A crueldade e o sentido de humanidade em ‘Dunkirk’
Em primeiro, e antes tudo, é preciso referenciar que por muito que queiramos não vamos conseguir estar na pele de um inglês ou de um francês. Sendo Christopher Nolan um inglês que faz a viagem de barco entre Dover e Dunquerque há 25 anos e com a certeza que este milagre da evacuação, que salvou 338 mil pessoas, seja leccionado no ensino inglês, não conseguimos perceber de forma plena o acontecimento. Assim como os ingleses não conseguem perceber de forma mais aproximada a nossa guerra colonial, embora a sua história tenha pontos em comum com a história portuguesa. Sendo assim, a nossa visão pecará sempre por defeito. No entanto, o cinema, a literatura, a pintura, ou a arte em geral, têm um papel fundamental e não obrigatório: registar, transmitir e reavivar a memória da importância dos acontecimentos, e o peso que estes tiveram na vida das pessoas. Um bom exemplo disso mesmo é este Dunkirk.
“A crença numa fonte sobrenatural do mal não é necessária. O Homem, por si só, é capaz de qualquer maldade”– Joseph Conrad
Joseph Conrad marcou não só a literatura mundial, mas também o cinema. A sua influência espalhou-se por todas as obras que abordam a complexidade humana relativa ao confronto entre bem e mal, vida e morte, ou céu e inferno, e que tenham como personagem o próprio cenário envolvente. Essa busca incessante por parte da natureza humana em relacionar-se com certos parâmetros leva a que nos questionemos sobre essa mesma origem. Num momento de vida ou de morte quem somos nós realmente? Num momento em que a sociedade que nos apoia cai, continuamos a viver da mesma forma ou revelamos uma nova pele? Dunkirk explora estas questões de forma similar à de Francis Ford Coppola em Apocalypse Now (inspirado na obra Heart of Darkness de Joseph Conrad) e de Saving Private Ryan, de Steven Spielberg, através da crueldade humana, da pior natureza que o ser humano possui no seu interior: o acto de matar.
Existe uma certa similaridade entre o cinema de Christopher Nolan e o de Steven Spielberg, nomeadamente a paixão pela diversidade temática (ambos têm filmes de guerra, ficção cientifica, crime ou aventura), personagens bondosas agarradas à vida Vs vilões que por vezes se escondem dentro de nós próprios, e um cuidado muito próprio com a evolução da narrativa, sendo estes alguns dos pontos que ligam os dois realizadores.
Dunkirk não se faz apenas de comparações. Existe originalidade na forma de abordar a crueldade da guerra e da sobrevivência. Tem mesmo passagens em que somos “obrigados” a entrar neste clima de tensão e a vivermos com os personagens momentos de injustiça, dor e maldade, a pior que o ser humano é capaz de conhecer.
Esta autêntica viagem até ao inferno, a mesma de Kurtz em Heart of Darkness e Apocalypse Now, e a mesma de Captain Miller em Saving Private Ryan, coloca-nos em grande pressão, sempre empurrada a favor dos britânicos, principalmente na sequência final, e com o cunho pessoal de Nolan e um toque à Spielberg, onde a maldade e a tristeza se mascaram de bondade, criando uma falsa sensação de alegria e de que tudo “acaba bem”.
Do ponto de vista técnico Dunkirk é um regalo para os olhos e para os ouvidos. Com uma banda sonora envolvente de Hans Zimmer a obrigar-nos a mergulhar (por vezes literalmente) em cada cena, sequência e segundo, como se fôssemos um espectador “in real time”. Dunkirk é elevado ao patamar das melhores bandas sonoras do ano, embora grande parte das músicas não tenha grande sentido fora da película, o que faz com que a sua possível longevidade seja mais curta. Contudo, no contexto das cenas e sequências, esta banda sonora cativa o espectador e obriga-o a sentir o stress e pressão dos acontecimentos. A música liga também as sequências semi-lineares desta narrativa partida em três partes (água, ar e terra), mas que no fundo se unem como uma só.
Muito foi falado sobre a criatividade e o experimentalismo de Nolan na forma como criou estas três narrativas com linhas temporais diferentes. A verdade é que não falham, mas também nunca chegam a surpreender. Por um lado parece que estão lá porque sim, para tornar a narrativa mais complexa e disfarçar algumas possíveis falhas de desenvolvimento e de não novidade além das sequências de acção; por outro lado, acrescentam um certo dramatismo e emoção à história, ligando personagens e, mais importante, momentos.
A fotografia é lindíssima, apesar de ser difícil encontrar uma sala que mostre no seu esplendor toda a beleza dos 70mm e da incrível capacidade de Hoyte Van Hoytema, o director de fotografia, em filmar (ver Interstellar, Spectre ou The Fighter). As sequências aéreas são de uma grande beleza, assim como as que contemplam a praia de Dunquerque. Que não existam dúvidas, Nolan sabe o que faz e domina tudo aquilo que se propõe a fazer, embora obviamente essa questão esteja sempre sujeita à visão e experiência de cada espectador.
A história, apesar de ter momentos incríveis, nunca é excelente, ou nunca é excelente de forma clássica. A sua tensão, criada pela banda sonora e incrível caracterização dos personagens, é que lhe acrescenta algum fulgor, mas os seus personagens são pouco mais do que peões dentro dessa narrativa. Aliás, a forma como quase todos os personagens, embora não tenham uma história fortíssima a suportá-los, conseguem criar momentos de grande intensidade e carisma é notável.
Dunkirk pode não ser uma obra-prima, mas é, decerto, um belo filme, que demonstra que Christopher Nolan se importa com o sentido de humanidade; e no fim de contas isso é algo de fundamental a relembrar nas telas dos cinemas um pouco por tudo o mundo.
Nota final: O plano de evacuação, do recém-eleito primeiro-ministro inglês Winston Churchill, tinha como objectivo evacuar 120 mil homens da praia francesa de Dunquerque, que estavam cercados pelos nazis. A estratégia não foi só foi bem sucedida como superada: 338 mil homens escaparam com vida. Tudo isto foi possível graças a 700 heróis anónimos que se fizeram ao mar com as suas embarcações de pesca ou de recreio: a ajuda civil foi fundamental.
(Editado às 13h)