‘Dunkirk’, um filme que dificilmente resistirá ao tempo
Chegado esta semana às salas de cinema portuguesas, Dunkirk depressa foi alvo de elaborados elogios mas também de severas críticas negativas. Nem só de um ou de outro se faz esta última obra do consagrado (mas também mal-amado) Christopher Nolan. Dunkirk é um épico de guerra que viverá sempre aquém das suas expectativas mas que perdurará por tempo indeterminado nas nossas cabeças, assim como a sua fantástica fotografia, merecedora de menção especial e um dos grandes motivos de elogio neste filme.
Comecemos por aí, pela maravilhosa fotografia a cargo de Hoyte Van Hoytema. Ao longo dos teasers e trailers que durante os últimos meses nos foram chegando, motivo de conversa era já a fotografia de Dunkirk. Do mesmo director de fotografia de filmes como Interstellar (também realizado por Nolan), Her, The Fighter ou Let The Right One In, cujas imagens ainda hoje nos assaltam a mente (sobretudo os dois primeiros), em Dunkirk acontece não raras vezes uma simbiose quase perfeita dos elementos que compõem a acção em cena, resultando em frames belíssimos que ajudarão a perdurar este filme na nossa memória e serão motivo de referências futuras para serem dados como exemplo.
Essa fotografia ajuda a relevar toda a experiência vivida em Dunquerque e que é retratada neste filme. Os disparos, a luta contra o mar, a corrida, a ansiedade, a falta de fôlego, tudo isto é filmado próximo dos rostos daqueles a que podemos chamar de protagonistas (sobretudo Tommy, um jovem soldado), dos olhos que vêem um inimigo que nós, espectadores, nunca chegamos a encarar, mas que lhe ouvimos os disparos e cuja vontade de impedir a sobrevivência destes seus inimigos é quase tangível. Esta indiferença é também, de certa forma, mostrada no lado dos aliados, sobretudo quando na praia são filmadas fileiras sem fim de homens que esperam a sua vez de entrar num barco que tanto pode significar a sua salvação como o seu fim. Homens tratados como maquinaria de guerra e cuja harmonia espacial apenas é afectada momentaneamente pelo perigo iminente das bombas que são largadas por meios aéreos. Feitas as vítimas, os soldados levantam-se e formam novamente fila ordeiramente. A cruel naturalidade da situação espelhada de forma certeira, e que não nos deixa indiferentes.
Dunkirk é um filme de poderosa mensagem humana. Já perto do final é-nos referido que “a sobrevivência não é justa”, o que nos diz muito sobre todo o desenrolar da obra. Há sofrimento, há silêncios e há dor que não é partilhada mas que é comum a tantos. Escrito por Christopher Nolan, Dunkirk retrata a retirada das tropas aliadas de Dunquerque para a Grã-Bretanha durante a Segunda Guerra Mundial. Cercadas por tropas alemãs, na praia estavam cercadas centenas de milhares de tropas britânicas, francesas e belgas que aguardavam por salvação via mar. O retratado no filme é toda essa luta, essa angústia e toda essa luta pela sobrevivência no meio do caos. É em ambientes como estes que a verdadeira natureza humana vem ao de cima, e Dunkirk retrata bem isso em muitos momentos acompanhando sobretudo as personagens interpretadas na perfeição por Fionn Whitehead (Tommy), Anneurin Barnard (Gibson) e Harry Styles – esse mesmo, o de One Direction – (Alex); três personagens que representam o lado mais humano e o mais cruel de toda esta história. Rostos novos, uma excelente escolha de Christopher Nolan. Há em Hollywood o mau vício de meter em campos de guerra unicamente rostos “consagrados”, maduros e vividos. A guerra, infelizmente, não é só travada por esses. A guerra é também feita de rostos jovens, sem muita experiência e que lutam – de forma muitas vezes injusta e inglória – pela sua pátria. Os três actores carregam sobre si, e de forma fantástica, todo esse peso da sua existência naquele momento e naquele local, quando tudo à sua volta se destrói e onde a diferença entre o humano e o animal é já pouco diferenciável. Ao seu lado, e em espaços diferentes (mar e ar), actores mais consagrados como Mark Rylance, Cillian Murphy e Tom Hardy dão mais austeridade em cena, sendo que acaba por ser Kenneth Brannagh (Comandante Bolton) a ter uma das personagens mais marcantes de todo o filme.
No entanto, nem só de elogios se faz Dunkirk. Nolan voltou aqui a desconstruir temporalmente um filme seu, e vem daí uma das características mais questionáveis do filme. Nesta que é já uma imagem de marca do realizador, a narrativa é-nos contada através de três períodos de tempo (e espaço – terra, céu e mar) diferentes que acabam por se entre-cruzar já perto do final. Esta é uma decisão que tem tanto de interessante como de desnecessária. Se filmes como Memento ficaram na memória por esta fragmentação temporal, em Dunkirk não se percebe a necessidade do uso sem sentido ou objectivo palpável (ou credível) para o mesmo. A real importância do tempo em Dunkirk teria sempre de ser focada na contagem decrescente até ao seu epílogo: a salvação das tropas no final – o momento mais aguardado e para o qual o tique-taque temporal como barulho de fundo em todo o filme nos vai relembrando. Nolan, pelo contrário, preferiu convergir esses três espaços temporais em acções antecedentes, em vez de os conduzir até um final de maior dimensão dramática . Perde ainda mais sentido a desconstrução temporal quando a mesma nos é desvendada logo de início. Se o seu uso poderia ser um efeito “extra” em Dunkirk, o seu anúncio retira-lhe qualquer necessidade e, por isso, sentido. Um “condimento extra” que acaba por não trazer qualquer “sabor”.
Nem Hans Zimmer deve ficar a salvo de críticas e o seu currículo não lhe pode dar o estatuto de “intocável” no que às mesmas diz respeito. O compositor alemão, capaz de criar um épico por si só como poucos, rouba sistematicamente as cenas para si, em vez de as deixar crescer em nós. O seu ritmo acelerado, prolongado e ansioso, se funciona em algumas ocasiões, em outras tantas impede-as de criarem por si próprias essa ansiedade. O exagero que acontece em alguns momentos tira-nos qualquer sentimento de empatia, ligação ou comoção por uma cena que foi atropelada pela sua própria banda sonora e que quase acaba a competir pela nossa atenção com as imagens em ecrã em vez de criar uma harmoniosa existência entre estas duas componentes.
Um dos filmes mais aguardados do ano, com uma história e os meios técnicos para torná-lo num épico instantâneo acaba por não corresponder às expectativas minimamente mais elevadas que poderiam ter sido criadas. Não desilude, mas também não deixa saudades de o ver novamente tão depressa. Dunkirk tem um peso e responsabilidade histórica associada a si que nunca é correspondida, resultando apenas num bom filme que nunca chega a ser tão bom como deveria (e tinha capacidade para o ser).
Dunkirk deve e merece ser visto, mas só o tempo dirá se será realmente tão marcante quanto se esperava. A carga emocional desta última obra de Christopher Nolan vive mais da História, que já era sua, do que propriamente de uma condução capaz do seu realizador.