Uma viagem aos Açores à boleia do Jardim Sagres Fest, em Ponta Delgada
Até há uns anos, os Açores encontravam-se num estado de modorra, como aliás o resto de Portugal, mergulhado na depressão da crise. Os ocasionais turistas vinham, sempre deliciados com o que encontravam ao chegar ao arquipélago, mas o fluxo turístico mantinha-se baixo. Agora, mesmo que não se possa dizer que a crise tenha sido ultrapassada, vê-se vontade na cara de quem ali vive, rodeado do mar que marca as fronteiras e une quem aqui vive em torno duma identidade formada numa terra que está perto de poder ser considerada como a junção ideal entre Homem e Natureza.
Com a abertura do espaço aéreo às companhias low-cost, os níveis de visitantes às ilhas dos Açores subiram em flecha, principalmente na ilha de São Miguel, o mais vulgar ponto de entrada no arquipélago. Diz quem lá vive que a subida foi tão abrupta que é bastante provável que o ponto de saturação chegue depressa. Já se vêem enormes conjuntos de pessoas, tráfego e dificuldades para estacionar em sítios onde antes reinava a paz, como nos miradouros para a Lagoa do Fogo e para a Lagoa das Sete Cidades, ambas ex libris da paisagem natural de São Miguel, esta última tendo como anexo uma obra do Homem deixada ao abandono, o Hotel Monte Palace, onde a única sobra da sua outrora glória de cinco estrelas é a vista magnífica dos antigos quartos. A natureza, mais uma vez, é o que fica, e a enchente de pessoas não faz nada para reduzir a inevitável calma que sentimos nos Açores.
Lagoa do Fogo
A verdade é que ultimamente os Açores parecem ter deixado definitivamente para trás esta ruína, tendo ganho uma nova vida, com uma diversidade imensa de eventos, festivais, museus, que vêm acrescentar à fenomenal componente natural da ilha, uma componente de obra humana. Empreendimentos como o Festival Tremor, que tem trazido música e outras artes a toda a ilha de São Miguel, ou o Festival Walk & Talk, que, entre outras coisas, espalha pela ilha criações artísticas pensadas para a paisagem onde se erguem, a novos museus como o Arquipélago – Centro das Artes Contemporâneas, na Ribeira Grande, trouxeram dinamismo e vida à arte que agora povoa a ilha. Concretamente na cidade de Ponta Delgada, vão cada vez mais aparecendo novos negócios e novos espaços. Desde a recuperação do mítico Louvre Michaelense, antiga chapelaria parisiense e agora mercearia/café, à única record store da ilha, a La Bamba, aos espaços de arte e artesanato que vão abrindo no auto-denominado ‘Quarteirão’ [das Artes], onde pessoas maioritariamente vindas de fora dos Açores se fixaram, dinamizando e cosmopolitizando a capital da Região Autónoma com galerias como a Miolo, ateliers de arquitectura e design, ou lojas-ateliers de moda e artesanato, como o Estúdio. Tudo isto ao lado do único restaurante vegetariano da cidade, o Rotas, onde enquanto ali estávamos tantos chegaram e bateram com a cabeça na porta, desiludidos por estar fechado.
O Jardim Sagres Fest parte também desta onda de recente dinamização, e chega de uma vontade de devolver à população o Jardim António Borges, em Ponta Delgada, depois de durante anos ter sido desestimado com a associação a um certo submundo de drogas. Sendo um jardim público à imagem dos jardins românticos do séc. XIX, é, obviamente, um jardim de uma beleza verdejante, mais não fosse por se encontrar nos Açores. Com o festival, já na sua terceira edição, o recinto enche-se de cores complementares. Focos de luz povoam o espaço, quer em árvores quer entre canas de bambu, o efeito especialmente relevante à noite, quando a ausência da luz solar faz destes coloridos focos praticamente a única iluminação do recinto.
Precisamente num recanto entre umas dessas canas de bambu iluminadas havia um barbeiro, disponível para cortar quem assim desejasse. Atrás desse barbeiro, durante o primeiro dia do festival, houve também uma experiência reminiscente do filme The Lobster, de Yorgos Lanthimos: um DJ Set (servido por Fabrizio Reinolds) transmitido via headphones. Uma sensação invulgar, essa do público estar unido por algo que é silencioso aos que estão de fora.
