O espetáculo da arte musical de Jacob Collier no Porto (com e sem MARO)
O Hard Club encheu neste fim de tarde de um quente julho, no seu dia 28. Aos pés da Ribeira do Porto, o aconchego que o calor, por si só, já trazia foi consolidado pelo que se abateu logo pelas 20h (e uma hora depois). Com uma casa fechada bem repleta — lotação esgotada, embora fossem muito escassas as máscaras —, a tournée mundial do talentosíssimo Jacob Collier, cantor e multi-instrumentista inglês que vem deslumbrando o mundo de há uns anos para cá, por força das redes sociais e da Internet, chegou, pela primeira vez a Portugal, nomeadamente ao Porto. Foi a primeira vinda de Collier à Invicta, depois de ter previsto, por duas vezes, vir a Portugal (e a esta cidade), depois de confinamentos e demais adversidades. E que estreia!
No entanto, não se pode descurar o enormíssimo carinho que o pequeno concerto de abertura recebeu. Quem mais que MARO, ao lado do guitarrista Manuel Rocha, para acolher a estreia de Collier. MARO, que, com um prestígio completamente avolumado pelo Festival da Canção, havia conhecido e trabalhado com o inglês — para além de ter atuado com este em “Lua”, faixa do álbum “Djesse, Vol. 2”, seguiu com ele numa tournée anterior a esta, respeitante à do lançamento do primeiro volume de “Djesse”. Porém, MARO trouxe (e bem) o seu repertório, aproveitando para plantar nos baldios da zona ribeirinha algumas das faixas vindouras do seu novo disco, entre outras que se destacam da sua discografia (inclui o EP “like we’re wired” deste ano).
Depois de passar pelo Marés Vivas, em recinto aberto, a cantora sentiu-se deslumbrada e deixou o calão para Collier (será referido mais adiante) para elogiar a cidade, já que a sua mãe estava na audiência. Prometeu, no regresso a Portugal, vir morar para o Porto. Entre o português, o inglês e até o português do Brasil, não podia faltar a célebre “Saudade, Saudade”. Porém, todas as faixas encantaram um público que estava bem ciente da sua lindíssima voz, das fantásticas cordas e da simpatia da cantora, que interagiu amiúde com o público, puxando-o para cantar algumas das suas canções, até as que ainda estão por sair.
Das que já saíram, destaque para “we’ve been loving in silence”, parte do referido EP, uma balada deleitosa ao nível de som e de letra, cativante da cabeça aos pés mas fixando-se nos ouvidos e no coração. Daí o cântico “MARO, MARO” que ecoou no recinto do Hard Club. Em suma, um aquecimento perfeito para a alma e para o espírito, já que o corpo viria a aquecer (ainda mais) com a chegada esfuziante de Collier (que também faria questão de elogiar a cantora e a sua própria prestação nesta noite).
Foi pelas 21h que, depois de uma meia hora sagrada e enlevada de MARO, chegou, acompanhado por um grupo enorme de técnicos — a sua crew, que fez questão de enunciar um a um no final do concerto, sendo que todos mereceram uma salva de palmas — e por uma banda composta pelo baixista Robin Mullarkey, o baterista Christian Euman, a vocalista Alita Moses, a teclista Bryn Bliska, para além da cantora e compositora Emily Elbert com a guitarra e a voz. Por sua vez, Collier dominou guitarra, teclas, bateria, contrabaixo e os “habituais” e diversos tons e amplitudes de voz, desde o alto ao falsetto, do estreito ao extenso, em termos mundanos. Porém, engane-se quem pensa que foi, acima de tudo, um banho de música. Foi muito mais do que isso. Quem ouve os seus discos, entende que há uma espécie de corrente elétrica, que sintetiza os estímulos auditivos e dos demais sentidos à plenitude de camadas musicais que Collier consegue criar e colocar a dialogar. Foi, precisamente, esse veículo que estacionou e fez diversas manobras na escarpa da Ribeira, entrando “a matar” ao som de “With the Love in My Heart”, do recuado “Djesse Vol. 1”.
