O desenvolvimento em crescimento da psicologia de Lev Vygotsky
Apesar das origens orientais, Lev Vygotsky figurou-se como um dos mais influentes nomes da psicologia histórico-cultural de todo o mundo, abarcando futuras inspirações de nomes ímpares desta área do saber. Todo o seu trabalho abriu portas no sentido do desenvolvimento de um pensamento amplo, complementado por diversas fases daquilo que foi o(s) âmbito(s) estudados. Também na educação assumiu um papel crucial, naquilo que era, à data, um estudo revolucionário sobre a evolução psicológica infantil – muito confrontado ao suíço Jean Piaget – para além da integração desta no ambiente social operativo, nos processos de comunicação com os outros e com o mundo. Na sua amplitude, o bielorrusso, não obstante viver pouco menos do que 40 anos, deu largas e fartas asas a uma dimensão por se desvendar, mas que hoje se acaba a realçar.
Lev Vygotsky nasceu na cidade de Orsha, na atual Bielorrússia, outrora parte do Império Russo, no mês de novembro de 1896. Crescendo no seio de uma família de classe média com raízes judaicas, foi na cidade de Gomel, perto daquela onde havia nascido, que recebeu a sua educação pública e privada. Por meio de uma “lotaria judaica” – apenas 3% da gama de estudantes na Universidade de Moscovo, onde iria estudar, e na de São Petersburgo poderia ter essas origens – Vygotsky entrou, por insistência parental, na Faculdade de Medicina. Porém, após o primeiro semestre, mudou-se para Direito, indo, em simultâneo, numa outra instituição, a aulas de financiamento privado e sem diploma. Interessado pelo formalismo artístico vigente então, era devoto por artes, tendo almejado ser crítico literário, mas nunca confirmando isso na prática.
A sua licenciatura seria assegurada em 1917, precisamente no ano em que se deu a Revolução de Outubro. Entusiasmado pela dinâmica bolchevique na tomada de poder, tornou-se num participante ativo naquilo que foi a transformação social imprimida por essa dinâmica, e representou-a na cidade onde tinha crescido, em Gomel. Sete anos depois da revolução, interessou-se pela neurologia e pela psicologia, comparecendo e envolvendo-se, assim, no segundo congresso russo dessas duas áreas, na cidade de Leninegrado. Pouco depois, e pelo vigor que sempre exprimiu nas mais diversas circunstâncias da sua vida, foi convidado para se tornar investigador no Instituto Psicológico de Moscovo, cidade para onde passou a viver com a sua esposa Roza Smekhova. Aqui, começou a sua carreira como um cientista, preparando a dissertação “The Psychology of Art”, que seria apresentada em 1925. Trazendo, consigo, uma bagagem de Gomel, onde tinha prestado assessoria psicológica em estabelecimentos de ensino locais, também preparou um livro, de seu título “Pedagogical Psychology”. 1925 seria o ano em que Vygotsky viajaria para fora pela primeira vez, comparecendo a um congresso sobre a educação de indivíduos surdos, na cidade de Londres. No regresso, deparou-se com uma recaída de uma tuberculose, que havia contraído outrora, e ficou impossibilitado de trabalhar durante um ano.
“By giving our students practice in talking with others, we give them frames for thinking on their own.”
“Mind in Society” (1978)
Após sair do hospital, voltou ao laboratório e ao mundo para trabalhar sobre a crise na psicologia, numa obra que não seria finalizada. No entanto, este tratado foi recuperado, e o bielorrusso exprimia, lá, o desejo de ver a formação de psicologia geral, que englobasse as origens objetivistas, científicas e naturalistas, com o perfume filosófico, e aromatizado com a orientação marxista; embora criticasse aqueles que se cingiam a este espírito para formular uma nova psicologia. Como influência deste, pensava, precisamente, em incorporá-lo numa metodologia prática e exequível na operacionalização do trabalho científico e psicológico. No final da década de 20, continuou empenhado numa iniciativa investigativa relativa ao desenvolvimento das funções cognitivas de tomada de decisão, memória lógica, atenção seletiva, e compreensão linguística. Assim, reuniu uma série de profissionais da área compatriotas a si, como Alexander Luria, Alexei Leontiev, e Leonid Zankov, para a estruturação e desenvolvimento da mesma. Os ângulos nos quais incidiu o seu trabalho passaram pelo instrumental, onde se procurou entender os modos como os seres humanos usam objetos para apoiar na mediação da memória e do raciocínio; pelo evolutivo, olhando para como as crianças conseguiam adquirir funções cognitivas de maior complexidade durante o seu processo de maturação; e pelo histórico-cultural, percecionado como os padrões sociais e culturais de interação conseguiam moldar métodos de mediação, para além das próprias trajetórias de desenvolvimento.
