Entrevista. Célia Araújo: “Um médico tem de entender tudo o que é inerente à vivência humana”
Entrevista realizada no âmbito da parceria da Comunidade Cultura e Arte (CCA) com a ANEM (Associação Nacional de Estudantes de Medicina) e com a Escola de Medicina da Universidade do Minho.
A Porta Nova trata-se de uma associação de estudantes da escola de Medicina da Universidade do Minho que desenvolve projectos de Voluntariado Nacional e Internacional, no âmbito da sensibilização e educação para a saúde. Com especial foco nos países do PALOP, a Porta Nova já esteve por três vezes na Guiné-Bissau e, Célia Araújo, presidente da associação, contou em entrevista como foi a sua própria experiência no país, e a forma como a Porta Nova pretende actuar no futuro.
Para além da questão do voluntariado internacional, a Porta Nova dedica-se ao desenvolvimento de momentos de formação para a comunidade estudantil da Escola de Medicina, como sejam as jornadas que decorreram no mês de Abril dedicadas à aprendizagem da comunicação clínica enquadrada na comunidade LGBTQIA+.
Sobre a sua experiência na Guiné, ressalvou as condições precárias e as dificuldades no acesso à saúde. Presenciou falhas de energia constantes, mortes precoces em crianças e jovens por patologias resolvíveis em Portugal e, ainda, situações de fome e extenuação. Ressalvou, também, o problema gritante que ainda é, aos dias de hoje, a mutilação genital feminina.
Situações que marcam, mudam, e que segundo Célia Araújo são preponderantes para um entendimento humanitário da medicina, mesmo em Portugal.
Da experiência fica a frustração de se saber que muito se poderia fazer por aquelas pessoas caso as condições o permitissem, mas é necessária uma mudança profunda dos governos e sociedade. Nos voluntários prevalece a vontade de regressarem um dia a estas comunidades enquanto profissionais para fazerem mais e melhor, mas claro está que sem uma restruturação profunda do contexto atual das comunidades guineenses muito pouco poderá mudar. Não obstante, Célia relembra a frase que atribui a Francisco de Assis, “primeiro começamos por fazer as coisas possíveis e, quando damos por ela, estamos a fazer o impossível.” Os pequenos gestos ao alcance de cada um, também contam.
Sei que estiveste em Bafatá, Guiné-Bissau. O que te fez ir para a Guiné e o que é que esperavas adquirir com a experiência?
Já tinha feito alguns projectos de voluntariado nacional e, essencialmente, esperava ter mais contacto com o mundo, fora da bolha em que vivo. Precisava de adquirir competências do ponto de vista social e de me empoderar da minha responsabilidade social, enquanto pessoa privilegiada. Foi nesse contexto que decidi fazer voluntariado internacional. Depois, sendo estudante de medicina, na escola de medicina da Universidade do Minho, ouvi falar da associação de Voluntariado “Porta Nova”, e achei que fazia sentido integrar o projecto. No fundo, seria juntar o útil ao agradável, ia treinar competências clínicas, ao mesmo tempo que faria voluntariado internacional.
Há sempre aquela ideia de que o que está longe não nos afecta e não damos tanta importância. Porque é que achas que é importante contornar essa ideia?
Vemos pela guerra na Ucrânia e a mobilização sem precedente de ajuda que existiu em Portugal, que de facto essa premissa está correta. É minha opinião pessoal que as pessoas, genuinamente, são boas e tendem, sempre que possível, a ajudar. A questão é que, muitas vezes, as realidades são tão distantes que não há sensibilidade para tal acontecer. Nesse aspecto, portanto, sempre considerei que era importante aproximarmo-nos o mais possível destas realidades para sentir o ímpeto instintivo de ajudar. Ajudar, toda a gente ajuda, mas claro está, existem muitas guerras pelo mundo e nem sempre as informações de como ajudar nos são disponíveis. Mobilizamo-nos pela Ucrânia, precisamente, porque estamos perto, porque temos mais informação ao nosso dispor e porque rapidamente foram criadas estruturas para que as pessoas pudessem ajudar.
Num artigo da TSF, que saiu no ano passado, abordavas as condições precárias dos profissionais de saúde na Guiné, nos hospitais, com falta de pagamentos, e a situação de greves consecutivas. Chegaste a fazer declarações para esse artigo e confirmaste isso mesmo. Tendo em conta esse factor, como encontraste os hospitais e quais foram os maiores desafios no exercício da prática clínica?
