João Chagas, o jornalista da República
João Chagas é uma personalidade esquecida entre reis e ministros, militares e presidentes. Apesar de uma atividade política bastante expressiva, foi ficando na sombra daqueles que assumiam as principais pastas governamentais do início do século XX, mesmo tendo sido o primeiro presidente do ministério (agora primeiro-ministro). Numa turbulenta transição entre monarquia e república, foi sempre um dos mais agitados e irrigados nomes republicanos, promovendo iniciativas, criando instituições, e redigindo notícias, crónicas e textos de promoção dessa atividade revolucionária. Se se pode atribuir louvores à primeira experiência democrática plena em Portugal, essa deve-se a uma série de nomes como João Chagas, mas nem todos eles tão dedicados e afincados pela causa dos valores de liberdade e de república.
João Pinheiro Chagas nasceu no Rio de Janeiro, no Brasil, a 1 de setembro de 1863. Filho de um casal de emigrantes liberais forçados a sair de Portugal, de origem beirã, voltou cedo para Lisboa, onde foi educado, e onde estudou num colégio conservador até aos 16 anos, idade na qual já trabalhava. A sua mãe era ameríndia, com o seu filho a tornar-se mestiço e com traços de miscigenação. Do pai, viria a herdar o espírito de resistência e de defesa da causa da liberdade. Em 1889, iria para o Porto, onde se tornaria um frequente colaborador em jornais, como “O Primeiro de Janeiro”, e onde conheceria os republicanos Sampaio Bruno, José Falcão e Basílio Teles. Pouco tempo depois, seria convidado para regressar à capital, escrevendo nos periódicos “Tempo”, “O Dia”, e “Correio da Manhã”. A escola jornalística seria aquela que o lançaria na ribalta, tornando-se célebre o seu talento para a escrita e para a reflexão política. Seriam diversas as reportagens às quais dava forma e autoria, reportando vários locais, munindo-as de interesse e de um caráter muito pitoresco. Neste percurso, seria um dos fundadores da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, em formalização e promoção da atividade literária e jornalística da cidade nortenha.
Nesta fase, tornou-se familiar com o grupo intelectual do final do século Vencidos da Vida, tornando-se amigo de vários dos seus membros, e ganhando um cunho crescentemente crítico, incluindo de todo o desenvolvimento liberal nacional. A sua participação na comunicação social acender-se-ia politicamente com o ultimato britânico, no início de 1890, que gerou grandes reservas em relação à monarquia vigente. Na sucessão deste episódio, e apesar de ter relativos e companheiros em posições governamentais, redigiu uma série de artigos incendiários sobre o episódio, e afiliou-se ao Partido Republicano Português. Tentando organizar uma linha de comunicação ideológica, capaz de congregar as vozes de conservadores, socialistas, e revolucionários, é um dos principais proponentes do jornal “A República Portuguesa” (1890); um periódico à boa maneira panfletária, com um rasgo de arte e de criatividade, que despoletaria o espírito da manifestação e da contestação. Esta triagem tornou-se um êxito, contando com a colaboração de vários intelectuais republicanos, e com uma venda inaugural de dez mil exemplares, para além dos que chegaram a Lisboa.
Chagas, sempre associado a um pendor revolucionário, foi implicado na revolta portuense do 31 de janeiro de 1891, resultado de todo o seu vigor e ardor pelos ventos republicanos, e onde se propôs a dar um primeiro grito de liberdade. De uma tentativa que fracassou em mover a população, resultou o reforço da pena prisional na Cadeira da Relação, onde estava após redigir o artigo insurgente “Basta”, julgamento em pleno Conselho de Guerra, e o degredo para Angola, do qual fugiu para Paris, e onde continuou a lutar pela sua causa ideológica revolucionária. Tudo na tentativa de fazer vingar a liberdade de imprensa, e de lutar contra as restrições e limitações monárquicas, para além de todo o ideal republicano, e de uma movimentação enérgica e sentida do exército português, na defesa dos seus interesses. Contudo, a sua fuga de África não decorreria sem uma série de peripécias e de tentativas, fruto de todo o seu caráter quezilento e audaz. Todas estas estão versadas no livro “Trabalhos Forçados” (1892), seguindo-se outras tantas que se viriam a proporcionar na tentativa de regressar ao Porto. Como recluso, também redigiu “Diário de um Condenado Político” (1892-93), onde fez menção a todas as experiências e crenças políticas ebulidas então.
Entretanto, continuou a sua formação em França, em 1892, país da sua referência Victor Hugo, e na Bélgica, depois de se evadir do degredo. Apesar das dissidências ideológicas nutridas, a sua família estava do seu lado, no ponto de vista logístico e de suporte ao seu bem-estar. O seu regresso dar-se-ia pouco tempo antes do século XX chegar, de forma clandestina, mas fundando uma série de publicações satíricas e intervencionistas. Sendo identificado e recebido por um amigo na cidade invicta, não se livraria de voltar, em 1893, ao degredo em África, mas sem nunca prejudicar o seu caudal de trabalho, estando no Brasil no ano de 1895, e, daí, voltado, novamente, a Portugal em força, fruto da amnistia que os criminosos políticos receberam à data.