Os anos 30 seriam os últimos nos quais Vygotsky conheceria a vida plena e física, tendo embarcado numa crise pessoal e de grande auto-crítica do seu trabalho. Assim, revirou todos os fundamentos do seu percurso, e começou a enveredar pela psicologia da Gestalt – procurando explicitar o implícito, nas formas e nos conceitos que se auto-organizam e se autorregulam – procurando estabelecer algumas ideias sobre a teoria da consciência. Porém, a sua saúde débil iria-o trair, quando estava em plena reformulação do seu eu pessoal e profissional, no dia 11 de junho de 1934, aos 37 anos, na cidade de Moscovo. O psicólogo seria aclamado após a sua morte, embora flagelado, em certa parte, pelo Partido Comunista da União Soviética (PCUS), que descredibilizou a pedologia (psicologia relativa ao desenvolvimento e do comportamento infantil). Apesar de toda esta aura delatória em relação a esses pensadores da ciência da mente, não deixou de se tornar numa das figuras mais aclamadas nos contextos nacional e internacional.
Para além da influência que congregou no seu círculo, reuniu as atenções e os apontamentos de vários psicólogos voltados para a mais diversa gama de conceitos, como a vontade e volição (Alexander Zaporozhets), a memória (Pyotr Zinchenko), a perceção, a sensação e o movimento (Vladimir Asnin), o jogo, a aprendizagem, a teoria da atividade, e a ação; para além de vários grupos póstumos, efetuados em memória daquilo que havia proposto e intervindo. Fora de portas, apesar de um impacto inicialmente tímido, começou a ganhar proporções bastante amplas nos anos 80, com o lançamento de “Mind in Society” nos Estados Unidos da América, e, seguidamente, para outros pontos da orla ocidental. Foi assim que se perpetuou um nome que, embora de curto período de vida, se alastrou e se legou para os nossos dias. O século XXI conheceria um novo fulgor de estudos em relação a este nome, gerando aquilo que, comumente, ficou conhecido como “Vygotsky Cult”.
Mais do que a sua biografia, Vygotsky é muito mais aquilo que deixou para as gerações futuras, eternizando-se, como outros tantos, naquilo que é o estudo profundo e profícuo dos assuntos mais interessados e interessantes da psicologia. Assim, e para além das obras mencionadas acima, também “Thought and Language” (1934) foi uma das que firmou a identidade prática do bielorrusso. Nos palcos da psicologia do desenvolvimento, da educação, e do desenvolvimento infantil, foram vários os contributos selados e apresentados pelo psicólogo, muitas vezes mediados por ferramentas, que conduziam a interpretações várias e filosóficas da cognição. O trabalho que fez também se estendeu à filosofia da ciência, à referida metodologia da investigação em psicológica, ao desenvolvimento humano e às suas variáveis anómalas, e à célebre psicologia da arte, estudando conceitos psicológicos, como a perceção e a cognição, aplicadas à constituição artística.
“A word devoid of thought is a dead thing, and a thought unembodied in words remains a shadow.”