Bem, as dificuldades são imensas, estaríamos em conversa a manhã toda e provavelmente ficariam coisas por dizer. Mas talvez a primeira dificuldade que intercetamos é a barreira linguística. A Guiné-Bissau tem várias etnias e cada etnia fala o seu próprio dialecto. Embora o português seja a língua oficial na Guiné, há poucas pessoas a falar o idioma. Depois, há a pobreza e a falta de recursos. Qualquer doente que entre num hospital para obter cuidados de saúde, mesmo que seja numa situação urgente, tem de se dirigir à farmácia para comprar tudo aquilo que vai ser necessário para o seu tratamento, nomeadamente as luvas do profissional.
Em Portugal o doente nem se apercebe do encargo financeiro das luvas no tratamento hospitalar, e lá, de facto, esta necessidade e despesa torna-se uma situação constrangedora. Presenciei situações em que os doentes não tinham capacidade de pagar as luvas e os profissionais por solidariedade submetiam-se ao risco de executar procedimentos como cateterismos sem luvas por solidariedade. Obviamente que nós, enquanto voluntários, sempre que possível oferecíamos os materiais necessários nestas situações, mas nem sempre estamos presentes ou temos capacidade de intervenção. Patologias como a diabetes que, aqui, em Portugal, são “facilmente” geridas como doenças crónicas, na Guiné-Bissau tornam-se doenças mortíferas. Não existindo luz — em Bafatá tínhamos luz das oito da noite às três da manhã — não existem frigoríficos ligados capazes de conservar a insulina. Se não há forma de conservar insulina, não há forma de tratar a diabetes tipo 1.
Notas que a falta de emancipação feminina torna-se num entrave no acesso aos cuidados de saúde?
Para começar, o acesso aos cuidados de saúde não é como em Portugal. Nem toda a gente tem acesso a cuidados de saúde na Guiné pela distância geográfica e falta de acessos e estradas. Existem estruturas como o PIMI que providencia às mulheres grávidas e crianças os cuidados de saúde necessários. A questão é que por falta de literacia e de recursos para o transporte, as grávidas não se dirigem aos centros de saúde e hospitais. Há, claramente, uma necessidade de emancipação feminina, mas esse é um dos muitos problemas do sistema de saúde guienense. No caso da mutilação genital feminina as mulheres acreditam que a prática é benéfica e enquanto não houver uma reestruturação social continuarão, certamente, a propagar-se os efeitos nefastos desta prática.
“Nestas comunidades, se a mulher não for mutilada vai ser segregada. Na escola, as próprias colegas meninas discriminam. Os homens procuram mulheres mutiladas para casar. É, portanto, uma questão cultural que tem de ser desmistificada e trabalhada em sociedade.”
A falta de literacia em saúde ainda é um entrave muito grande.
Sim, mas não nos enganemos, mesmo cá, em Portugal, existem mulheres mutiladas. Estas práticas são feitas essencialmente dos 3 aos 18 anos, podendo ser antes ou depois. Muitas vezes a mulher foi mutilada tão precocemente que já nem se recorda de como é que é a sua anatomia natural e, por conseguinte, não perceciona as consequências da prática no seu corpo. Ao menstruar ou ao ter relações sexuais a mulher mutilada pode ter dor, mas pode ainda assim não associar as queixas à mutilação, porque dada a idade com que foi mutilada sempre teve dor.
Em Portugal, existem jovens que, ao irem de férias para os seus países de origem, são sexualmente mutiladas. E apesar de existirem programas que possibilitem aos clínicos a referenciação e proteção destas meninas, ainda há falta de informação e capacitação. São situações de extrema fragilidade, em que queremos proteger as meninas sem as vitimizar. Pessoalmente, enquanto futura médica, acho importante ter contactado tão proximamente com esta realidade e sinto-me preparada para gerir este tipo de situações.
Sentiste preocupação, por parte dos governos desses países, em darem mais informação e tentarem travar essas práticas?
