A vida de Carl Gustav Jung, o fundador da psicologia analítica
Carl Gustav Jung, psicoterapeuta suíço, é conhecido pela comunidade da psicologia como o fundador da psicologia analítica. Contemporâneo de Sigmund Freud, chegou a trocar correspondência e ideias com o austríaco, acabando por se afastar deste por algumas divergências conceptuais (enquanto Freud conduzia as suas ideias à luz da sexualidade, Jung acreditava no peso dos fenómenos espirituais). Assim, o helvético construiu conceitos originais e abriu novas perspetivas de entendimento da mente humana, desdobrando-se da sombra de Freud a partir de ideias como os arquétipos e o inconsciente coletivo.
A psicologia analítica é um ramo da psicologia que estuda mais a fundo a mente humana, nomeadamente o consciente, o inconsciente e a relevância do passado e dos traumas no comportamento de um dado indivíduo. Integrando-se neste tipo Freud através dos conceitos sexuais e da psicanálise, foi Carl Jung que deu os primeiros passos numa incipiente e até controversa área de estudo. Começando pelo conceito de complexo, o suíço entendeu-o como um grupo de ideias inconscientes associadas a eventos ou experiências dotados de uma atividade psíquica intensa. Regularmente estimulados por contactos estabelecidos com outrem, a emoção e as imagens mentais aumentam de intensidade e em extensão temporal consoante a raiz e a dimensão do complexo. Por exemplo, uma dada música pode desencadear uma memória que envolva um alguém, podendo também este vir à tona através de um objeto ou de outro alguém que nos remeta ao primeiro.
A visão de uma criança (…) despertará certos anseios em pessoas adultas e civilizadas – anseios que se relacionam com os desejos e necessidades não realizados daquelas partes da personalidade que foram apagadas da sua ‘whole picture’ em favor da ‘persona’ adaptada.
Tendo em conta a inconsciência do complexo, pode-se estabelecer a ponte para uma noção bem mais abrangente e profunda. Jung estudou a existência de um inconsciente coletivo, que consiste numa herança material e imaterial comum a todos os seres humanos. Este complementa o inconsciente pessoal, manifestando-se regularmente nos sonhos através de formas tanto conhecidas como desconhecidas, estando esta familiaridade associada ao inconsciente individual. Essa herança do inconsciente coletivo engloba os arquétipos, sendo estes espécies de primeiras (e normalmente antigas) impressões existentes sobre vários detalhes do mundo que se refletem em diferentes aspetos da vida e que, por se repetirem durante séculos, se designam como “imagens primordiais”. O psicólogo é essencialmente conhecido por esta conceptualização porque é aqui que assenta toda a sua estruturação psíquica. Exemplos destes reportam às personagens do velho sábio, do herói, do vilão, do homem possante e da mulher sensual. Apesar da sua intemporalidade, existem metamorfoses nestes conceitos a partir da adaptação que se faz a estes de acordo com um contexto espácio-temporal.
Ainda no campo dos arquétipos, Carl Jung estudou e definiu o de sombra, tratando-se este do ego mais obscuro e grotesco da personalidade do ser humano. A seu ver, é o produto de uma herança das pioneiras formas de vida que, por estarem mais vinculadas ao primitivismo humano, nunca deixou de fazer parte da sua identidade. Assim, contém os impulsos que, num contexto social, são considerados como imorais, inadequados e reprimíveis e, à imagem destes, origina a sua projeção num terceiro, olhando-o como exemplo a não seguir. No entanto, é nesta que se desenvolve também a parte mais espontânea e emocional, sendo a missão de cada um a de clarear o máximo possível a sua sombra e de trabalhá-la partindo do interior para o exterior, potenciando as virtudes que a mesma providencia.
No primeiro par de conceitos que bifurca a partir do sexo do indivíduo, o psicólogo estuda mais alguns pormenores do inconsciente, neste caso mais em específico o do homem e o da mulher. Enquanto o homem dispõe de uma personalidade interior feminina conhecida por Anima, a mulher tem uma interna masculina designada por Animus. A primeira noção engloba uma perspetiva dócil e terna em que a flexibilidade, a tolerância, a intuição e a emoção ganham capital importância. Já a segunda abrange a razão, a lógica, a atividade, o conflito e o dinamismo, apontando, portanto, à robustez e ao vigor. Assim, o suíço advogou que cada ser humano detém um ser total dentro de si, que é procurado incessantemente tomando as proporções da figura do destino e que exige um processo de autodescobrimento por parte de cada um. A felicidade e a completude do ser humano é entendida, por conseguinte, como a unificação do caráter inato mais os traços anexos referentes ao masculino ou ao feminino e a harmonização do ser.
