NOS Primavera Sound (dia 1): falta coração aos Tame Impala, mas Nick Cave tem-no de sobra
Artigo escrito em colaboração com Davide Pinheiro.
Bom filho a casa torna. Foi assim que nos sentimos ao regressar ao Parque da Cidade para a 9.ª edição do NOS Primavera Sound, após dois anos de hiato forçado. Na verdade, a sensação foi a de que pestanejámos e os últimos dois anos nem sequer aconteceram. Não foram muitas as mudanças no recinto, parece estar mais espaçoso e bem distribuído, mas continua a ser familiar. Como presente para os melómanos que voltaram, o temperamental Porto brindou-nos com um maravilhoso dia de sol, que pelos vistos se manterá ao longo de todo o fim-de-semana.
Chegamos ao recinto ao som de “Borboletas da Noite”, a mais recente canção de Pedro Mafama a receber um videoclipe. O disco de estreia de um dos mais promissores artistas portugueses é rico em batidas fortes que nos impelem a dançar, mas também rico em autotune, que por vezes desvirtua as canções. Mantemos a opinião de que acaba por parecer mais uma muleta do que um statement artístico. Apesar disso, a postura carismática de Pedro, a sua forma de se apresentar em palco — com um fato cor-de-rosa à toureiro — e o fantástico ritmo de “Contra a Maré” deixam-nos mais que convencidos do potencial de uma carreira que apenas está a começar. Já precisávamos de alguém que fizesse colidir tradição e modernidade desta forma.
Logo no palco ao lado, houve uma substituição de última hora, devido à impossibilidade de Georgia comparecer no Porto para partilhar connosco a sua marca de synth-pop açucarada e direccionada às pistas de dança. Em vez disso, tivemos algo que se adequou muito mais ao final de tarde soalheiro que iluminava o Parque da Cidade: a estreia de Spellling em Portugal. As canções pastorais de Chrystia Cabral, a mentora do projecto, ora lembravam os anos 60, ora algo mais perto dos anos 90, com uma leve sensibilidade R&B ajudada pelas teclas lounge pop. Aliás, a voz de Chrystia assentaria bem numa qualquer girl band R&B do virar do milénio, pelo seu timbre aveludado e clareza de tom. No entanto, ela usa-la mais para apetrechos de uma pop mística e progressiva, reminescente de Kate Bush.
Como tal, as suas canções evocam um ambiente de conto de fadas, vagamente medieval — algo ajudado pela vestimenta da artista, directamente saída de uma feira renascentista (e em claro contraste com a banda de suporte, quase inteiramente vestida de negro). Nas pontes instrumentais, Chrystia aproveitava para rodar a sua saia e dançar como uma ninfa deslocada da floresta, conferindo um ambiente descontraído e bucólico, por oposição às suas letras com forte carga política e questões filosóficas. Foi um belíssimo concerto e uma boa aposta da organização quando confrontada com uma mudança de última hora.
À hora de jantar, apenas Stella Donnelly tocava no recinto, dando tempo para respirar antes da comoção dos concertos que se seguiriam. Outra substituição recente, ocupando a vaga deixada por Japanese Breakfast, a australiana tomou o palco principal com as suas canções honestas e ocasionalmente divertidas. É preciso ter coragem para encher o palco maior do NOS Primavera Sound a solo, como o fez quando atacou a acutilante “Boys Will Be Boys”, canção lançada em 2017, no advento do movimento #MeToo, sobre violação e o chamado victim blaming. Como diz Stella, não é propriamente uma canção de festa, mas algo que sente que ainda tem de cantar. Infelizmente, é verdade.
Quando a sua banda volta a subir ao palco, o seu rock é mais saltitante e ocasionalmente similar ao da sua conterrânea Courtney Barnett, particularmente em “How Was Your Day?”, canção do seu segundo disco, Flood, a sair ainda este ano. O que a diferencia é uma voz imaculada, empática e sincera, que felizmente não é levada demasiado a sério pela artista, por um certo humor mordaz que caracteriza as suas interacções com o público e até as suas escolhas de alinhamento. Digo isto porque nos despedimos do seu set ao som de uma espirituosa cover de “Love Is in the Air”. “Alguém gosta desta canção?” Na voz de Stella Donnelly, diria que a maioria das pessoas sim.