Essa é uma pergunta muito difícil. Os profissionais de saúde com quem contactei, principalmente na saúde materno-infantil, sempre que tinham uma grávida mutilada, sinalizavam para que se tivesse um maior cuidado aquando do parto. Eles, claramente, compreendiam que aquela era uma prática nefasta. A questão é que se torna muito complicado tentarmos, ou eles tentarem, retirar esta prática. Não pode ser apenas um profissional de saúde a fazê-lo porque arriscamo-nos a marginalizar uma menina/mulher da sua comunidade. Temos de compreender que, nestas comunidades, se a mulher não for mutilada vai ser segregada. Na escola, as próprias colegas meninas discriminam. Os homens procuram mulheres mutiladas para casar. É, portanto, uma questão cultural que tem de ser desmistificada e trabalhada em sociedade.
As religiões também terão uma forte influência nisso, ou não?
Isso é um mito. É perfeitamente natural que ele exista porque o que acontece é que existem muitos países em que a religião muçulmana está presente, em que ocorre a prática da mutilação genital feminina. No entanto, existem mulheres que não são muçulmanas e que são mutiladas e existem mulheres muçulmanas que não são mutiladas. No Alcorão a prática não é mencionada. E este é até um bom argumento para auxiliar as comunidades muçulmanas que exercem a mutilação das meninas.
O que influencia radicalmente a perpetuação da prática são os mitos que circulam nestas populações. Existem argumentos que defendem que o clitóris se não for mutilado vai continuar a crescer e tornar-se no órgão sexual masculino. Há outras crenças que ditam que a mulher não vai ser pura e vai ter mais desejo sexual podendo, inclusive, trair o marido.
Todos estes mitos são, facilmente, abolidos. Mas é necessário um investimento na literacia das meninas, das mulheres e dos homens destas populações.
“O voluntariado começa em casa, esse é o primeiro ponto. Não precisamos de ir para Guiné-Bissau para fazer voluntariado, há muita coisa que se pode fazer cá em Portugal e nas nossas casas, até no nosso contexto familiar.”
Toda esta experiência ajudou-te a perceber como é importante termos em conta o contexto social da pessoa para o trato médico?
Exactamente. Isto é muito fácil perceber — se estivermos num consultório médico e um especialista dirigir-se a nós, no papel de paciente, com expressões despropositadas com que não nos identificamos, não vamos conseguir estabelecer relação com aquela pessoa e estaremos menos dispostos a ser verdadeiros em consulta. Acho que esta experiência nos enriquece e nos leva a pensar mais na pessoa e não apenas na doença.
Quando os estudantes de medicina procuram o voluntariado, o que devem ter em mente, primeiro?
Acho em primeiro lugar que o voluntariado começa em casa, esse é o primeiro ponto. Não precisamos de ir para Guiné-Bissau para fazer voluntariado, há muita coisa que se pode fazer cá em Portugal e nas nossas casas, até no nosso contexto familiar. Depois, falando a respeito dos projetos internacionais, penso que é preciso ter noção de que não voltaremos os mesmos, toda a experiência vai-nos impactar e mudar a nossa forma de ver o Mundo e os problemas.
A Porta Nova não desenvolve, apenas, projectos internacionais, mas desenvolve, igualmente, projectos cá como, por exemplo, conversas, conferências. Podes desenvolver isso?
Neste momento, por exemplo, estamos a ter um projecto muito interessante em que falamos sobre comunicação clínica enquadrada na comunidade LGBTQIA+. Estas jornadas, que estão a acontecer todas as quintas feiras ao final do dia, surgem de uma parceria com o Projeto Bússola e vem assegurar a comunicação de competências essenciais no exercício da profissão médica a esta comunidade.
Durante as jornadas tivemos o testemunho de uma mulher homossexual: “não sei dizer-vos o número de vezes que fui a uma consulta médica e tive de explicar o porquê de não necessitar de tomar a pílula para não engravidar e manter a minha vida sexual”. E disse mesmo: “torna-se constrangedor ter de explicar a minha vida em todas as consultas médicas”. Portanto, uma simples pergunta como: “qual é a sua orientação sexual”, no início de uma consulta médica, dita com naturalidade, muda tudo. Ninguém faz por mal, mas lá está, muitas vezes não há awareness. Este género de conversas que vamos promovendo, ao longo do ano, são muito importantes e mudam o paradigma de só nos focarmos na doença. Temos de humanizar os cuidados em saúde e temos de ter mais atenção à pessoa que está à nossa frente enquadrando-a no seu contexto. Ainda no outro dia lancei esta pergunta, na escola de medicina, a uns alunos. Em Portugal estamos a receber refugiados, pessoas com nacionalidades diferentes, religiões diferentes. Como é que vamos abordar um doente que seja muçulmano e esteja no Ramadão, e que necessite de medicação, mas que não a possa tomar sem comer? Existem várias nuances para as quais nós temos de estar despertos, para exercer uma boa prática médica. Um médico tem de entender tudo aquilo que é inerente à vivência humana. Pelo menos estou convicta de que é mesmo importante percebermos a complexidade inerente à vida humana para sermos bons médicos.
