Antissemitismo em Portugal (parte I)
Este artigo faz parte de um conjunto de três (o segundo e o terceiro) sobre a temática de Portugal na Segunda Guerra Mundial, e é fruto de um trabalho de investigação realizado para uma unidade curricular da Universidade.
Neste primeiro artigo, trato do antissemitismo existente em Portugal durante o século XX, sobretudo a partir dos anos 30, quando a presença de tais ideais começa a proliferar pela Europa, sendo a Alemanha nazi de Hitler a principal promotora. No senso comum, considera-se sempre que Portugal não teve qualquer tipo de manifestação antissemita, e que desempenhou sobre uma postura neutral mas favorável aos Aliados. Terá sido realmente assim? O conjunto dos três artigos promete responder a essas questões.
Com a implantação da República em Portugal, em 1910, “os judeus portugueses ficaram com os mesmos direitos políticos de outros cidadãos”. Ainda que, até esse ano, os festejos judaicos pudessem ocorrer, ainda que apenas em espaços fechados, com a laicização do Estado, expressa na constituição de 1911, foi afirmada “a liberdade de crença e de culto”, abrindo-se também a possibilidade de pessoas de qualquer crença religiosa poderem exercer qualquer tipo de carreira profissional.
Posteriormente, com a ascensão de António de Oliveira Salazar ao poder e o crescimento do antissemitismo alemão, que se ia espalhando e ganhando adeptos pela Europa, o ditador português nunca revelou explicitamente ser um apoiante desses ideais. Em 1934, por exemplo, esclareceu que o “nacionalismo português não incluía «o ideal pagão e anti-humano de decifrar uma raça ou um império», para além de, no ano seguinte, ter criticado, sem as nomear, as Leis de Nuremberga. Em 1939, Salazar referiu também que Portugal era exemplo ímpar na Europa, por ser constituído por “uma unidade geográfica, possuir a mesma língua, constituir «a mesma raça»”, sendo que o termo raça não era normalmente empregue na sociedade portuguesa. Quanto aos judeus, não seriam vistos como um grupo ameaçador, mas sim como “pessoas que professavam uma religião minoritária e uma cultura diferente, num país maioritariamente católico”.
Deste modo, podemos verificar que, oficialmente, o “salazarismo fundamentou, por um lado, a recusa em adotar uma postura explícita e ativamente antissemita”. Para além disso, haveria judeus “próximos do regime salazarista, como foi o caso de Moisés Amzalak, presidente da Comunidade Israelita de Lisboa (CIL)”, durante vários anos. Também Adolfo Benarus, dirigente do CIL, proferiu palavras de agradecimento a Salazar e à Censura, por o antissemitismo em Portugal ter “sido prontamente «sufocado à nascença, por quem neste país podia sufocar»”.
Contudo, houve vozes no país a favor do antissemitismo, presentes tanto na imprensa, como proferidas por personalidades individuais ou ainda com cargos governativos e diplomáticos, para além das colónias alemãs sediadas em Portugal.
Após a anexação da Áustria, em março de 1938, o jornal A Voz publicou vários artigos, da autoria de Vieira Borges, numa campanha intitulada «Alerta!», em que se escrevia “«contra as ervas daninhas que Hitler arrancou da terra alemã e que para cá se foram transportando»”. Quando ocorreu a «Noite de Cristal» na Alemanha, em novembro de 1938, o jornal Diário da Manhã escreveu que o Governo português não deveria “abrir as portas aos refugiados que fugiam da Alemanha e da Áustria”. Antes disso, também o jornal regional Póvoa do Lanhoso “considerou num artigo o judaísmo como o «pai do comunismo»”.
Algumas personalidades proferiram e escreveram a favor do antissemitismo. António Sardinha, por exemplo, foi um dos ideólogos do Integralismo Lusitano, um movimento que surgiu em 1914 como um “modelo alternativo ao liberalismo, ou seja, monárquico, tradicional, corporativo e antiliberal”, que se tinha inspirado nas ideias das direitas europeias. António Sardinha tinha ódio aos judeus porque considerava “as origens rácicas estranhas e contrárias à essência nacional portuguesa”, tendo eles corrompido as várias gerações portuguesas de tal forma que, naquela altura, já estariam irreconhecíveis. A sua visão ficou explícita na obra da sua autoria, As Duas Raças, onde “entre outros argumentos, reabilitou a Inquisição, que segundo ele, impediria «os judeus de tentar dominar Portugal». Contudo, segundo Avraham Milgram, nunca conseguiu criar grandes adeptos da sua visão antissemita. Mesmo no seu círculo próximo de amigos, não conseguiu mobilizá-los para este discurso, não tendo, portanto, conseguido formar uma “doutrina com autoridade e aceitação coletiva”.
Mário Saa foi outro antissemita português, poeta que não ficou conhecido propriamente pela sua obra, mas pelas considerações racistas que teceu. Escreveu um livro cujo teor era antissemita, intitulado A Invasão dos Judeus, e o próprio poeta tinha alguma simpatia por António Sardinha. Contudo, Mário Saa nunca pertenceu a um partido político ou movimento, e tinha uma “posição anticristã, considerando o cristianismo a continuação do judaísmo e acusando-o de corromper as nações europeias”. Quanto a Portugal, apelidava o país de «república judaica», e considerava que “«entrar no Parlamento português é como entrar numa sinagoga»”.
