O senhor Pedroto e a pronúncia do Norte
O senhor Pedroto nasceu em Lamego, numa pequena freguesia chamada Almacave. Viveu 56 anos, mas intensamente vividos. Foi jogador e treinador de futebol, como tantos outros. Porém, poucos foram aqueles que marcaram tanto a pronúncia do Norte e a identidade do Norte como ele. Foi ele que abraçou Pinto da Costa nos seus inícios como dirigente do FC Porto e lhe permitiu construir o grande clube que todos nós conhecemos atualmente. No entanto, aquilo que quero destacar nem é tanto isso.
José Maria Pedroto sempre foi um mito, um vulto enorme. Se eu, como sportinguista residente no Norte, via sempre, em criança, com reverência o “Papa” do Porto, ouvia falar do senhor Pedroto como se de um Deus se tratasse. Nada que umas boas pesquisas não o esclarecessem. Havia falecido prematuramente, vítima de cancro. No entanto, notava que todos que o tinham conhecido e que tinham convivido e trabalhado com ele o tratavam de uma forma especial. Era um líder nato, um verdadeiro símbolo daquela pequena região das Antas, região que procurava equilibrar a balança do mapa entre Norte e Sul.
Como futebolista, começou no Leixões e em Vila Real de Santo António – por força do serviço militar, que o levou até ao Algarve. Daí, foi ganhar no Belenenses e no Porto, numa fase em que era raro este ganhar. Fez-se capitão, líder, inspiração para outros. Ainda chegou a fundar um clube com amigos da sua zona, o Pedras Rubras. Como treinador, ainda ganhou mais, depois de concluir o curso em França aos 31 anos, depois de, seis anos antes, o ter feito no Porto, sob o olhar do então mestre do futebol português, Cândido de Oliveira. Fez de Setúbal, onde levou um segundo lugar, e do Boavista, onde acrescentou duas taças serem ainda maiores, quebrando barreiras nunca antes superadas, sem esquecer as passagens por Leixões, Varzim, Guimarães e até pela seleção, onde não foi feliz e de onde saiu contrafeito, depois de ver impossibilitada a proposta em que todos os treinadores tinham acesso gratuito aos jogos da seleção. Chegou ao Porto ainda mais profissional e plantou as raízes para que o Porto ganhasse uma fama internacional e honrasse a sua história local. A posse de bola e a qualidade do passe eram a montra estética de quem tinha muito mais para mostrar que isso.
O Zé do Boné chegou com estilo e com personalidade e inspirou uma cidade então amorfa para encarnarem um ADN de superação, de garra e de determinação, quase como um grito de revolta pela constante relegação em relação ao sul. Tudo com uma ética de trabalho bem rigorosa e profunda, obrigando a que existisse cada vez mais profissionalização. Querem algo mais definidor de uma cultura do que isto, uma ideologia que motiva outros seres humanos e que modifica e inspira os seus padrões de comportamentos e reações? Tinha sido algo que havia perdido dos seus tempos de futebolista, já que gostava de ser gozão e trocista.
Isso não o impediu de ser banido do Porto, por decisão em Assembleia Geral, na sua primeira passagem como treinador, depois de um desaguisado com o presidente. Essa sua inflexibilidade tinha, por vezes, consequências, embora acreditasse na importância de um grupo coeso, profissional, orientado para o sucesso em torno de um entendimento técnico-tático do jogo. Não obstante, colocava muitas interrogações, na tentativa de ir sempre mais longe, de aprender com os treinos e com os jogos, nos seus mais diversos aspetos, desde o jogado ao pensado e ao sentido. Também por isso criaria, na terceira passagem pelo FC Porto (a primeira foi entre 1967-69, a segunda entre 1976-80 e a terceira, por fim, entre 1982-84), um gabinete de observação e de análise, que revelava esse espírito de melhoria contínua.
Nos seus tempos livres, carregava o maço de cigarros e, nos cafés do Porto, pedia um copo da sua bebida predileta: o whisky, para além de, pela noite, se entregar à ricardina, um jogo de cartas à moda da sueca, entre a Pastelaria Petúnia e o Café Orfeu. Nem o cancro o privou de, nos últimos suspiros da sua vida, usufruir desses seus prazeres mundanos, do bom do cigarro e do trago do whisky. A leitura era um dos seus outros gostos, assim como a pesca e há quem diga que também o oculto o seduzia, pelos rituais que tinha antes e depois dos jogos. Tudo isto lhe dava estofo para fazer frente a quem o queria restringir. Foi assim em Setúbal, quando queriam fazer valer a “lei da rolha” para obstarem os jogadores de posições pessoais e até de ter uma vida. O senhor Pedroto bateu com a porta. Voltaria ao Porto para quebrar o jejum de títulos de 19 anos, entre 1959 — que havia ganho como jogador — e 1978.
Esta postura truculenta e viril ainda lhe arranjou mais sarilhos, mas o 25 de abril veio fazer com que se encontrasse. Via em Francisco Sá Carneiro uma referência na sua ideia social-democrata para o país e mesmo a concertação social era algo que via com bons olhos, já que havia sido um dos proponentes do Sindicato Democrático dos Profissionais de Futebol. Era uma postura que era vista com bons olhos pelos nomes fortes do futebol a Norte, como o major Valentim Loureiro ou o “professor bitaites”, Hernâni Gonçalves, seu grande colaborador na equipa médica do FC Porto; para além dos seus jogadores, que se sentiam extremamente motivados e se reviam no discurso e nas ideias do seu treinador. E foi essa divisão Norte-Sul que tentou reforçar para o público, na segunda leva como técnico do FC Porto, enquanto não ia esquecendo a sua máxima de um profissional de futebol o ser também depois do apito final. Foi uma retórica concertada com o presidente que tinha assumido recentemente, no longevo ano de 1982, a cadeira máxima da direção do clube: Pinto da Costa.
Antes da sua morte, Ramalho Eanes, então Presidente da República, fez questão de ir a Norte atribuir a Ordem do Infante ao senhor Pedroto. A recompensa de um caráter forte, filho de um capitão do Exército, que dotou o futebol (Clube do Porto) de uma atitude diferente, mais assertiva, mais científica, mas também mais rigorosa e profissional. Com valores humanos e técnico-táticos firmes, não deixou, apesar de ser um filho adotivo, de exprimir a pronúncia do Norte como tão poucos. Eu, que nasci 10 anos após a sua morte, sempre o encarei com grande curiosidade e também alguma distância. Não sabia quem era, mas sabia que tinha tido um papel determinante em fazer do Porto um bastião do futebol. E assim foi: depois de uma final europeia, na Taça das Taças, haveria campeão europeu em 1987, guiados pelo braço direito de Pedroto — Artur Jorge, também ele encantado pela literatura e pela poesia.
Foi o senhor Pedroto, o Zé do Boné, que devolveu ao Norte o seu norte. Da pequenez a que se tinham conformado, a necessidade de romper, de transcender e de se afirmar, de se fazer ouvir, de dizer “presente”. Digam-me que isto não é cultura. Foi a história que se fez a Norte. Talvez sem ele não houvesse “A Pronúncia do Norte”. Por muito que o portismo me seja indiferente, não o é o malogrado senhor Pedroto. Um autêntico monstro sagrado do futebol e do Norte que me é tão querido. São estes que me inspiram.