“Em Bafatá [Guiné-Bissau] cheguei, por exemplo, a estar numa cirurgia e faltar luz porque a gasolina acabou. Quando isto acontecia, tínhamos de esperar e utilizar telemóveis com lanternas, até que alguém fosse comprar gasolina e a voltasse a pôr no gerador, para termos luz.”
Estamos a focar o caso da Guiné, mas penso que o Porta Nova já foi a outros países do PALOP. Tendo em conta a vossa experiência, qual o país que apresenta mais dificuldades e está numa situação de maior risco?
Na totalidade, já fomos a São Tomé e Príncipe, Moçambique, Angola e Guiné-Bissau. De todos os países, e do pouco que presenciamos, a Guiné-Bissau, de facto, é o país que acumula mais necessidades em termos de literacia em saúde, em termos de acesso à saúde e em termos de condições e materiais que suportem a prática clínica.
Em Bafatá cheguei, por exemplo, a estar numa cirurgia e faltar luz porque a gasolina acabou. Quando isto acontecia, tínhamos de esperar e utilizar telemóveis com lanternas, até que alguém fosse comprar gasolina e a voltasse a pôr no gerador, para termos luz.
Mas não acaba por ser frustrante saberes que poderias fazer mais por aquela pessoas mas, por falta de condições, não podes fazer nada.
Sim, é muito frustrante. Quando estava na Guiné, voltávamos muitas vezes do hospital, com as lágrimas a cair-nos cara a abaixo. Vi uma jovem falecer aos 16 anos, depois de um parto, por uma anemia de causa desconhecida, por falta de recursos. É mesmo complicado gerir, emocionalmente, estas situações. Mesmo na pediatria, ver crianças desnutridas, tão pequeninas e tão resignadas à sua condição. Sentíamos que estávamos ali e muito pouco estava ao alcance de ser feito por nós. Em algumas situações, conseguíamos ajudar e oferecíamos materiais e medicamentos a doentes com dificuldades financeiras. Deixámos inclusivamente, materiais no hospital para serem usados no futuro. Mas mesmo as nossas doações representam uma gota no oceano das necessidades de recursos daquelas populações. É por isso que quem vai para estes projectos, percebe que a sua missão começa quando chega de Missão e não propriamente quando vai. É quando estamos cá, que começamos a trabalhar para fazer a diferença mais tarde. Nunca esgotamos as ligações que fazemos com aqueles países e fica, sempre, aquela sensação de, “ok, eu agora vi isto, por isto eu tenho de mudar um bocado que seja esta realidade com aquilo que tiver para dar.”
Mas embora não se possa mudar o mundo, podemos fazer a nossa parte.
Ainda no outro dia li uma frase de Francisco de Assis que dizia, “primeiro começamos por fazer as coisas possíveis e, quando damos por ela, estamos a fazer o impossível.” Acho que é muito nesse objectivo que trabalhamos. Claro que, enquanto estudantes de medicina, não pretendemos mudar a realidade. O nosso projecto é de voluntariado mas, na realidade, nós apenas levamos material, sorrisos e carinho às populações com que contactamos. O projeto em si, dá mais aos voluntários do que deixa as populações. Mas só o facto de os voluntários voltarem mudados, também tem impacto em todas as pessoas à sua volta e nos futuros doentes com quem vão contactar.
“Tinha zero expectativas de mudar o contexto para onde ia, mas achei que conseguia fazer muito mais do que aquilo que fiz. Houve uma fase de luto, por assim dizer, das minhas expectativas pessoais, durante o projecto.”
Como foi a relação com os profissionais de saúde locais que acabaste por encontrar na Guiné?