“Thought and Language” (1934)
Todo o seu período profissional deve ser devidamente contextualizado por décadas, pois foi no decorrer e no transitar destas que se assistiu a grande parte da evolução de Vygotsky. Começando pelo período instrumental, assente nos anos 20, o estudo foi voltado para o desenvolvimento da criança, à luz daquilo que havia feito na cidade onde crescera, e nos papéis da mediação cultural e da comunicação interpessoal. Quanto ao primeiro, este passa muito pelas ferramentas, símbolos e sinais partilhados nas comunidades de maior ou menor número, mas que marcam o desenvolvimento infantil. Assim, aquilo que é partilhado por indivíduos e pela sociedade é só assimilado a posteriori pela criança, sendo este o suporte do surgimento das funções mentais de maior importância. No que toca à comunicação interpessoal, esta é onde essa mediação cultural ocorre, na partilha de valores e de experiências dentro da comunidade, e que torna a criança familiarizada com o meio ambiente no qual cresce e amadurece. Todas estas interações levam a que o conhecimento partilhado em contextos culturais seja interiorizado, sendo sintomático daquilo que são as aprendizagens de práticas por parte das crianças. Estas só se tornam possíveis com a sua relação com a sociedade, envolvendo-se na perceção de como se faz, e de, efetivamente, o fazer. Após a interiorização, surge a apropriação, em que a criança reivindica para si um dado objeto, após perceber para que é que este funciona, e destinando-o para as suas próprias intenções.
Uma abordagem interessante efetuada por si foi a explanada em “The Psychology of Art”, problematiza psicologicamente a arte, nas suas várias dimensões, tais como conhecimento, procedimento, e na ligação com a psicanálise. Para melhor escrutinar aquilo que são as obras literárias, centrou-se em William Shakespeare, e no fabulista russo Ivan Krylov, e destrinça a poesia da prosa, para além de apontar e de denunciar os formalismos russos, e de separar fábula de enredo. Na argumentação, refuta este pelos procedimentos formais executados na escrita, enredados naquilo que é a dialética um pouco obtusa efetuada por autores, como Krylov. Outra noção aflorada foi a de catarse na arte e na literatura, na habitual problematização de forma e conteúdo, dando-se essa transmutação na síntese entre ambos, constituindo-se, assim, a obra de arte. A conciliação dos contrários, naquilo que é a harmonização dessa forma e desse conteúdo, a forma acaba por anular este segundo, naquilo que é a especialização da transmissão da mensagem artística. Por fim, e puxando a arte à vida, não esquece o papel social da primeira, apontando-a como a mais importante concentração dos processos biológicos e sociais do indivíduo na sociedade, equilibrando o ser humano nos seus momentos mais delicados. Quanto aos clássicos, referiu que não implica que haja concordância de quem o lê, ou de quem o experiencia, embora implique a sua reverência.
A transição entre os anos 20 e 30 são aqueles nos quais decorre a tal problematização conceptual do pensamento de Vygotsky, visualizando várias lacunas naquilo que era conhecido como o Vygotsky Circle – um grupo informal de psicólogos e terapeutas, envolvidos e reunidos sob a tutela e a inspiração do bielorrusso, incorporando os seus conceitos de relações sociais, da integração científica da mente, e do comportamento dos indivíduos nos seus contextos sociais e evolutivos. Abdicando de preferenciar certas funções psicológicas em detrimento de outras, considerou a sua teoria cada vez menos aplicável à realidade vivida, tal como a indústria da educação. Alguns detratores da sua linha de pensamento surgiram nesta fase, tais como Sergei Rubinstein, apontando o dedo à noção de mediação no trabalho dos estudantes. Para além disso, os seus antigos colaboradores do círculo, mencionados acima naquilo que foi a programática investigativa encetada, passaram a viver na Ucrânia, onde iria estabelecer a escola de psicologia kharkoviana, bebendo da teoria sociocultural de Vygotsky, mas também da teoria da atividade de Leontiev, numa perceção sistémica dos fenómenos psicológicos.
“Through others we become ourselves.”