Entretanto chegou a hora de explorar No Home Record, disco de estreia a solo da ex-Sonic Youth Kim Gordon. Vestida como uma rapariga colegial e acompanhada de uma banda que não poderia ter aspecto mais de Los Angeles mesmo que tentasse, Kim seguiu o alinhamento como está no disco. Foi um concerto altamente industrial e desconcertante, com uma constante sensação de perigo exacerbada pelo facto de Kim parecer estar bastante alterada. As suas letras, não tanto cantadas mas sim grunhidas, soavam como devaneios ébrios pouco perceptíveis.
Por outro lado, a música teve toda a intensidade esperada. Oscilando o trap ominoso de “Paprika Pony” e a violência ruidosa de “Sketch Artist” com os momentos mais abertamente rock de “Air BnB” e “Murdered Out”, o que reinou foi o noise, a distorção e a atonalidade. No caótico outro de “Cookie Butter”, Kim finalmente pega na guitarra e usa-a para gerar o maior feedback possível. É caso para dizer, a gente sai do no wave, mas o no wave não sai da gente. Quando começa “Earthquake”, a faixa mais ambiente de No Home Record, achamos que já estamos atrasados para o seguinte concerto e descemos o morro até ao palco Super Bock.
Mas afinal era Sky Ferreira que estava atrasada. Foi o único caso assim a que assistimos neste festival geralmente bem organizado. 20 minutos depois lá apareceu a eterna promessa da nova pop, para apresentar exactamente o mesmo álbum que apresentou há 8 anos no mesmo palco — Night Time, My Time, lançado em 2013, é um triunfo pop ao qual ainda regressamos todos estes anos depois. Continua a soar bem ao vivo, distorcido e pastilha elástica na medida certa — veja-se o duo “Boys” e “24 Hours”.
O segundo álbum continua por lançar, mas pelo menos já temos um single novo, “Don’t Forget”. Apesar de a versão em estúdio ser meio desapontante, ao vivo soou muito mais musculada. E, aparentemente, o público do Porto foi o primeiro a poder ouvi-la desta forma. O nervosismo sentido ao longo da performance, provavelmente por ser o regresso aos palcos ao fim de tanto tempo, teve o seu culminar no final abrupto do concerto ao fim de apenas 25 minutos, já que Nick Cave começaria a tocar no palco ao lado em breve. De repente, uma sensação de déjà vu apodera-se de nós. Já antes tínhamos sentido este desconforto por ver uma artista cheia de potencial a aparentemente autosabotar-se. Ainda assim, mantemos a esperança de que a vejamos ter o sucesso que a sua música pede. Até lá, há muitos outros artistas para ver e ouvir, como um dos cabeças-de-cartaz do dia: Nick Cave.
“Just breathe, just breathe, just breathe, just breathe, just breathe, just breathe, just breathe, just breathe”. A súplica é repetida ad eternum. Começa por ser o último aceno da comovente “I Need You”, escrita sobre as cinzas do filho Arthur, mas rapidamente os versos de desespero são canalizados para uma força interior que, comungada com milhares de convertidos, se transforma num acto colectivo de fé. As mortes dos filhos Arthur, em 2016, e de Jethro, há um mês, são a tempestade perfeita para um ciclo na carreira de Nick Cave em que o profano se senta à mesa com o sagrado e a catarse é obtida através de energias que não apenas a eléctrica.
É esse o ciclo, iniciado em 2013 com Push The Sky Away, que tem vindo a apresentar no Primavera Sound. A terceira passagem pelo Porto em nove anos já é uma história dentro da história nortenha do festival. Há uma narrativa entre 2013, 2018 e 2022, sem que nenhum dos concertos tenha sido uma réplica do anterior. Este já não é o Nick Cave diabólico do Coliseu do Porto em 1988 mas é o mesmo Nick Cave catártico de sempre. E consciente de que, perante a perda de algumas das figuras da cultura rock do século XX, como David Bowie, Lou Reed e Leonard Cohen, restam poucos. Ele é um dos últimos e, talvez por isso, a berma da morte e a proximidade do fim justifiquem uma fúria incontrolável de viver, celebrar e partilhar. Porque, não tenhamos dúvidas, essa força transcendente vem do palco mas só é possível quando a devoção é dividida e recebida.
