“Ants From Up There”: o belo testamento dos Black Country, New Road tal como os conhecemos

por Tiago Mendes,    10 Fevereiro, 2022
“Ants From Up There”: o belo testamento dos Black Country, New Road tal como os conhecemos
Capa de Ants From Up There
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O novo álbum dos Black Country, New Road chega como um cometa que brilha no céu antes de se desintegrar para sempre, permanecendo na memória de quem tiver a sorte de o testemunhar. Ants From Up There é uma obra emocional de peso, um mito súbito, álbum de culto imediato de uma banda que ainda agora começou e é já obrigada a encerrar um capítulo. Na beleza e no impressivo cuidado com que foi construído sente-se a ambição artística que foi capaz de gravar num álbum o potencial criativo deste talentoso grupo de sete músicos.

É impossível ouvirmos ou falarmos do novo álbum do colectivo britânico sem endereçarmos desde já a informação incontornável que pautou este lançamento: Isaac Wood, vocalista principal, guitarrista e letrista da banda anunciou publicamente, dias antes da edição de Ants From Up There que deixaria de fazer parte da banda, por motivos de saúde mental. A saída de cena de uma das peças-chave dos BC,NR constitui um dado à luz do qual lemos este seu último trabalho: por um lado, um atestado da emocionalidade visceral da interpretação vocal de Isaac; por outro, o reconhecimento de que estamos diante do testamento de uma banda que terá forçosamente de se reinventar e explorar novas estradas. Ants From Up There, tem, portanto, um certo sabor a fim.

Mas comecemos pelo princípio. Quem são os BC,NR? Nascidos em 2018 na cena urderground londrina, e na sequência da desintegração de um anterior projecto (Nervous Conditions), foram abrindo caminho ao longo dos meses seguintes, tendo o lançamento dos primeiros singles (“Athens, France” e “Sunglasses”) chamado a atenção da crítica musical e de franjas crescentes de público. Não só em Londres, naturalmente. O rastilho estava aceso. O rock experimental, nascido de um berço geográfica e sonicamente próximo do dos Black Midi, manifesta desde o começo um pulsar criativo que convoca a atenção e alimenta (justamente) uma expectativa por parte do público.

For the First Time, o álbum inaugural dos BC,NR editado o ano passado, chegou como um cartão de apresentação impactante. Constituído por apenas seis temas, tendencialmente abstractos na sua estrutura, o álbum era já dotado de modulações dinâmicas ao nível do volume e da intensidade, um instinto progressivo presente no ADN da sua criatividade. A produção de qualidade, os sons límpidos e a atenção ao detalhe faziam jus à formação da banda: sete músicos – entre guitarras, baixo, bateria, teclas, violino e saxofone. Lista vasta e entusiasmante de ingredientes, cuja performance não fica aquém da promessa.

À semelhança do álbum de estreia, os caminhos do trabalho agora lançado não são os mais óbvios, numa estranha mistura entre sonoridade art rock e uma abordagem mais pop (segundo a banda). Mas Ants from Up There apresenta uma estrutura mais lógica e estruturada do que o anterior. Cada composição parece construir-se em torno de um eixo concreto e corpóreo – mesmo a última faixa, “Basketball Shoes”, medley vasto e intrincado, consegue unir as pontas e os riffs ao longo dos seus doze minutos de duração, culminando nos versos mais catárticos do disco.

Não são raros os momentos em que pensamos estar a ouvir os Arcade Fire, na era do Neon Bible ou do Funeral, com o violino a convocar a chamber pop à equação. Mas a vertigem de géneros musicais abordados pelos BC,NR constitui uma discussão em aberto. Se no último álbum o bouquet incluía, para além do post rock, aproximações subtis ao jazz, e bem menos subtis à música klezmer (tradicional judaica), neste também há espaço para uma igualmente vasta amplitude de referências. Destaco as linhas instrumentais repetidas e entrecruzadas de “Intro” e de “Haldern”, reminiscentes do minimalismo de Steve Reich ou de Philip Glass. A expressão aconchegante e melancólica do jazz em “Mark’s Theme”. E a sequência crescente e progressiva de “Snow Globes” pisca o olho a um certo mood cultivado pelos Godspeed You, Black Emperor.

O novo álbum mostra ainda uma faceta mais viva da banda. Parece intuir-se, nos arranjos luminosos, uma maior intimidade entre os membros, na vibração enérgica dos arranjos instrumentais, ora pungentes, revoltados, desanimados ou eufóricos. “Concorde”, talvez o mais bonito tema do disco, consegue angariar esta diversidade de abordagens e dinâmicas, seguindo um arranjo detalhado e com atenção às minudências – após o segundo refrão, é deslumbrante a forma como o baixo contribui na construção da canção, e os apontamentos de bandolim a polvilham de brilho. Ao longo do álbum, os instrumentistas relacionam-se de mão dada, reagindo às frequentes alterações tonais ou rítmicas, conhecedores das rotas inesperadas que inventam. As modulações destes espaços sónicos (e extremamente visuais!) sugerem outras histórias, que as letras não explicitam.

Em Ants From Up There nota-se ainda um abraço descomprometido com a beleza; os BC,NR parecem ter perdido o medo de mergulhar em música melodicamente emocionante. As letras, apesar de permeadas pelos sentimentos difíceis que reflectem a saúde mental de Isaac Wood, surgem embrulhadas em acompanhamentos vibrantes e contagiantes, que, em certos momentos soam tão enérgicos e propulsivos que chegam a transmitir energia positiva. “Chaos Space Marine” e “Good Will Hunting” são expressão de passagens mais “pop” (com as devidas aspas), mais abertas.

Há, pois, vida e intenção nos temas de Ants From Up There. Este talvez seja um dos pontos em que os BC,NR se distinguem dos seus colegas e amigos Black Midi: a teatralidade dos BC,NR parece mais impregnada de emoção, mais honesta. Parte da responsabilidade cabe à performance de Wood, cuja entrega emocional, quase cuspida, é agora assumidamente melódica. A mudança na expressão vocal em relação ao primeiro disco (em dados pontos mais falado do que cantado) traduz-se numa expressão mais musical dos mesmos sentimentos de desadequação. As palavras são cantadas sem apuramento técnico nem preocupação ao nível da colocação, guiadas por uma total entrega ao espaço etéreo da canção; embutindo densidade, confusão e aflição na inspirada orquestração.

A aventura multidimensional de Ants From Up There constitui o statement de uma banda que já não é a que originalmente conhecemos. É uma obra-prima, na medida em que canaliza o talento de todos estes músicos num álbum coeso do princípio ao fim. Canções que não teremos o gosto de vir a ouvir ao vivo, mas que encontram nestas gravações um espaço de vibração capaz de contagiar o nosso dia. Que privilégio podermos ouvi-las e, visitando-as, partirmos para a vida com a mesma atitude vulnerável e descomprometida com que elas foram carinhosamente criadas.

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