Jacob Collier, de igual modo, é muito mais que um músico. É um comunicador natural, dotado de um carisma ao alcance de tão poucos e com uma idade tão tenra, já que só completará 28 anos em agosto. Traz consigo, para além de um talento musical quase geracional e de uma cultura que denota afeições que vão de Alicia Keys (em tanto que a vocalista Alita Moses se parecia) até Billy Joel, Bill Withers ou Simon & Garfunkel, uma paixão tamanha pelo ser, fazer e partilhar música. Foi essa energia que se sentiu aquando das suas constantes interações com o público, em que só faltou um enredo coeso para que o concerto não se transformasse num autêntico musical.
Não obstante a sua setlist não ter mudado muito em relação a concertos anteriores desta tournée – “Time Alone With You”, “In Too Deep”, “Sleeping on My Dreams” (que até trouxe um enorme boneco insuflável já pelo fim do concerto) e “All I Need” foram as mais excêntricas que Collier trouxe do seu novo disco -, a energia que se sentiu foi, sem dúvida, de um calor humano tremendo. O mesmo se sentiu na interpretação das faixas de “In Your Room”, o seu primeiro disco, sendo essas músicas “Hideaway” e “Don’t You Know”. A estruturação do concerto foi a ideal, articulando entre momentos de grande euforia até períodos de contemplação e de ingestão musical e artística, alimentando a alma após o corpo se expandir até aos limites dos vizinhos do lado.
No que toca ao público, as gentes do Porto são distintas e o próprio Collier viria a reconhecer isso. Se simpatia, cortesia ou sinceridade, não se sabe, mas MARO ensinou o calão com o qual o artista, na cábula que tinha na mão esquerda, viria a caraterizar o público: “vocês são do caralho”. Talvez tenha sido um dos pontos menos conseguidos do concerto — a promessa implícita de uma interpretação conjunta de Collier e MARO, que poderia ser ficado guardada para o encore, mas não. Nem a bandeira portuguesa, nem o domínio do vocábulo “obrigado” deixaram essa sensação agridoce sanada.
Assim, a única faixa exclusiva que guardaria para o Porto seria uma cover entusiasmante da cantora Regina Spektor, de seu nome “Samson”. A aclamação feita a Collier e aos seus demais parceiros foi voraz, exprimindo a gigantesca admiração que o Porto e os seus tem por este e que se comprovou pelos louvores ao merchandising do inglês depois deste o ter mencionado e de referir que parte desses lucros revertiam para a organização de caridade a favor do meio ambiente criada por Brian Eno, a EarthPercent.
Todos, sem exceção, bradaram, contorceram-se e alinharam nos desafios vocais que o músico constantemente trazia à baila, obrigando a todos os presentes a saírem treinados em vários estilos e tonalidades de canto. Com escalas subjacentes, não foram aplicáveis aos momentos de espernear e de exultar a música pluridimensional do inglês, embora sempre com a capacidade de emudecer sempre que a necessidade assim o obrigasse, como nas faixas em que só se ouvia a voz e o piano.
Como tal, foi muito mais que um concerto, mas antes um momento de terapia, de dança, de uma verdadeira expressividade completa, entre folia e harmonia, que só a arte consegue criar e despertar. Em suma, um verdadeiro espetáculo, em tudo completo e rico. Pelo meio, uma captação dessas variações de tom e de timbre emitidas por parte do público, que Collier quis recolher para colocar no seu futuro “Djesse Vol. 4”.
Tamanha revelação acabou por puxar os espectadores, já depois do encore, que lá trouxe a bandeira portuguesa e uma cover de “Blackbird”, dos Beatles, a envolver-se numa dança coletiva coreografada ao som de “September”, dos Earth, Wind and Fire, posta a tocar pela produção do evento. Apesar da energia física e anímica que tinha sido arrancada pelas diversas mudanças do concerto, poucos foram os que resistiram a esse momento muito particular do evento, nem mesmo o redator deste artigo.
Também nisso se exibe e se comprova o magnetismo que Jacob Collier trouxe ao Porto e que, decerto, levará aos demais cantos do mundo pelos quais falta percorrer (e pelos quais passará de novo). Com muita música mas, fundamentalmente, com a arte que consegue unir, sem discriminar, olhando para todos como cada qual, com mais que os junte do que aquilo que os separa. Foi uma missão que deixou vincada por palavras, entre as suas interações com o público, mas muito mais entre as suas vibrações, entoações e pelas emoções que criou e fez criar.