NOS Primavera Sound (dia 3): final feliz com Gorillaz e Little Simz
Texto escrito em colaboração com Davide Pinheiro e Linda Formiga.
Chegados ao último dia de NOS Primavera Sound, o entusiasmo para ver o nome maior do dia, Gorillaz, sentia-se no público carregado de parafernália alusiva à banda e numa afluência absurda, quase impossível de conter na gigante encosta do Parque da Cidade. Mas houve muito mais para ver neste terceiro dia de festival, como odes ao reggaeton, ao hardcore e ao hip hop.
O Primavera Sound continua a manter a tendência de seguir as tendências mais relevantes do mundo da música. Este ano, como não poderia deixar de ser, dedicaram-se alguns dos espectáculos à onda pós-punk que tem dominado o rock britânico destes novos loucos anos 20. Como tal, seria irresponsável perder a estreia em Portugal dos Dry Cleaning, uma das bandas mais celebradas do movimento.
O centro da banda é Florence Shaw, vocalista que popula as canções com rascunhos de spoken word, retalhos abstractos que funcionam como janelas para a sua forma de ver o mundo. Em palco, impassível e estática, olha à volta com um olhar de desconfiança, ocasionalmente rindo-se de algo, parecendo sempre procurar algo para narrar nas suas letras. Apenas a reacção altamente entusiasta do público parecia quebrar o seu feitiço, deixando-a talvez surpreendida. Ainda assim, ao vivo, a sua presença não se fez sentir tanto como em estúdio. A mistura de som deu mais destaque a uma guitarra distorcida, intensa e por vezes exagerada, mais próxima dos EPs iniciais da banda do que do som de New Long Leg, o fabuloso disco de estreia lançado no ano passado.
Tom Dowse, o guitarrista, parecia saído de um festival de metal, envergando uma camisola de Neurosis e celebrando cada canção com um punho cerrado e um “yeah!” engolido pelos aplausos e uivos do público. Para a paleta dos Dry Cleaning, importa ainda mencionar o baixo musculoso que define todas as suas canções. Sente-se particularmente em “Leafy”, canção que abre o concerto com uma tranquilidade incomum, apenas repetida em “More Big Birds”, canção dedicada a Paula Rego. Fora esses momentos, o concerto foi surpreendentemente vigoroso, com uma garra citadina que parecia ampliar o calor emanado pelo betão do palco Cupra — o mais catalão do Primavera Sound Porto. Quiçá um ambiente mais intimista favoreça mais um futuro concerto dos Dry Cleaning, mas para já foi um aliciante cartão-de-visita para uma banda que merece ser recordada.
Outro concerto que pareceu sofrer por falta de intimidade foi o de Helado Negro. A sua música de contornos suaves e melodias pachorrentas não conseguiu encher o maior palco do festival. Não foi pela falta de boas intenções de Roberto Carlos Lange, o bonacheirão cabecilha do projecto que afirmou adorar tocar em Portugal. Não nos admira, até porque a sua música parece adequar-se perfeitamente ao ritmo do nosso país. Mas a verdade é que, sentados na encosta à torreira do sol, só conseguíamos pensar que preferíamos estar a ouvir os doces tons de “There Must Be a Song Like You” ou “Running” num ambiente doméstico, com uns bons headphones ou colunas. Ouvir “Pais Nublado” neste ambiente pareceu quase irónico, tendo em conta o céu incaracteristicamente limpo do Porto.
Mais para o final, canções mais dançáveis, como a borbulhante “Outside the Outside”, inspiraram um pouco mais de vida no concerto, mas a sensação do concerto nunca se elevou para lá de um quentinho disfarçado pelo calor do dia.
No mesmo estilo de playlist chill do Spotify, acabaram por se destacar mais os texanos Khruangbin, que certamente teriam sido mais bem-sucedidos no grande palco onde havíamos acabado de ver Helado Negro. Num estilo de sessão de improviso, quase como se fosse um DJ set tocado ao vivo por uma banda, o concerto foi praticamente ininterrupto, expondo a sua mistura de dub, funk e psicadelismo. A música dos Khruangbin evoca a imagem de um funk deixado ao sol do deserto, com uma leve insolação que distorce o sentido de tempo e amaciado por um baixo envolvente.
