“A Morte de Um Apicultor”, de Lars Gustafsson: linguagem, vida e morte
A obsessão primeira de Lars Gustafsson — a linguagem. Como impossibilidade de conhecimento, de acesso ao humano, de limite do nosso mundo, no sentido da sétima proposição de Wittgenstein em Tractatus Logico-Philosophicus: acerca do que não se pode falar, ficar em silêncio. E, por isso, fica a única alternativa, a mística, isto é, tudo o que se pode saber além da lógica. Escreve, a páginas tantas, o autor sueco, «o Borges escandinavo», como alguns sugeriram em jeito de antonomásia: «o homem só se torna suficientemente grande, suficientemente brilhante, se for um enigma. Só uma antropologia mística o consegue desvendar», ou seja, «procurar a verdade com a alma inteira», como dita a máxima platónica.
Depois, outras obsessões: a sociedade sueca da época, esse «bando de idiotas»; a hipótese de Deus ser mãe em lugar de pai; a dor como presença do corpo e o paraíso, ausência de dor; o outro como evidência da nossa entidade; sermos um corpo em vez de termos um corpo, opondo-se radicalmente ao cristianismo; a doença, que confere identidade e é «mais forte do que qualquer tribunal, do que os governos e autoridades»; a natureza descrita obliquamente e de modo poético; a monogamia como convenção social e religiosa; e, sobretudo, a esperança, mecanismo de inversão do tempo que se fixa no desconhecimento dos factos, isto é, na ignorância, e, por conseguinte, satisfaz, alivia, prolonga as ilusões e perpetua as mentiras que o autor inventa para si próprio: «Ou a carta anuncia-me que não se trata de nada de grave. Ou vem dizer-me que tenho um cancro e que vou morrer. O mais possível, claro, é o cancro. A atitude mais sensata é não a abrir, pois assim ficarei sempre com uma réstia de esperança».
Além das obsessões, as extraordinárias perguntas: porque será tão importante esconder a dor?; ou «até que distância podemos amar alguém?»; «terá o sofrimento algum sentido?»; «quando amamos alguém, ou melhor, quando nos apaixonamos por alguém, pelo que é que nos apaixonamos realmente?».
Dos escritores suecos depois de Strindberg, Lars Gustafsson (1936-2016) é o mais prestigiado e filosófico. Escreveu, até morrer, noventa livros, desde romances, novelas, contos, até ensaios e teatro. A Morte de Um Apicultor (Marcador, 2022) — que já vai na 2ª edição em Portugal com tradução (não do original, por isso menos acabrunhada do que a primeira edição da ASA, 1993, traduzida diretamente do sueco) de Afonso Cruz e Mélanie Wolfram — é a mais conhecida obra do autor sueco, que se situa «a meio caminho entre Susan Sontag e Woody Allen», de acordo com as palavras de John Updike. Conclui também um ciclo de cinco romances que o autor apelidou de «as fendas na parede».
Um antigo professor primário reformado vive sozinho numa pequena aldeia rural algures na Suécia onde é apicultor, depois de se ter divorciado e decidido a abandonar o ensino e as pessoas. De permeio a essa solidão, contacta apenas com dois jovens, que, com muita curiosidade, o tentam conhecer. Tem cancro, e é numa primavera dos anos 70 que descobre que deixará de existir antes da chegada do outono. O livro é preenchido por notas que deixou nos três cadernos após a sua morte: «Caderno Amarelo», «Caderno Azul», «Cadernos Rasgados». Antes de o livro começar, mas já começado, encontra-se um «Prelúdio» escrito pela voz de um narrador — presume-se o próprio Lars Gustafsson — que nos dá algumas informações biográficas e contexto do professor primário, concluindo o discurso com as seguintes palavras: «A voz que ouvirão a seguir é a dele, não a minha, e por isso me despeço.» Lars Gustafsson põe-se, deste modo, de fora da obra, desresponsabiliza-se pelo que escreveu, levando o leitor a acreditar que o que está escrito nos «cadernos» não é culpa do escritor, mas que, somente, ajudou na sua organização.
Do ponto de vista literário, o livro não tem um enredo tradicional, não conta uma história, digamos ao estilo oitocentista, o que leva o escritor português, Paulo José Miranda, grande admirador da obra de Gustafsson, a interrogar-se: «Será o enredo a morte do romance contemporâneo? Enredar, no sentido de tecer um enredo, é tão absurdo hoje no romance, como compor música erudita cheia de compassos sustentados em arpejos ou tríades, ou fazer uma exposição de pintura com retratos ou paisagens naturalistas».
Lars Gustafsson pertence ao conjunto dos maiores escritores europeus do século XX, qualidade admitida também pelo crítico inglês Harold Bloom, que o chegou a incluir na obra O Cânone Ocidental (1997), um dos mais respeitados (e controversos) livros de crítica literária. Uma escrita intimamente ligada ao pensamento, aos limites da linguagem, obrigando o leitor a pôr as lentes da filosofia e aprender a pensar. Embora as suas obras possam ser interpretadas nos mais variados campos de estudo, são indissociáveis, o pensamento e a linguagem.
A Morte de Um Apicultor é uma das mais importantes e essenciais obras da literatura europeia de todos os tempos. Uma osmose entre literatura e filosofia. Diz o autor: «Não sei o que é mais importante para mim: a minha obra literária ou a minha obra filosófica. Às vezes, não consigo ver nenhuma fronteira nítida entre elas, e tendo a considerar-me um filósofo que transformou a literatura numa das suas ferramentas.»
Lars Gustafsson não é só um grande romancista, é — decididamente — um filósofo que pensa como um escritor.