Rui Pregal da Cunha @Carlos Melo
A organização opta por tentar proporcionar a maior variedade de ofertas culturais, e por isso houve Triki & Franco Blues Band a proporcionar um concerto de blues por baixo da árvore monumental que, com as suas raízes soltas, marca sem dúvida o recinto do festival dentro do Jardim António Borges; a trupe circense Mr Milk fazia truques com fogo e malabarismos com lençóis pendurados de árvores, já para não falar dos palhaços que divertiam os mais novos logo ao início da tarde. Marta Ren & the Groovelvets marcaram o momento de maior enchente, com um concerto de Soul e, passe o pleonasmo, Groove, onde a entrega da cantora e da sua banda fez as delícias de quem ali assistia ao concerto que proporcionou o maior ajuntamento. Rui Pregal da Cunha veio depois passar músicas (onde obviamente figurou o catálogo dos míticos Heróis do Mar, do qual era o vocalista), com o foco a incidir principalmente em antigos êxitos, da lusofonia ao soul afro-americano. À uma da manhã já o recinto encerrava as suas actividades, porque é preciso espaço e tempo para usufruir do que resta na manhã seguinte: a ilha em todo o seu esplendor.
Termas da Ferraria
Se a ilha está rodeada do oceano azul, as cores de São Miguel são o verde – da natureza vibrante – e o preto – do basalto, que empresta forma a tanto do que aqui se encontra. Curioso pormenor o de a calçada portuguesa ser invertida aqui, sendo neste caso o fundo a ser preenchido de preto, e não os motivos, dada a abundância da rocha vulcânica. A integração destas duas componentes traça a identidade da ilha. Até mesmo cenários lunares ou marcianos, como o das Termas da Ferraria, com a sua austeridade de rocha vulcânica, se vêm povoados do verde do qual parece ser impossível fugir nesta ilha. Tufos brotam aqui e ali, mesmo à volta destas águas termais naturais onde nascentes de água quente brotam em contacto com a água salgada que provém, em ondas ocasionalmente violentas, do oceano, permitindo aos banhistas deleitar-se com a temperatura quente e variável consoante a maré, nesta paisagem desoladoramente bela.
A paisagem de São Miguel também se faz do inesperado. Em Capelas, o senhor Manuel era professor, mas é agora conhecido pelo que tem dentro da garagem. Toca-se à campainha da mesma, com umas letras a assinalarem a existência de um museu, e o sr. Manuel abre-nos a porta do mundo que encerra ali dentro, onde trouxe a si a responsabilidade de imutar as tradições e as origens da ilha, num complexo a que dá o nome de Museu-Oficina das Capelas. Aqui dentro encerram-se exemplares de diversos tipos de colecções, desde os isqueiros às caricas, mas, acima de tudo, muitos e diferentes tipos de lojas antigas, já extintas e preservadas exactamente como eram. Temos por isso desde a tipografia, aos correios, ao ferreiro, à loja fotográfica, à taberna, ao alfaiate. Tudo isto dentro de uma garagem que se desenrola afinal numa rua, e numa praça, com as fachadas dos edifícios construídas pelo próprio sr. Manuel, que diz ainda ter mais vinte lojas para montar, num incrível local conduzido pela obsessão de tudo preservar, de não deixar que nada caia no esquecimento ao ponto de inventariar tudo o que tem. Por apenas 2€ de entrada, é de ajudar o sr. Manuel a colecionar as suas coleções.
Lagoa das Sete Cidades
No segundo dia de Jardim Sagres Fest, as coisas começavam cedo, com uma enchente de crianças para ver o grupo de animação infantil Du-Dé-Du. Era vê-las aos magotes a chegar acompanhadas dos pais. A componente musical, que chegou mais tarde, era novamente da responsabilidade de Fabrizio Reinolds, que neste dia teve já a liberdade de animar o recinto a partir das colunas, não recorrendo aos headphones como no dia anterior. A micaelense Sara Cruz trouxe depois as suas canções originais com toques Blues, enquanto a bruma descia ao recinto. Para animar a malta, chegaram os Blue n’Grass que, no seu estilo Mumford & Sons, debitaram em cover um catálogo de êxitos passados que mostraram nem conhecer assim tão bem, já que quando tocaram Billie Jean, de Michael Jackson, apresentaram a música como pertencendo ao catálogo de Prince.
Felizmente houve tempo para recuperar deste percalço de concerto com o Jazzanova DJ Set, por Alex Barck, o músico alemão que tantas vezes passa música nas mais míticas discotecas berlinenses. Frente a um público não habituado ao tipo de música electrónica que apresentou (ainda que passando remisturas de temas bem conhecidos como This Charming Man, dos The Smiths), confirmou o estatuto deste festival como evento pluricultural, para todas as idades e diferentes públicos, uma integração no mesmo espaço de diferentes géneros musicais que, agradando mais a uns que outros, acabam a agradar a todos. Urge agora regressar aos Açores, e oportunidades parecem não faltar.
Alex Barck @Carlos Brum Melo
Foto de destaque por Carlos Brum Melo, durante o concerto de Sara Cruz