Relativamente a Rolão Preto e ao movimento fascista «Camisas Azuis», há diferentes considerações. Na obra Portugal, Salazar e os Judeus, é referido que o movimento “dissociou-se do antissemitismo racista e não se opôs à vinda de judeus perseguidos pelos nazis para Portugal”. Contudo, o livro Salazar, Portugal e o Holocausto considera que o movimento expressava “sentimentos racistas e mesmo antissemitas”, dando-se o exemplo de António Pedro, que “referiu diversos inimigos a abater, contando-se, entre estes, «os judeus da finança, abutres sem ninho»”.
Evidentemente, outro local onde o antissemitismo se fazia sentir de forma veemente foi nas colónias alemãs de Lisboa e do Porto. Na obra Salazar, Portugal e o Holocausto, é dado o exemplo de Paul C. Roche, que teria chegado a Portugal em 1933 para desempenhar um cargo de representante numa firma, mas foi “obrigado a deixar a empresa num processo de «arianização» conforme lhe diria o cônsul da Alemanha”. Na Escola Alemã de Lisboa, “vários professores judeus foram despedidos”.
Também na correspondência oficial entre governantes, diplomatas e graduados pela PVDE há declarações de caráter antissemita.
Logo em 1933, o diplomata português em Amesterdão, Júlio Augusto Borges, informou o MNE do êxodo de judeus da Alemanha, que teriam “ideias demasiado avançadas”, e a sua entrada em Portugal poderia “contribuir para um mal-estar geral”.
César de Sousa Mendes, diplomata português em Varsóvia, também referiu que os judeus polacos poderiam causar perturbações caso entrassem em Portugal, uma vez que “a própria constituição dos judeus enquanto minoria e grupo heterogéneo poderia fazer perigar sentimentos nacionalistas preconizados pelo Estado Novo”.
A PVDE fez também um “esforço sistemático, concretizado a partir de 1938, de tentar impedir a entrada em Portugal de refugiados de origem judaica”. Contudo, é importante referir que, nesta altura Salazar geria tudo o que acontecia no país, tendo inclusive assumido várias pastas, como de Negócios Estrangeiros, da Guerra ou das Finanças. Por isso, todas as decisões tomadas pela polícia política terão tido, pelo menos, a autorização do ditador português. Uma vez que Portugal adotou uma posição de neutralidade durante a guerra, e ficando “a meio caminho dos Estados Unidos, Portugal transformou-se num ponto de passagem obrigatório para refugiados”, o que fez com que muitos judeus tentassem entrar no país com vista à saída para o continente americano.
Com a anexação da Áustria por parte da Alemanha, Agostinho Lourenço, de forma a impedir a fixação em Portugal, admitiu que deveria ser apenas concedida a “entrada destes judeus unicamente como turistas”, tendo Salazar concordado com tal decisão. Inicialmente, os vistos de turistas tinham uma duração de 30 dias, mas noutros casos o número era reduzido. Foi entre 1938 e 1939 que surgiram os princípios relativos à política de entrada de refugiados, que vigorariam até ao final da guerra. A política portuguesa de fronteiras ia endurecendo “quanto maior o afluxo de pessoas que necessitavam de salvar vidas através de Portugal”. Para reforçar as políticas restritivas, considera-se pertinente referir a circular nº14 de 11 de novembro de 1939, que “obrigava os cônsules a consultarem o MNE na concessão de vistos” para, entre outros, judeus expulsos. Para além disso, “o documento proibia os cônsules que não fossem de carreira de atribuir vistos”. Um dos medos da polícia política seria a entrada de pessoas apátridas em Portugal, uma vez “que não podiam voltar ao seu país de origem, como foi o caso dos judeus alemães”.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, houve uma recusa por parte do Estado Novo em “reconhecer publicamente e em condenar o Holocausto”. Para além disso, só em 1977 é que Portugal estabeleceu relações diplomáticas com Israel, quando já havia a “consolidação de um regime democrático” no país.
Por fim, segundo a obra Salazar, Portugal e o Holocausto, no geral, a sociedade portuguesa não revelava comportamentos discriminatórios para com os judeus. Para além disso, refere que “os refugiados mostraram-se agradavelmente surpreendidos e gratos com a ausência de sentimentos antissemitas”. Uma das provas da ausência desses comportamentos, segundo o livro, está na “abertura de um museu sobre história dos judeus, em Tomar”, noticiado pelo jornal Aufbau em 1943, ano em que já acontecia e se sabia do extermínio judeu.
Bibliografia do artigo:
CHALANTE, Susana, “O discurso do Estado salazarista perante o “indesejável” (1933- 1939)”, Análise Social, nº 198, 2011
MILGRAM, Avraham, Portugal, Salazar e os judeus, Lisboa, Gradiva, 2010,
NUNES, João Paulo Avelãs, “A memória histórica enquanto instrumento de controlo durante o Estado Novo. O exemplo do anti-semitismo”, Revista de História das Ideias, vol. 34, 2016
NUNES, João Paulo Avelãs, “Darwinismo social e antisemitismo: o caso português”, Cultura, Espaço & Memória, nº 5, 2014
PIMENTEL, Irene Flunser e NINHOS, Cláudia, Salazar, Portugal e o Holocausto, Lisboa, Temas e Debates, 2013
PIMENTEL, Irene Flunser, Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2008, 3ª edição