Seria à luz desta fase menos sólida e estável da sua projeção que se tornou mais desvinculado do mecanicismo que tinha trazido e defendido até então, e que se sentiu aproximado de nomes, como Kurt Lewin – e a sua perspetiva vetorial da psicologia, ou teoria de campo, em que se examinaram padrões de interação humana, de forma a se entender a perceção do indivíduo em relação à realidade, na composição de necessidades em relação a estímulos do meio ambiente – ou Kurt Goldstein, ambos proponentes do Gestalt na psicologia, não descurando a psicologia sistémica. Conceitos cruciais apresentados por si nesta fase foram, por exemplo, a noção de zona de desenvolvimento proximal, consistindo naquilo que é a diferença entre o que um dado aprendiz pode fazer e não pode fazer, apresentando uma área na qual a educação se pode propiciar, com ou sem acompanhamento. Isto em termos latos e simples, embora se trate de algo de maiores dimensões, sendo uma zona onde há uma correlação entre a aprendizagem infantil e o desenvolvimento cognitivo. Anteriormente, existiam três visões a partir das quais este se associava à educação. A primeira, construtivista, via o desenvolvimento como algo que precedia a aprendizagem, em que as crianças teriam de alcançar um nível de maturidade para poder aprender; a segunda, behaviorista, apresentava a simultaneidade da aprendizagem e do desenvolvimento, estabelecendo, até, uma relação de sinonímia entre ambas; por sua vez, a meramente gestaltista, via a aprendizagem e o desenvolvimento como conceitos separados, mas em interação entre si, com um processo a desencadear e a preparar o oposto, e vice-versa.
Para Vygotsky, a aprendizagem antecedia sempre o desenvolvimento naquilo que é a afamada zona de desenvolvimento proximal. Assim, e através da assessoria de uma pessoa capaz (um agente educacional, por norma), uma criança é capaz de aprender ferramentas e aspetos que vão para além daquilo que é normal num dado nível de desenvolvimento infantil. O limite mais baixo dessa zona é, precisamente, o nível de uma dada competência alcançado por uma criança por si só, sem contar com o apoio de quem quer que seja; já o mais alto é aquele ao qual, com essa assistência, a criança é capaz de chegar. Desta feita, a zona de desenvolvimento proximal é algo prospetivo, que olha para além daquilo que são as capacidades autónomas desenvolvidas por uma criança, e que corrobora e assume o papel do ambiente externo, nos seus protagonistas de orientação e inspiração, no transcender ao normalmente assumido.
Outra das principais áreas de incidência do bielorrusso prendeu-se com a interação entre o desenvolvimento dos idiomas e do pensamento. “Thinking and Speech” traz uma antologia de ensaios académicos escritos em várias ocasiões distribuídas por uma cronologia entre fases de conceção e de maturação diferentes. A obra expõe, desta feita, a relação profunda e evidente entre o discurso interiorizado e a linguagem oral com o desenvolvimento de conceitos mentais e de perceção cognitiva. Mesmo que a crença inicial do psicólogo fosse de que o discurso interno se construísse a partir do externo, a partir da tal interiorização, afirmou que, na sua forma mais consolidada, o discurso interno não se aproxima daquilo que é o falado, tornando-se muito mais comprimido. É desta forma que o pensamento acaba por moldar e fazer desenvolver aquilo que é a sociedade, nas suas diversas componentes e considerações.
“Learning is more than the acquisition of the ability to think; it is the acquisition of many specialized abilities for thinking about a variety of things.”
Lev Vygotsky foi um dos mais amplos e profundos psicólogos, não resistindo às suas crises para dar azo à mutabilidade do seu pensamento e da sua mundividência. Os contributos que prestou à psicologia do desenvolvimento como um todo foram cruciais para que os olhos desta ganhassem novos horizontes, para além da tradição mecanicista e instrumental, descrente e desligada da filosofia e da própria historicidade cultural. Na própria abordagem cognitiva, debruçou-se com algumas preocupações e questões em relação àquilo que era a formulação e maturação da estrutura mental da criança, numa aprendizagem também problematizada por outros tantos. Mesmo à luz de uma realidade política conturbada, partilhada, também, por Ivan Pavlov, Vygotsky emancipou-se em liberdade, numa investigação rumo à verdade do desenvolvimento da humanidade.