regionalista – entre o Alentejo e o Ribatejo -, ainda que seja necessário ressaltar que o movimento não se cinge a uma literatura regional. Todavia, as regiões rurais, ainda hoje assoladas pelo espectro das políticas regressivas do regime, vão reflectir o espírito colectivo de comunidades que, assoladas pela miséria, aspiram à mudança e a uma vida melhor; neste contexto, o Alentejo, território cunhado por um espírito insurrecto, foi também visitado por outros autores do neorrealismo, como Fernando Namora, que a censura vigiou de perto. Não obstante, foi com surpresa que Manuel da Fonseca constatou que Seara de Vento, o seu segundo romance, não foi abalroado pela censura aquando da primeira edição – talvez devido ao recente escândalo em torno da obra Quando os Lobos Uivam (1958) de Aquilino Ribeiro; todavia, a segunda edição de Seara de Vento conheceu um desfecho diferente, e a obra foi proibida e apreendida de livraria em livraria.
O ideal de pobreza honrada que o regime proclamava, dirigindo-se às regiões rurais, e que o próprio Salazar celebrava fazendo referência à própria vida – “Do rural que sou, de raiz, de sangue, de temperamento, apegado à terra…” -, não é aceite pela população das aldeias das obras de Manuel da Fonseca. A família, o trabalho e a Igreja formavam a trindade sobre a qual se celebrava a entreajuda como a principal forma das comunidades rurais ultrapassarem os problemas. Ao manterem-se fiéis aos valores e princípios prezados pela ideologia estado-novista, e não se deixarem corromper pelo ‘desejo desmesurado do lucro’, como apontava o regime, acabariam por ser recompensados pelos árduos esforços e sacrifícios feitos em nome da ‘terra’. O neorrealismo vem assim subverter esta ideologia, mostrando personagens que são levados ao desespero nas suas lutas pela sobrevivência – como Palma, o protagonista de Seara de Vento, que se vê forçado a entrar no mundo do contrabando para conseguir sustentar a família – e que não vêm a sua terra como “fonte de alegria e de sustento”, como referiu o próprio Salazar; em Campaniça, conto de Aldeia Nova, Fonseca conta-nos a história de Maria Campaniça, uma jovem rapariga que vive em Valgato, assombrada pela certeza de que nunca sairá da aldeia onde nasceu, «terra triste», «terra ruim», como o autor descreve insistentemente.
O Alentejo que nos mostra Manuel da Fonseca é ilustrado pela tristeza, pelo tédio, pela desesperança, onde «a bondade não serve para nada», como diz Maltês em Cerromaior. Mas ao mesmo tempo a paisagem é descrita com uma fulgurância apaixonante, por vezes lírica, impulso natural da própria relação do autor com o Baixo Alentejo, que era natural de Santiago do Cacém. A paisagem torna-se palco da denúncia social, mas também das experiências pessoais dos personagens, as paixões, desilusões, as evocações do passado distante ou próximo. São várias as imagens que exaltam estes sentimentos, como as reuniões da população nas tabernas e pracetas das aldeias, o recorte enegrecido das muralhas do castelo de Cerromaior, as searas de extensão infinita como metáfora da solidão e do esquecimento. Que a terra mo pague em vida//Que eu pago à terra em morrendo!…, cantam os ceifeiros a determinado momento em Cerromaior; «A planície mãe da gente rica, madrasta de quem trabalha», como surge na mesma obra, é tão-só um eufemismo do que realmente representa o Alentejo para estes ceifeiros e lavradores explorados, terra onde só se tem certeza da perenidade das oligarquias, da miséria, das lutas em vão.
«Uma poalha azulada desprende-se das estrelas que se apagam, entorna-se pelo céu, vem descendo lentamente. Lentamente, a noite vai andando para o outro lado do mundo. Um caminho eterno» Cerromaior (1943, p. 139).
Referências:
Saraiva, António José; Lopes, Óscar (2010): História da Literatura Portuguesa, Porto Editora