Só assim canções no fio da navalha, com as mãos manchadas de sangue, asfixiadas e dilaceradas se convertem num acto colectivo de esperança. Foi essa crença não necessariamente religiosa que moveu o vale do Parque da Cidade. Nick Cave tem lidado regularmente com a morte. Não só a de dois filhos, mas também de Anita, a quem chamou “a musa de todos”, e também de Conway Savage, substituído por uma exuberante teclista. As canções são desde sempre prescientes dessa dependência entre vida e morte. No clássico “The Mercy Seat”, puxa da espada e desafia os limites: “I’m not afraid to die”. É o momento retropolitano do concerto. Estão lá “Tupelo”, a draculiana “Red Right Hand” e a redentora “The Ship Song”, como podiam estar várias outras. Mas há uma balada que não podia faltar: “Into My Arms”, do sublime Boatman’s Call (1997), já no encore, a mãe da etapa telúrica percorrida na última década.
O poder de síntese é necessário. O concerto é dividido não apenas por excertos temporais, mas sobretudo emocionais. Há lugar para a nostalgia, como há para o excelente Carnage, de 2021. Há espaço para clássicos modernos como “Jubilee Street” (“look at me now”, é um grito quase orgásmico) e para a evocativa “Higgs Boson Blues” (em que fala sem assombro de Hannah Montana e Miley Cyrus). E há “I Need You” e “Waiting For You” em tom de oração. Nick Cave diz não acreditar num Deus intervencionista. Muita gente saiu a duvidar depois da noite de ontem. Foi um concerto, foi uma missa, foi uma operação de salvamento.
Agora, para falar sobre o seguinte concerto, há que mudar de tom narrativo. Ainda me doem as pernas enquanto escrevo este texto. Para além do efeito cumulativo das horas em pé e sprints entre palcos, tenho de culpar o concerto dos Black Midi por esta sensação. Uma das bandas-sensação do movimento post-punk britânico, os Black Midi pegaram fogo ao público e contentaram-se em vê-lo arder ao longo do set intenso e anguloso que lhe ofereceram. Viu-se logo no início, em que o jovem senhor Geordie Greep admirava o caos instigado pela sua guitarra quase metaleira com um sorriso quase malicioso. O público respondia com moches e uma efusão claramente acumulada ao longo de dois anos sem situações sociais do género.
A música dos Black Midi é feita de cantos e viragens abruptas, uma espécie de post-punk para a geração dos distúrbios de atenção. Tão depressa podem estar a tocar uma música do rancho, como de repente entram num túnel supersónico de rock matemático comandado pelo fabuloso baterista Morgan Simpson. Só é possível fazer-se isso quando uma banda está realmente em sintonia. Não deixem a juventude da banda enganar-vos, pois a técnica e simbiose estão todas lá, potenciadas por uma energia imberbe que os impede de ter medo de experimentar tudo o que possam, sejam técnicas vocais de ópera, jazz ou uma cover de Taylor Swift. Ah, e já mencionei que entraram em palco a dançar ao som de “Saoko”, da Rosalía?
Numa representação perfeita da versatilidade sonora do festival, o seguinte concerto que vimos representa o extremo oposto de Black Midi. Mura Masa finalmente marcou presença no Parque da Cidade, depois das tentativas goradas de 2019 (em que cancelou), 2020 e 2021 (por motivos óbvios). Trouxe a sua electrónica pop com laivos de jungle e 2-step, aqueles géneros tão característicos da música de dança de Inglaterra. As suas canções são inegavelmente dançáveis e animadas, como provam “Nuggets” ou “Deal Wiv It”, o fabuloso update de “Parklife”, dos Blur, que conta com a estrela slowthai. Ainda assim, o público não parece estar super efusivo ou celebratório. Sente-se que o torque que Mura Masa levava na altura do lançamento do seu disco de estreia homónimo se perdeu até 2022, particularmente depois de R.Y.C. ter trocado o hiperactivo electropop que o caracterizava por canções bedroom pop de angústia adolescente. Ainda assim, foi um concerto competente.
