Vodafone Paredes de Coura: o sangue dos Mão Morta e o suor e lágrimas dos Future Islands
O Festival Vodafone Paredes de Coura regressou ontem à Praia Fluvial do Taboão, para um primeiro dia de música que se dedicou em parte à celebração do 25º aniversário do festival, ao revisitar tempos passados. Viveram-se diversas emoções. Os Mão Morta trouxeram o sangue, e os Future Islands o suor e as lágrimas. Kate Tempest impressionou com a sua poesia intempestiva.
A Escola do Rock de Paredes de Coura abriu as hostes com um enorme conjunto de jovens que, em grande parte, eram mais novos que o festival que se encontravam a celebrar. Com o palco dividido em autênticos batalhões dedicados a cada tipo de instrumentos, a Escola atirou-se a diversos êxitos dos grandes artistas que já passaram por este festival – as várias baterias marcaram bem o tempo de “Elephant”, dos Tame Impala, os instrumentos de sopro e coros homenagearam os Arcade Fire, com “No Cars Go”, e inúmeras guitarras fizeram desfilar o riff inconfundível de “Where is My Mind?”, dos Pixies. Foi bonito ver um grupo tão grande a renovar a geração do rock, descontraidamente levando a cabo a imponente tarefa que é reinterpretar canções tão marcantes. Uma edição especial mereceu este início especial.
Seguindo a senda de celebração, os The Wedding Present vieram recordar o seu álbum George Best, que completa 30 anos em 2017. Após terem dado um concerto à tarde, acima dos balneários da Praia Fluvial do Taboão, para o povo que se banhava no rio Coura, a banda tocou o álbum acima mencionado na íntegra. O seu rock britânico musculado encheu o recinto, ainda a meio-gás, com o baixo potente e sujo de “You Can’t Moan, Can You?” e a ginga de “Give My Love To Kevin”. Como havia tempo para mais uma, revisita-se “Kennedy”, do álbum seguinte, Bizarro, para finalizar um concerto competente, sem grandes efusões.
“Adolfo! Adolfo! Adolfo!”, clama o público. Sem grandes cerimónias, após um início com guitarras cheias de reverberação, lá entra Adolfo Luxúria Canibal, a personagem que é a figura-de-proa dos bracarenses Mão Morta. Envergando uma camisa azul, uns calções cargo beges e uma boa quantidade de ebriedade, Adolfo explica-nos o propósito do concerto. Vamos assistir à revisitação de mais um álbum, desta vez Mutantes S. 21, que celebra as suas bodas de prata este ano, à semelhança do festival. O Festival de Paredes de Coura sempre foi muito especial para a banda, que já actuou aqui mais de cinco vezes, tornando-se na presença mais assídua do festival. Adolfo reconhece isso e urge que cantemos os parabéns ao menino Paredes de Coura.
A poesia macabra declamada por Adolfo nos seus grunhidos profundos toma uma profundidade maior com as imagens distorcidas que, por detrás da banda, são projectadas, assim como com o rock cheio de sludge, com influências industriais, por ela tocado. A viagem pelo submundo de diversas cidades retratada no álbum é bem recebida pelo público, que se agita em moches e crowdsurfs, especialmente no estandarte “Budapeste (Sempre a Rock & Rollar)”. A revisitação termina com as sombras, e o lixo de “Lisboa”, mas ainda andamos mais para trás, até aos primórdios de “Bófia”. Apesar de algumas das coisas descritas se terem vindo a perder com o tempo, ainda há profecias arrepiantes nas letras, e não conseguimos deixar de pensar em como a banda poderia captar o tumulto diferente dos dias de hoje.
Depois destes mergulhos no passado, voltamos ao Reino Unido com os Beak>, cuja maior ligação ao passado é Geoff Barrow, instrumentista dos Portishead (banda que ainda gostaríamos de ver neste festival). De resto, as canções krautrock da banda têm uma sonoridade mais moderna, como uma espécie de Suuns com menos propulsão mecânica. Os inícios promissores dão lugar a canções repetitivas e indutoras de transe, que se perde no ambiente amplo do anfiteatro natural de Coura. O público vai dando uma ajudinha com umas palmas, mas o concerto mantém-se enfadonho e estéril, com excepção das intervenções da banda entre as canções. “What about that Donald Trump? What a cunt.”, diz-nos Barrow durante a resolução de um problema técnico. Diz que somos um dos maiores públicos para os quais já tocou, e tira-nos uma foto para mostrar à sua mãe. As boas intenções fazem-se sentir, mas não vão para além disso. Talvez a colocação da banda no palco Vodafone.fm, num outro dia, tivesse sido uma melhor opção.
No outro lado da monotonia, temos os Future Islands. Com ritmos e linhas de baixo pouco variáveis, a banda de Baltimore usa as melodias e letras para induzir emoção. Essas emoções são ampliadas ao vivo pelas performances aguerridas de Samuel Herring, um dos mais carismáticos vocalistas que esta edição verá. Herring olha-nos nos olhos, corre de um lado para o outro do palco, atira-se ao chão. e até se serpenteia sensualmente, entregando-nos as suas letras com uma intensidade brutal, recorrendo, inclusivamente, a gritos guturais que parecem vindos de uma banda metal.
O concerto dividiu-se maioritariamente pelo mais recente The Far Field, e pelos anteriores Singles e In Evening Air. Inspirado pelas paisagens que viu pela janela da carrinha, ao vir para a bucólica vila de Paredes de Coura, Samuel decide trocar “Light House” por uma canção mais adequada às emoções à flor da pele que se vivem neste festival, “A Song for Our Grandfathers”. A essa, segue-se um dos pontos altos do mais recente álbum, “North Star”, que impressiona com as suas teclas, e o single maior de Singles, “Seasons (Waiting on You)”, curiosamente não deixado para o fim. A canção recebe a maior ovação do dia, e leva Herring às lágrimas, que se juntam ao suor que empapa a sua camisa. Ainda assim, o artista não desiste e termina o concerto com um dos ritmos mais contagiantes da banda, o de “Spirit”, uma canção sobre procurar bem, bem fundo dentro de nós. É essa a valência das canções dos Future Islands que as tornam especiais.
Kate Tempest termina o primeiro dia deste Vodafone Paredes de Coura com a sua declamação de poesia livre, ancorada por sons e batidas intensas de hip-hop, produzidos por uma banda ao vivo que adicionam riqueza sonora ao concerto. A sua música e entrega podem ser um gosto adquirido, mas grande parte da massa de público manteve-se fiel até ao fim, impressionada pelos seus textos cáusticos sobre alienação e a sociedade moderna, que já nem sabe o que é viver. Talvez o público deste festival até saiba bem como viver, pelo que as canções funcionam como aviso, para não nos deixarmos cair no vórtice do vazio e do marasmo, em que meramente se existe. Tais ideias caíram que nem uma flecha no público que, quando viu o concerto terminar, gritou por mais, mas Kate já não voltou.
O Vodafone Paredes de Coura continua a sua tradição de tranquilidade e intimismo, dando a sensação de ainda ser um festival puro. É de notar os poucos anúncios que existem entre concertos, que dão espaço para as pessoas conversarem e experienciarem o formidável ambiente que por cá se vive. Hoje, o festival regressa com mais concertos, dos quais se destacam nomes como King Krule, At the Drive-In, Car Seat Headrest ou Timber Timbre.
Fotografias da autoria de Hugo Lima.