“Mas Há Melhor Do Que Isto?”, de Kurt Vonnegut: discursos a finalistas e algumas palavras sobre a vida 
Perante um auditório de finalistas em Fredonia College, Nova Iorque, no dia 20 de maio de 1978, Kurt Vonnegut deixa alguns conselhos sábios à mais neófita plateia: que trabalhem arduamente, nunca metam nada no ouvido e não matem ninguém, «mesmo não havendo pena de morte no Estado de Nova Iorque.» Acaba por deixar também outro conselho, este opcional: «se alguma vez tiverem de fazer um discurso, comecem com uma piada, se souberem de alguma». Recurso, aliás, muito utilizado e teorizado por Cícero, há mais de dois mil anos.
Kurt Vonnegut (1922-2007) foi um escritor norte-americano, humanista (Livre-pensador), humorista, orador popular em cerimónias de formatura, herói da contracultura americana dos anos 60, conhecido pela obra-prima Slaughterhouse-Five, publicada em 1969, inspirada na experiência como prisioneiro de guerra e sobrevivente do bombardeamento de Dresden, na Alemanha, em 1945. À destruição da cidade conta que «o riso era uma das reações possíveis […] é a alma em busca de alívio.»
Vonnegut via no riso a possibilidade momentânea de salvação, mas também de integração. Sendo o mais novo da família, procurou desde cedo inserir-se no mundo adulto através de recursos humorísticos que, à época, usava por intuição. Na juventude, estudou o grande número de comediantes que ouvia na rádio, «pelo menos uma hora por noite», e tentava compreender a escrita de piadas e o funcionamento delas. Quando tinha oportunidade, não deixava de referir as suas mais diletas influências literárias: Mark Twain, Jonathan Swift e James Joyce. Mas também mencionava as dívidas culturais profundas com Laurel e Hardy, Buster Keaton, Jack Benny, Charles Chaplin, que, segundo Vonnegut, o salvaram durante a Grande Depressão e depressões menores posteriores.
Só aos 47 anos ficou famoso. Até lá, tentava sobreviver, filho que era da Crise de 1929. Quis ensinar no liceu mas não tinha um curso da faculdade; escreveu uma tese que foi rejeitada; tentou escrever outra, rejeitada outra vez; rejeitado como professor de inglês e para uma bolsa Guggenheim. «As coisas iam de mal a pior» diz ele, mas «[p]or fim, acabei no corpo docente de Harvard, sem grau académico.» Em um dos seus discursos, encoraja os finalistas: «Não tirem o chapéu. Podemos acabar a léguas daqui!» Kurt Vonnegut nasceu em Indianapolis e morreu aos 84 anos numa cidade a mais de mil quilómetros, Nova Iorque.
A sua prosa é cáustica enquanto humorística; é divertida, porém, profunda. É autodepreciativa mas lúcida. Sustenta o argumento de que se pode falar de assuntos sérios adotando as regras do discurso humorístico. Na sua obra literária, a aparente simplicidade das construções frásicas faz crer no leitor a ausência de complexidade, todavia, cada frase exprime sentimentos íntimos, sacode preconceitos, enxagua crenças, celebra o humanismo, e, mais importante, provoca o riso. O leitor, à medida que lê Vonnegut, aprenderá a olhar para as coisas de um ângulo diferente, novo. Pois é esta a função do escritor, do humorista — fixar a atenção em ângulos mortos, apontar para o elefante na sala dar conta de que o rei vai nu, ensinar a ver. Adotar, por exemplo, o ponto de vista dos marcianos que, brinca Vonnegut, quando poisados na cultura americana, se questionam: «que pode haver de importante no sexo oral e no golfe?»
Nos romances de Vonnegut, há um ingrediente literário que o orgulhava em comparação com outros romancistas — a ausência da figura do vilão no enredo. Vonnegut escreveu 14 romances, algumas dezenas de contos, peças de teatro, novelas, artigos de opinião, e proferiu vários discursos de formatura.
O livro Mas Há Melhor Do Que Isto?, traduzido em abril de 2022 pela editora Narrativa, a muito aguardada edição portuguesa, com prefácio de Afonso Cruz, é uma coletânea de onze discursos de formatura proferidos entre 1978 e 2001, e quatro textos de opinião escritos entre 1984 e 1995, sobre os mais variados temas, desde a liberdade de expressão, celibato, juventude e, até, sugestões de como fazer uma revolução cultural — sempre tratados com a devida jocosidade e humor, como devem ser tratados os temas mais elevados da sociedade. Diz o autor que «qualquer assunto é assunto para riso.»
Sobre liberdade de expressão, escreveu: «Portanto, não é assim tanto pedir aos americanos que não sejam censores, que corram o risco de serem profundamente magoados por ideias, para que todos possamos ser livres. Se uma ideia feia nos magoar, devemos contá-la como parte do custo da liberdade e, como os heróis americanos do passado, prosseguir corajosamente.» Por mais que custe acreditar ao leitor millennial e seus coevos, parece que a luta pela liberdade de expressão não é assunto hodierno. Nem a consciencialização climática do planeta: «Peço desculpa pela terrível confusão em que está este planeta. Mas sempre foi uma confusão. Nunca houve “Bons Velhos Tempos”, apenas houve tempos. E, como eu digo aos meus netos, “Não olhem para mim. Eu também acabo de chegar”». Sobre a juventude: «que era uma pena desperdiçá-la nos jovens». Sobre o celibato: «não é o mesmo que uma desvitalização de um dente.»
O título — Mas Há Melhor Do Que Isto? — é inspirado numa frase do tio Alex Vonnegut, uma adaptação moderna do célebre Carpe Diem de Horácio, que, em ocasiões muito simples, estando na companhia do sobrinho Kurt a beber «uma limonada à sombra de uma árvore, a sentir o cheiro vindo de uma padaria, a pescar, a ouvir música vinda de uma sala de concertos […]» afirmava «que, nessas alturas, era importante dizermos em voz alta: “Mas Há Melhor Do Que Isto?”» Pensava o tio ser um desperdício terrível as pessoas serem felizes e não terem consciência disso.
Kurt Vonnegut tinha muito jeito para defender as suas convicções. A maior delas — a esperança no riso. O riso, assim como a música, escreve Vonnegut, «não conseguem expulsar a depressão de uma casa mas pode encostá-la aos cantos de qualquer sala onde esteja a ser tocado.» Ler Vonnegut, amicíssimo leitor, é o equivalente a dar gargalhadas ao som de Blues.