Mas no que toca a competência, é difícil ultrapassar a máquina bem oleada de Caroline Polachek e dos colossos Tame Impala, que, numa inenarrável decisão da organização, tocaram ao mesmo tempo. À frente de um adorável cenário de peça de teatro da escola secundária que emulava montanhas, Caroline Polachek apresentou no palco Binance a sua pop de laivos hyper. As primeiras três canções, que seguiram o alinhamento do seu álbum de estreia a solo, Pang, soam algo desapontantes. A voz de Caroline parecia estar abafada debaixo de uma mistura de som que destaca mais o baixo do que a voz treinada e airosa que é realmente a marca definitiva da sua música. Para além disso, a cantora continha-se nos agudos que tão perfeitamente alcança em disco, deixando-nos preocupados com o rumo do concerto.
No entanto, a partir de “I Give Up”, como se fosse uma flor, a sua voz desabrocha. Essa voz que exterioriza os imensos sentimentos de Caroline, uma pessoa que vive tudo com a intensidade e euforia de uma paixão sem amarras. Isso nota-se na bonita mas desajeitada história que precede “Parachute”, canção que escreveu sobre um estranho sonho que começou como um pesadelo e que a fez sentir grata por estar viva. Ouvimos a incrível cover de “Breathless”, dos The Corrs, e ainda canções novas, como a promissora “Sunset”, que incorpora flamenco e uma calorosa guitarra espanhola na paleta pop que a caracteriza. Mas, claro, mais celebradas são canções como “Door”, “Bunny Is a Rider” ou o hino excitado “So Hot You’re Hurting My Feelings”, que fecha o concerto com o seu delicioso ambiente directamente importado dos anos 80. Tão depressa como apareceu no meio do fumo, desaparece. E assim se acaba um concerto pop.
A concluir o alinhamento australiano do palco principal, tivemos os Tame Impala. Devido à sobreposição de horários com Caroline Polachek, chegamos a meio do wormhole que é o solo de “Let It Happen”, canção fabulosa que nos relembra do quão bom é Currents, álbum lançado pela banda em 2015 e que continua a soar fresco que nem uma alface. Ao vivo, a música não se desvia do que a banda faz em estúdio, sendo que Kevin Parker é firme na sua forma de compor, produzir e até tocar ao vivo. Tudo deve seguir o seu molde técnico que, convenhamos, é verdadeiramente competente e bom. Canções como “Feels Like We Only Go Backwards” ou “The Less I Know the Better” são triunfos de composição sem momentos mortos ou detalhes supérfluos, comprimidos pop rock que fazem o seu trabalho na perfeição.
Ainda assim, apesar de a sua música encher o espaço e ser tecnicamente imaculada, falta-lhe alma, algo que a faça transcender o palco. Talvez isso se deva à postura pouco carismática de Kevin, que provavelmente se contentaria com produzir discos sem ter de os apresentar ao vivo. O espectáculo visual acaba por compensar essa lacuna, com um investimento no psicadelismo que caracteriza a sua sonoridade, particularmente quando falamos do primeiro álbum, Innerspeaker, ao qual a banda resgata “Runway Houses City Clouds”, canção que nos lembrou de uns Flaming Lips circa 2010 com menos artifícios. O final faz-se com “New Person, Same Old Mistakes”, o hit que até já tem uma versão de Rihanna. Nesse final encontramos, sim, artifícios à Flaming Lips, com uma chuva de confetti adequada à efusão do público por uma das bandas alternativas mais celebradas da actualidade.
Infelizmente, começamos a pensar na poluição que os confetti deixarão no Parque da Cidade e isso quebra-nos o feitiço de festival. Depois começamos a pensar numa sandes da Casa Guedes e apercebemo-nos da fome e cansaço que nos assolam. Deixamos o concerto de Black Coffee e a electrónica do Palco Bits para outra ocasião. Hoje há mais festival, com nomes como Beck, Pavement, King Krule, Rina Sawayama, Chico da Tina ou María José Llergo.