Passa-se pelas alegres “Lady and Man” e “Maria También”, do perenemente caloroso Con Todo el Mundo, e pelas inclinações pop do mais recente Mordechai, representadas por “Pelota” e pela doce “So We Won’t Forget”. Pelo meio, a banda interpola melodias e ritmos de clássicos incontornáveis sem pestanejar. Reconhecemos “Wicked Game”, a açucarada “True”, dos Spandau Ballet, e até “Pump Up the Jam” e “Rhythm is a Dancer”, entre outras. Acima de tudo, este concerto dos Khruangbin apostou em elevar os espíritos do público de uma forma relaxante.
Ao efeito cumulativo de Helado Negro, Khruangbin e do calor, somou-se o R&B interventivo mas tranquilizante de Jamila Woods, injustamente escondida no palco Binance. Depois de dois álbuns fabulosos (HEAVN e LEGACY! LEGACY!), esperávamos um pouco mais de reconhecimento da artista de Chicago, mas quiçá se tenha perdido um pouco o seu momento desde 2019. Algumas das suas canções novas não descortinam uma direcção diferente daquela que a cantora, compositora e poeta tomou até agora, mas são sinal de que teremos uma nova oportunidade de nos conectarmos com Jamila.
Até lá, pelo menos criou-se uma boa simbiose entre o público do Primavera Sound e a artista, que elogiou a nossa atenção e respeito. Aliás, ela foi além na sua percepção, dizendo que ouvimos “com o corpo todo”. É um tão belo elogio que só pode ser genuíno. Mas a verdade é que apenas é possível fazer-se isso quando a música se permite a ser escutada, quando nos convida a entrar, como é o caso da de Jamila Woods. Fora uma versão meio perdida de “Smells Like Teen Spirit”, todo o concerto foi uma belíssima sessão de conexão com os nossos corpos e com a história negra da humanidade.
Conhecem a sensação de chegar a outro país e não ter bagagem? Foi o que sucedeu aos Dinosaur Jr. — vencedores do prémio azar 2022. Depois de J Mascis gastar os primeiros minutos a afinar a guitarra, Lou Barlow sente-se forçado a alertar: “Ficámos sem material. O nosso material está no aeroporto. Tivemos de pedir emprestado!”. Para uma muralha sónica tão particular, perder a sua estrutura poderia ser fatal. O início do concerto é condicionado pela necessidade de “treinar em jogo”. O desconforto é latente na expressão facial de J Mascis, mas o espectáculo tem de continuar. E à medida que o virtuoso vai conhecendo as suas novas amigas guitarras, os Dinosaur Jr. rejuvenescem. Ouvem-se “Out There” e “Start Choppin”, antes de o clássico “Feel The Pain” acordar o vale do Parque da Cidade. Banda mais ruidosa não há. J Mascis e Kevin Shields entram num bar e ninguém mais se ouve.
Ainda há tempo para “Mountain Man, o regresso a “Freak Scene” (“nós somos dos anos 80!”, exclama Lou Barlow) e a versão sónica de “Just Like Heaven”, dos The Cure, que muito boa gente provavelmente nem reconheceria. Tinha tudo para resultar numa extinção, mas estes Dinosaur ainda sobrevivem, mesmo sob ameaça.
A certa altura do concerto, Little Simz conta-nos como foi o seu dia. Portanto, a artista chegou ao Porto, fez o seu soundcheck, comeu uma lasanha de vegetais com batatas fritas (eu sei, também não entendemos), passeou um pouco pela cidade, fez uma massagem e veio então apresentar-se pela primeira vez em Portugal, em plenitude de corpo e espírito, como era o seu desejo. Não sabemos que raio de massagem Simbiatu “Simbi” Ajikawo fez, mas funcionou na perfeição, pois o seu concerto foi um dos melhores momentos do festival, no topo dos tops de muitos festivaleiros, certamente.
Foi daqueles casos em que tudo se alinhou. A energia de Simbi e do seu público, a dedicada e aprumada banda, o espectáculo de luzes… até as imagens que passavam nos ecrãs gigantes foram perfeitamente captadas. Little Simz é das rappers mais interessantes dos últimos tempos, muito para lá de barreiras geográficas, culturais ou até de género. O seu flow é fogoso, as suas barras interventivas e filosóficas na medida certa e a música ocasionalmente épica, ocasionalmente reconfortante. Muito ligada às suas origens, a artista homenageia o Norte de Londres com “101 FM”, canção na qual recorda a sua infância na mega-metrópole, altura na qual já fazia música. Mas vai além do sítio onde cresceu, para honrar a sua herança negra com canções que pedem emprestados elementos de cânticos africanos, como é o caso da “espanta-espíritos” “Fear No Man”.
