Milhões de Festa: a vontade de festejar derreteu a timidez
A edição de 2017 do Milhões de Festa começou ao ritmo em que se inicia qualquer relação: lenta, tímida e um tanto ou quanto a medo. Contudo, a vontade de festejar 10 anos a propagar calor humano ouviu-se mais alto.
A conta-gotas, o recinto do festival foi-se preenchendo e preparando para o arranque do dia 0. Entre sidra e cerveja a copo, o sol que ainda queimava ia deixando antever uma noite agitada, em dia de entrada livre.
Antes, algures entre a chegada precoce do público e a debandada geral para assistir ao primeiro concerto – Live Low – a zona de campismo contrastava com a de outros festivais que por cá se vão fazendo. É que em Barcelos ninguém se vê obrigado a vender um rim para ter possibilidade de instalar a tenda: 1) num local onde incida maioritariamente sombra e 2) a menos de 1km do recinto onde se realizam os concertos.
Resgatando o conta-gotas, foi assim que o público se foi organizando na plateia enquanto os Enablers não se faziam ouvir. A formação de combate parece bem definida: uma linha espacial separa as 20 pessoas presentes na frontline das restantes, recostadas no muro mais próximo ou sentadas um pouco atrás.
Os acordes começam a soar, logo seguidos pelas reações: uma cabeça mexe, outra cabeça abana. O vocalista saltita – tanta é a excitação – e pulula em movimentos repentinos e electrizantes. Não parece incomodado pela fraca afluência e quem assiste à gig solidariza-se, aproximando-se e entranhando-se, fazendo engrossar a cada vez mais densa camada dançante.
Na mesma altura em que o cenário se vai aproximando de algo mais rock-oriented, começam a ouvir-se as primeiras vozes dissonantes: “Isto devia estar no palco secundário às duas da manhã”, comenta alguém com a amiga, enquanto exibe um ar claramente desgastado. O resto da assistência parece discordar e de que maneira.
Alguém nos sabe dizer como é que tanta gente se mexe tão bem, ao som de melodias bollywoodescas? É belo mesmo sendo brusco, bonito sem deixar de ser bizarro.
A personagem que Sacha Baron Cohen interpreta n’”O Ditador” foi tirada deste filme, cuja banda sonora são os Cigarra & BirdzZie, é a única explicação. O triângulo gigante invertido pisca intermitente, saciando as dúvidas de quem questione a própria lucidez, tão alucinante é o cenário.
Começam as interações, caem os óculos de sol, já escorre o rio de cerveja e ouvem-se risos no mar de gente. Nem os Stone Dead poderiam pedir melhor ambiente.
Com uma legião de fãs que se enrobustece a cada dia, nada menos do que épico se fazia esperar. Alguns entoam as letras em uníssuno, outros batem o pé envergonhadamente: ninguém escapa às ondas de energia fornecidas por estes rapazes. A força, o vigor e a pujança que deles fizeram uma boys band a ter em consideração estiveram lá durante todo o concerto. O entusiasmo do público estendeu-se ao concerto de Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs.
Os Dj’s da Casa vieram manter aceso um lume que já queimava por si próprio. Nem o silêncio inusitado de 15 segundos – ocorrido durante o reinado de Dj Quesadilla – perturbou os mais comprometidos com a arte de exorcisar com o corpo.
Que o digam a estrangeira de boné rosa, o punk com cabelo afro e a bacana acoplada às grades. Numa coordenação exímia, só pautada pelo ruído harmónico que os artistas de serviço faziam o favor de propagar, testavam-se os passos de dança mais arriscados da noite. Quer por questões de flexibilidade lombar ou mesmo pela irregularidade do piso, nunca aconselháveis a serem tentados em casa.
Foram ouvidas transições ousadas entre ritmos latinos, funk, drum’n’bass, techno, entre outras sonoridades saudáveis para os ouvidos, ainda que perigosas para as ancas.
O cessar do som vem logo antes dos apupos, naturais e expectáveis. Queremos mais, claro. Afinal, é este o Milhões de que ouvimos falar uma vida inteira.
Fotografias de: João Horta e Joana de Sousa / CCA