O seu regresso iria mexer com o núcleo republicano que subsistia no Porto, culminando nos célebres e contestatários “Panfletos” (1893-94). Avolumando os predicados de jornalista empreendedor e afoito, e no período de tempo subsequente, Chagas fundou “A Marselhesa” (1897-98), e dirigiria “O País” (1898), “A Lanterna” (1899) e “Batalha” (1900), projetos destinados à ação política, e com especial base na cidade do Porto, para além de colaborar em “A Portuguesa” (1893), onde se mostrou capaz de fintar a forte censura existente. Ainda assim, tornou-se cada vez mais complicado esse mecanizado sistema, não conseguindo manter publicações em circulação por muito tempo. Outras colaborações que foi estabelecendo culminaram em “O Berro” (1896), “Branco e Negro” (1896-98), e “A Paródia” (1900-07), esta criada e dirigida pelo artista Rafael Bordalo Pinheiro. Eram publicações nas quais visava os regeneradores e os membros clericais, ainda muito associados aos órgãos de poder executivo nacionais, lutando contra a propaganda advinda desses meios, e apelando à “questão social”. Para além disso, viria a traduzir a prosa da opereta “Os Bandidos”, do compositor francês Jacques Offenbach, e a peça “Mártir”, do dramaturgo gaulês Adolphe D’Ennery; para além de redigir, em colaboração com outros nomes, obras de pendor republicano.
Chagas voltou a ser preso, em 1896, num ano em que começou a sentir algum cansaço na sua disputa diante dos métodos de repressão existentes. Como tal, emigrou para Madrid, onde foi colaborando em outras edições jornalísticas, e com um papel cada vez menos direto nesse conflito. Ainda assim, conseguiu recuperar forças para dirigir novas publicações até ao período em que se daria o regicídio, superando perdas de companheiros e de comodidades. Foi um período em que reagiu com muita contestação à ditadura de João Franco, governante vigente entre 1906 e 1908, acabando, novamente, encarcerado até à data da queda definitiva da monarquia. O desejo do jornalista era o de vingar a exasperante realidade sociopolítica, maturada em todo o século XIX, e atrofiadora da soberania nacional.
Neste período, viriam a público as “Cartas Políticas”, lançadas no reinado do último monarca português, D. Manuel II, que davam o mote para uma predisposição moral e consciente para revolução que haveria de acontecer. Tudo isto com a acutilância e com a subtileza literária que lhe era reconhecido, suportado por uma ironia eficaz e por uma posição intransigente e incontornável. As cartas dirigiam-se a vários elementos da sociedade portuguesa, como figuras do governo, carbonários, e colaboradores políticos, incluindo o seu rival interno Teófilo Braga. Em 1910, ano da implantação da República, tornar-se-ia diplomata em Paris, demitindo-se, porém, por duas ocasiões, por divergências com os líderes de então. Toda a atmosfera de criar uma nova identidade nacional, e de lavar a imagem do próprio país, tornava-se uma missão complicada, dificultada pelas relações existentes entre os vários republicanos. No ano seguinte, seria ministro dos Negócios Estrangeiros, e seria nomeado, por duas ocasiões, chefe de governo, nesse ano, onde se encarregaria da aplicação da Constituição da República Portuguesa, de setembro a novembro, e em 1915, embora nunca chegasse a exercer.
Foi precisamente em 1915, depois da revolta de 14 de maio, que estaria nas contas para suceder ao general e ditador Pimenta de Castro na presidência do Governo. Numa viagem de comboio, na noite de 16, porém, o senador João José de Freitas disparou cinco tiros na sua direção, três dos quais o atingiram de raspão na cabeça e lhe tiraram um olho. Freitas seria desarmado, entretanto, e entregue à GNR, que seria linchado após ser preso. Deste incidente, sairia gravemente ferido, não assumindo, assim, essa sucessão, e distanciando-se da realidade política com o surgimento do Sidonismo (1916-17). Recuperado, e em tempo de Guerra Mundial, como célebre diplomata, tornou-se um dos principais proponentes da entrada da nação no conflito bélico, ao lado dos aliados franceses e ingleses, embora se revelasse uma participação frustrante e revoltante. Em 1919, receberia a Grã-Cruz da Ordem de Sant’Iago da Espada. Durante esta época, nunca deixou de expressar uma crítica assertiva e acutilante, apontando às iniquidades que julgava que deviam ser desmascaradas e combatidas, fazendo parte da delegação portuguesa na Conferência de Paz, para além de estar presente na Assembleia da Sociedade das Nações. O diplomata e político deixaria a diplomacia em 1924, e regressaria a Portugal, onde iria usufruir de um muito curto período de descanso. Em sua honra, na cidade onde cresceu e muito escreveu, teria o Jardim da Cordoaria a ser designado com o seu próprio nome.
João Chagas faleceria a 28 de maio de 1925, em Cascais, na véspera do fim de um enorme período de instabilidade política, que contou com quatro dezenas de presidentes eleitos em quinze anos. A página deixada pelo jornalista na história da república portuguesa foi recheada e inflamada, com uma agitação inefável, e uma dinâmica impressionante, que partia da representação da palavra para a ação em si prometida. O verdadeiro empreendedorismo sentia-se aqui, nas inovações e nas provações propostas e sentidas, através das causas defendidas e combatidas. Imperativo na qualificação dos jornalistas no seio da sociedade nacional, foi na disputa e na digladiação pelos valores republicanos e democráticas que Chagas conseguiu depurar as chagas encardidas no desgaste da monarquia. Em defesa da liberdade, João Chagas pronunciou-se com intensidade e voracidade, descurando e redigindo em verdade.