A relação foi mesmo muito boa, os profissionais com quem contactei são pessoas incríveis. Aliás, as pessoas da Guiné-Bissau, pelo menos as de Bafatá, são mesmo muito acolhedoras. Os clínicos apoiaram imenso a nossa formação e chamavam-nos para participar em procedimentos como cirurgias, para as quais nos preparavam. Tentavam, sempre, explicar os contextos clínicos dos doentes e ajudar-nos a compreender o que se estava a passar, portanto, integraram-nos muito bem.
Mas voltando à questão da mulher. Achas que uma educação para a sexualidade poderia resolver muitos dos problemas existentes?
Sim, podia. Até porque quando uma mulher está grávida, na Guiné, ela não se dirige a um centro de saúde. Só em situações limite é que se dirigem. Não há aquele hábito de ir ao médico, seja por falta de recursos financeiros, seja por falta de acessos aos cuidados de saúde. Muitas vezes, as mulheres dirigem-se primeiro a feiticeiros da comunidade porque o acesso é mais fácil. A Guiné-Bissau precisa de estradas porque, sem estradas, as mulheres ou doentes não conseguem deslocar-se para os hospitais. Portanto, por muito que possamos pensar em políticas para empoderar as mulheres e melhorar a sua situação, há coisas básicas que têm de existir. Outro exemplo, que agora me recordo, é a falta de água canalizada. Nós em Bafatá tomávamos banhos de balde com água das chuvas que ficava conservada num depósito comunitário. Esta conservação de águas paradas em reservatórios muitas vezes sem tampa, perpetua a propagação do parasita da Malária e faz com que esta continue a ser uma das doenças mais prevalentes do país. Assim, por muito que existam organizações que vão a países como a Guiné-Bissau tratar da malária, enquanto não houver saneamento, enquanto não houver água canalizada, não se vai conseguir resolver a fundo a questão. Portanto, é importante que existam este tipo de programas? É! Mas é quase como uma corda que vamos puxando e, quando damos por ela, não tem fim.
Mas quem vai para voluntariado sente isso? Que acaba por ficar de mãos atadas por a situação ser mais complexa?
Sim, totalmente, até porque nós, agora, temos trabalhado no sentido de os preparar e de focar o projecto numa capacitação própria e não, propriamente, no “vamos mudar a realidade.” Se forem essas as nossas expectativas vão ser, completamente, defraudadas quando chegarmos lá. No meu caso, pessoalmente, tinha zero expectativas de mudar o contexto para onde ia, mas achei que conseguia fazer muito mais do que aquilo que fiz. Houve uma fase de luto, por assim dizer, das minhas expectativas pessoais, durante o projecto. E foi muito complicado vir-me embora porque pensei, “vou deixar estas pessoas que agora sinto que fazem parte de mim, aqui.”
Focaste, há pouco, as jornadas tendo como base os cuidados de saúde na comunidade LGBTQIA+. Interessa-vos descentralizar a vossa actuação e abordarem, também, os aspectos dos cuidados de saúde em Portugal?
Sim, nós vemo-nos, encaramo-nos como uma associação que promove uma prática da medicina humanitária. O nosso objectivo, essencialmente, é contribuir para a educação médica dos estudantes de medicina da universidade do Minho. Nesse sentido, os projectos internacionais são muito importantes e foram, vá, o nosso primeiro pontapé de baliza, mas cada vez mais o projecto vai crescendo e integrando outro tipo de atividades, como sejam o nosso congresso, PN talks. Este ano letivo, por exemplo, o congresso contou com a participação de 120 estudantes de medicina que tiveram a oportunidade de ouvir, em primeira mão, a história de um refugiado que fez a travessia desde o Congo até à Grécia e que viveu, durante dois anos, no campo de Moria. Ouviram, portanto, relatos da violência vivida no campo, das mortes, da doença, da fome, da pobreza e da falta de esperança. Por outro lado, tiveram também oportunidade de ouvir a experiência em primeira mão de refugiados que chegaram a Portugal e se depararam com um país que nem sempre esteve preparado para o acolhimento. Acredito que esta partilha durante o congresso mudou o mindset daqueles 120 estudantes e é na promoção destas conversas fora da caixa que continuamos a trabalhar durante ano, centrando-nos essencialmente, nestas questões do humanismo e tentando trazer informação sobre aquilo que é inerente ao homem.
No fundo, tentamos que todas as pessoas que passam pela Porta Nova ou que estejam numa ação promovida pela Porta Nova, sejam médicos mais humanos no futuro ou mais bem preparados para humanizar os cuidados em saúde.