Há espaço para canções feministas, como “Woman” (“Woman to woman / I just want to see you glow”) e, noutra perspectiva, “Offence” e “Boss”, em que o braggadocio usualmente patriarcal é aqui usado para subverter as expectativas do hip hop, destacando o orgulho feminino. É que Simbi só tem mesmo é que ter orgulho, pois não são todos os rappers que conseguem cuspir versos como os de “Venom”, canção de ataque que, apesar de ter uma energia bem mais acutilante que o catálogo mais recente de Little Simz, encaixa na perfeição no progresso do concerto. Palavras são insuficientes para explicar a sensação deixada por este concerto. Basta deixar o desejo de que se repita em breve.
A noite ia a meio quando os Interpol subiram ao palco principal. Há coisas que nunca mudam na banda outrora nova-iorquina: a cuidada indumentária, a dança frenética do guitarrista Daniel Kessler, a parca interacção com o público e a polarização acerca da actuação: ou se gosta ou não se gosta, não há meio termo. Neste concerto no NOS Primavera Sound, 3 anos depois da última vez em que os vimos neste mesmo festival, houve a agravante de mal se ouvir a voz de Paul Banks e de o público estar mais interessado em criticar o facto de o vocalista estar de óculos escuros do que em ouvir a música.
Fora os problemas de som e o alheamento do público, não foi um mau concerto. Os Interpol sempre foram músicos exímios e as jóias da coroa do espólio musical são intemporais, começando com “Untitled” — por coincidência a primeira faixa do incrível disco de estreia Turn On the Bright Lights —, passando por “Not Even Jail”, “The Heinrich Maneuver” ou a sempre emotiva “The New”. Mas, não obstante a qualidade do último disco Marauder, parece que os Interpol continuam desfalcados desde a saída do baixista Carlos D há mais de uma década. Os temas compostos depois da saída do baixista não têm a linha de baixo pujante que tanto marcou a sonoridade dos Interpol. Até a lírica parece estar a acusar a ausência, que não tem sido compensada pelo crescimento musical do baterista Sam Fogarino.
Pode ser que esta realidade mude com o lançamento do novo disco The Other Side of Make Believe, em Julho, que conta com a produção de Alan Moulder e Flood (dupla que trabalhou com PJ Harvey, Nick Cave ou Nine Inch Nails). Porém, os dois temas de avanço (“Fables” e “Toni”) parecem desprovidos de identidade e não funcionar bem ao vivo. Ou talvez seja só falta de estrada. Quem sabe se, num cenário com melhores condições de som e um pouco menos de ruído, os Interpol não nos levarão de volta aos tempos áureos de princípios do milénio.
Antes do grande evento da noite, o palco vizinho recebe o último concerto de um dia dedicado a sonoridades mais latinas e urbanas. Bad Gyal, uma das novas padroeiras espanholas do reggaeton apresentou a sua performance dinâmica, com várias mudanças de disposição de palco e coreografias impressionantes apoiadas por quatro dançarinos dedicadíssimos. As canções desviam-se pouco do padrão rítmico do reggaeton, com umas incursões pelo dancehall jamaicano, sempre em ritmo elevado e modo festa. Agora, se essa é uma festa em que se quer estar já depende da permeabilidade do interlocutor ao reggaeton.
É que não há muito para além disso. As letras fazem repetidas e vagas referências a “pussy”, “boom boom”, luxúria e ostentação, a voz altamente processada torna-se monótona, contribuindo para a sensação de que estamos a ouvir a mesma música repetidamente, e até o twerk que desafia as leis da física de Bad Gyal acaba por perder o efeito novidade a cada retorno. Agora, será que um concerto destes precisa de mais do que isso? Para um bom grupo de pessoas não, tendo em conta a efusão que se vivia nas filas da frente. Para o público em geral, digamos apenas que a encosta foi esvaziando na antecipação de Gorillaz.
Mas antes disso ainda houve tempo para espreitar os últimos representantes da vaga pós-punk britânica deste Primavera Sound. Estes Squid apresentam-se lado a lado, sem destaque de nenhum dos membros (excepto talvez o baterista que também é vocalista, colocado ao centro), têm ar de bons rapazes e uma postura mais séria que os seus pares. Já a sua música é feita de extremos: introduções ambiente que na maioria das vezes acabam por ser demasiado atonais para apontar em alguma direcção, prontamente desfeitas por um ritmo cavalgante e matemático mantido herculeamente por Ollie Judge.