A vida é um campo de batalha. Sempre foi e sempre será; e se não fosse assim, a existência chegaria ao fim.
“O Homem e os seus Símbolos” (1964)
Voltando à unicidade de cada um, Carl Jung analisou o processo da individuação, que liga o estado infantil de identificação para um estado de ampliação da consciência e da emergência de uma definitiva diferenciação. Nesta dinâmica, decorre a relação entre os elementos inatos de cada um e da experiência, formando um corpo integrado em que a distinção se torna inevitável. Também aqui ocorre a afeição do ser humano com a sua personalidade intrínseca e o potencial energético que dela emana (arquétipo do Si-mesmo). Esta engloba e harmoniza as vontades e os instintos advindos do inconsciente, funcionando como um repositório estabilizador e como o núcleo da psique. Por isso é que a manifestação principal desta passa pela expressão instintiva, que tem a particularidade de não se poder desligar do mencionado Si-mesmo.
Para além de temas meramente mentais, o europeu abordou a sincronicidade aplicada a uma relação entre acontecimentos, entendendo-a como a ocorrência de dois ou mais eventos em que se sucede uma coincidência significativa para os atores dos mesmos. Este conceito diferencia-se da coincidência porque a aleatoriedade é uma condição necessária mas não suficiente, precisando de igual modo de um padrão em que compila aspetos significativos para um sujeito. Esse padrão pode tomar as proporções de um arquétipo e mesmo fazer parte do inconsciente coletivo analisado acima.
Numa perspetiva comparativa com o psicanalista Sigmund Freud, existem vários traços que separam as suas abordagens. Freud nominaliza a energia vital como a líbido, sendo a que se materializa através dos instintos, enquanto na visão de Jung é a psique e os arquétipos a si associados que desencadeiam essa manifestação. Ambos defendem a existência de conflitos que desestabilizam a harmonia do ser mas, enquanto o austríaco a perceciona como um embate entre instintos, o suíço identifica a causa como sendo a negação da psique. No desenvolvimento pessoal, enquanto Jung não se desliga dos arquétipos, Freud segue a linha psicossexual do seu pensamento, começando o indivíduo por se desenvolver a partir das primeiras manifestações de sexualidade infantil. Até mesmo na interpretação onírica existe uma oposição interpretativa: por um lado, Freud associa livre e simbolicamente mas atribui-lhes um significado de revelação dos traumas e desejos mais profundos e viscerais do sonhador. Por outro lado, Carl Jung, sondando também os sonhos através da sua simbologia, estuda a sua finalidade ao invés das suas causas, visando a relação dos mesmos com os seus traços culturais e com a contraposição deles com as situações quotidianas do indivíduo. Na perceção do fim último da vida, Sigmund não se dirige à espiritualidade tal como o suíço, este que vê na transcendência espiritual da consciência como esse objetivo a alcançar. O austríaco delineia, como meta de vida, a procura de algo que lhe atribua completude e que esteja em comunhão com a sua delicada estrutura mental.
Em suma, é crucial perceber a visão de Carl Jung quanto à (teoria da) personalidade pois interliga grande parte dos conceitos explicitados. Denominada por ele como psique, é vista por ele como uma inter-relação dinâmica de sistemas isolados que atuam uns sobre os outros. Alguns destes consistem no ego, nos inconscientes individual e coletivo e aos arquétipos supramencionados, com o aglomerado destes a radicar no Si-mesmo. Para além dos mecanismos do inconsciente associados à formação da psique, existe o ego. Este define a identidade do indivíduo e a sua temporalidade, sendo suportado pelas perceções, memórias e emoções armazenadas na consciência. É a simbiose destes dois mundos que formula e origina a teorização da “geografia psíquica”. Carl Gustav Jung foi, assim, o homem que deu o pontapé de saída na abordagem à psicologia analítica. Um ramo destinado a conhecer melhor o Homem, os seus fundamentos, as suas linhas definidoras e as proporções da sua complexidade. Jung deixou entrar a luz que atribuiu valores concretos às incógnitas que dominaram durante décadas e séculos o estudo psicológico. O suíço, aliado a Freud, criou linhas de interpretação do incompreensível. Afinal de contas, também a psicologia opera milagres.