Saudades de Lisboa
Às vezes, acode-me uma saudade insuportável de coisas que não voltarei a ter, como os cafés tomados no Largo da Graça, as caminhadas matinais pela Feira da Ladra ou as corridas à beira-rio ao entardecer. Lembro os camaradas que jogavam à bola na Calçada do Combro e na Escola Nuno Gonçalves, na Avenida General Roçadas, com a certeza de não haver maneira de recuperar a transpiração, os gritos e o contentamento de me saber criança num corpo adulto. Conquanto possa regressar a sítios onde experimentei sensações prazerosas e conhecer pessoas como aquelas que outrora me fizeram crer na amizade, não repetirei certos momentos com a sensação de os experienciar pela primeira vez, e a gente que deixei para trás não é a mesma, e mesmo que fosse, ninguém é como foi há quinze anos ou há dois meses. As faces do passado não carregam o êxtase perdido, e qualquer tentativa de reavivar prazeres, memórias, será só isso.
“Não haverá mais primeiro beijo e melhor amigo e cantor favorito porque a vida adulta, composta de rotinas burocráticas, dilui os gostos e os êxtases na água da aspirina tomada às seis da tarde.”
“Ainda podes voltar”, sopra-me uma voz, e eu tapo os ouvidos, em negação. Recuso-me a escutar convites para retornar a cenários que já só existem dentro de mim, a fantasias semeadas por canções antigas. Em Lisboa, cidade da adolescência e da juventude, não deixei ninguém que sinta a minha falta. No meu caso, não haverá o retorno do herói, pelo motivo de os heróis, carentes de aclamação, não voltarem a sítios onde não são esperados. Para além disso, estou longe de me sentir herói e invejo os meninos de vinte anos que prometem resolver a vida aos vinte e cinco, pois eu ainda não resolvi a minha. Sofrerei se me enfiar num avião para Portugal, achando que lá me esperam conversas acerca de poetas menores, discussões em torno de revistas literárias que trarão a fama à nova geração, pela natureza e pela cobardia forçada a deixar de ser nova, diálogos peripatéticos no Campo Pequeno e no Chiado, peregrinações à FNAC na companhia de amigo que não é mais amigo, mas recordação. Quem quer acabar azedo, solitariamente encostado a paredes nas quais décadas antes havia amor? Talvez pelos corredores da Faculdade de Letras ainda deambulem moços revoltados contra sabe-se lá o quê, contaminados pela vontade de repudiar ensinamentos arcaicos e de ser o Beckett redivivo, talvez ainda se encontrem fragmentos do rapaz que se perdeu em trezentos namoricos e casou com a mais bonita de todas. Consinto que há fenómenos que se repetem e que os seres humanos lutam por causas semelhantes e sofrem pelos mesmos problemas, independentemente da geração, mas eu não sou igual ao que fui, e tal me basta para não querer pisar o chão calcorreado nos tempos de estudante.
“As faces do passado não carregam o êxtase perdido, e qualquer tentativa de reavivar prazeres, memórias, será só isso.”
Contrariamente a Jorge de Sena, vulto literário que vivia no estrangeiro com a amargura de não ter a oportunidade de se realizar no seu país, perto dos seus pares, de ensinar nas universidades em que trabalhavam aqueles que criticava, não guardo rancores, não cobiço posições em instituições portuguesas, e não me identifico com poemas como “A Portugal”, no qual se descreve a ditosa pátria como “torpe dejecto de romano império” ou “salsugem porca de esgoto atlântico”. Vim para os Estados Unidos com a convicção de ter seguido os meus instintos, de ter sido o moço que procurou o seu destino em cada porta entreaberta, de ter sido o pobre que não teve alternativa a não ser encarar os fracassos como lições que serviriam para derrotas mais suaves. Humano e fraco, tenho todos os sonhos do mundo mas, continuando a parafrasear Pessoa, sei que não sou nada e que, por mais que tente ser e conquistar, no final tudo me será roubado. Na Carolina do Norte ou em Madrid, não escaparei à tragédia da vida que é envelhecer e morrer. Nenhuma barra de ouro me fará viver mais cem anos. Pior, não haverá mais primeiro beijo e melhor amigo e cantor favorito porque a vida adulta, composta de rotinas burocráticas, dilui os gostos e os êxtases na água da aspirina tomada às seis da tarde. Mesmo em termos de honrarias, a mente não obtém satisfação. As promoções no trabalho e as linhas que vou acrescentando ao currículo alimentam-me o ego por cinco minutos, mas logo me acodem ambições desmedidas que me apequenam na comparação com o vizinho, dono do automóvel topo de gama.
Reduzido a perecível condição que me bloqueia o acesso à felicidade suprema, vagueio por entre sonhos que me remetem para planetas por visitar e para locais pelos quais passei. Fecho os olhos para dormir e mergulho na Lisboa de há cinco, dez anos, revejo os amigos italianos e as pessoas que não soube apreciar, sou eu outra vez, aquele que corria ao som de Kanye West e desenhava para si mesmo um altar ao nível dos deuses.