Quando a banda entra nesses ritmos e se tranca num groove, a sua música é extremamente satisfatória, mecânica o suficiente para forçar o corpo a mexer-se, mas sem perder o sentido melódico. No entanto, quase metade dos 25 minutos que passamos a despedir-nos do palco Binance com os Squid são passados nos tais interlúdios ambiente. Parece-nos que não vale a pena abdicar de alguns minutos de Gorillaz para nos perdermos nesses segmentos inconsequentes. Até Ollie nos apoia nessa decisão, após agradecer ao público que os escolheu em vez dos Gorillaz, apenas para dizer de seguida “se quiserem ir, nós não nos importamos”. Assim foi.
A questão transita da segunda para a última noite. Depois da dúvida sobre o formato a apresentar por Beck, que esperar de um concerto dos Gorillaz? Há tantas hipóteses possíveis. Nunca a máxima “um só caminho” esteve tão desactualizada. Em palco, a parafernália é imensa. Há bateria, congas, guitarras, amplificadores, uma multitude de microfones e um estrado dourado. Espera-se muita gente e é muita gente que surge. Vestido de rosa, Damon Albarn centra atenções num papel radicalmente diferente do apresentado há alguns anos no extasiante regresso dos Blur.
No planeta dos Gorillaz, a fantasia já deu lugar ao real. Longe, muito longe, vão os tempos em que se resguardavam atrás da tela, deixando o protagonismo para as personagens ilustradas por Jamie Hewlett. Agora, é o oposto. A realidade domina a ficção. O início é estranho. “M1 A1”, do inesquecível álbum de estreia, ganha contornos de banda new wave. Serão os Gorillaz ou os Clash? As semelhanças são muitas. As guitarras são punk mas finas, a secção rítmica filha do dub. O rosto de Robert Smith espreita pelo ecrã em Strange Timez e a seguir Damon Albarn pergunta: “are we the last living souls?”. O concerto cresce. A saltitante “19-2000” e a melódica deliciosa de “Tomorrow Comes Today” recordam-nos que, em 2001, os Gorillaz matavam o século XX com o álbum mais importante desse ano. “The digital won’t let me go”, antevia Damon Albarn. Não podia ser mais presciente.
Sem precisar de introduções, Beck é o primeiro convidado na efusiva “The Valley of Pagans”. A vindoura “Cracker Island”, “O Green World”, “Pirate Jet” e a sublime “On Melancholy Hill” preenchem a quota de activismo ambiental. Não se trata de um protesto em lata. Em 2010, os Gorillaz nomeavam o álbum de Plastic Beach, observando o mais drástico de todos os problemas do planeta — um corpo sem saúde não sobrevive.
A montanha continua a subir. “Kids With Guns” faz ligação directa, “Stylo” leva-nos a um distante 2010 com Bootie Brown em palco e Bobby Womack em retro-vídeo, “Désolé” traz a maliana Fatoumata Diawara e “Garage Palace” é toda de Little Simz — que noite inesquecível para a pequena gigante do Norte de Londres. “Dirty Harry”, do inaugural Gorillaz, é o rastilho para Posdnuos, dos De La Soul, espalhar a “Feel Good Inc.” e pôr um festival à gargalhada. “Ha, ha, ha, ha, ha!”. Memorável. E depois de Slowthai enviar barras para a apunkalhada “Momentary Bliss” através de um ecrã, “Clint Eastwood” é o final feliz de um espectáculo que acaba de coração cheio. Quase vinte anos depois da estreia em Portugal num longínquo Isle of MTV, já podemos dizer que vimos os Gorillaz ao vivo e a cores.
Para terminar a noite, um pulo ao palco Bits leva-nos à estreia do projecto Sangre Nueva para um último boost de energia. Com uma impecável cenografia e jogo de luzes por trás, DJ Python, Florentino e Kelman Duran complementam-se na mesa de mistura, indo para lá do reggaeton profundo que caracteriza Goteo, o seu EP de estreia, e adicionando profundidade a clássicos do género. As canções transformam-se quando cruzadas com techno, breakbeat, funk, entre outros géneros, para um set em constante metamorfose.
A despedida faz-se abruptamente, numa tentativa de regressar a casa o mais depressa possível para recuperar da intensidade do festival. A noite esconde as cores já não tão verdejantes do recinto após três dias, permitindo-nos manter a memória visual do primeiro dia e a esperança de um regresso anunciado para 2023, sem mais pausas forçadas. Apesar de uma quantidade impressionante de gente, incomum para o NOS Primavera Sound, continua a ser um dos melhores refúgios para quem quer ouvir o melhor da música que se faz hoje em dia, sem etiquetas ou pretensões.