Vodafone Paredes de Coura (dia 5): um fecho variado com Pixies, slowthai, Perfume Genius e Princess Nokia
O último dia do regresso de Vodafone Paredes de Coura foi de enchente. Tal se deverá ter dado maioritariamente ao regresso a Portugal dos gigantes do rock alternativo Pixies, que deram um concerto para uma encosta repleta de gente em que não se conseguia ver um metro quadrado de chão. Antes disso, o alinhamento foi bastante diferente, numa inusitada mistura de géneros que parece começar a ser costume no festival.
A nossa jornada de concertos começou com os irlandeses e britânicos Far Caspian, projecto liderado por Joel Johnston, possuidor de um humor auto-depreciativo bem à irlandês. Brincou com o calor, com o facto de Portugal ser mais bonito que a Irlanda (não sei, não sei) e com a sua dicção (“não faz mal se não entendem o que digo, eu murmuro muito”). A sua música é uma espécie de indie rock melódico, com guitarras ocasionalmente reluzentes como as dos Real Estate, mas geralmente de tom mais taciturno. Os Far Caspian não apresentam nada de novo, mas o seu concerto cumpriu o que se espera da abertura de um dia soalheiro de Paredes de Coura.
No palco secundário, a proposta era bem diferente. Quando chegamos, Xenia Rubinos está enrodilhada num tecido vermelhão enquanto é puxada pelo seu percussionista Marco Buccelli, numa performance a puxar à dança contemporânea. A música que lhe dá banda sonora é excêntrica, oscilando entre R&B mais urbano e jazz que passam pelo crivo experimental da artista. Muito disso se deve à sua voz potente, ocasionalmente estridente (como na caribenha “Sacude”, canção para libertar maus espíritos) mas também capaz de se aveludar.
“See Them” é um bom exemplo, contando apenas com bateria e notas soltas de teclas tocadas por Xenia. Aos dois instrumentos, junta-se a voz tão elástica que quase parece um outro instrumento em palco, enriquecendo o arranjo. Há ainda espaço para momentos interventivos e crus, como “Who Shot Ya?”, que referencia o homicídio de Breonna Taylor pela polícia e outras injustiças. Foi um concerto completo e único.
Voltando ao palco maior do festival, encontramos os franceses La Femme, que já contam com um núcleo de fãs portugueses bem dedicado. O início do seu concerto atira-se a uma versão do psych pop dos anos 60, com teclas pastorais e doces melodias psicadélicas. Até a indumentária da banda respeita um certo padrão de tempos idos, lembrando os Metronomy da altura de Love Letters, outra homenagem a essa época.
O som surge abafado, retirando força às canções já por si não particularmente cativantes. Também não ajuda que parte da banda não tenha vendido particularmente boa energia, como demonstrava o sorumbático baterista. Já depois de termos partido para outras paragens, ainda ouvimos concerto descender a uma versão mais aguerrida de rock dançável, entusiasmando os fãs que parecem ter ficado satisfeitos com a longa performance.
Uma performance que poderia ter sido mais longa foi a de Perfume Genius, pois 45 minutos não são suficientes para entrar a fundo no seu mundo. O mago de emoções à flor da pele seduz-nos com a sua voz delicada mas poderosa e movimentos de corpo que trazem à mente tanto ballet como dança contemporânea, numa referência visual ao mais recente Ugly Season, parcialmente feito para musicar precisamente uma performance de dança.
Desse álbum mais experimental, ouvimos apenas a dançável “Eye in the Wall”, que se encaixou muito bem no meio de canções delirantes como “Nothing at All” ou “Slip Away”, que nos davam vontade de desatar a correr pelo recinto aos saltos. A explosiva “Otherside” e a ponte angelical de “Fool” levaram-nos às lágrimas, como de resto costumam fazer. As palavras tornam-se poucas para explicar o quanto a vulnerabilidade de Mike Hadreas nos toca, mas a sua música e atitude dizem tudo.
Entretanto, para algo completamente diferente, “We Like to Party! (The Vengabus)”, dos eurodancers Vengaboys, começou a tocar no palco principal. Vimos uma chusma de gente a correr para o palco para aquele que foi o início do espectáculo de Princess Nokia. Tudo muito bem com esta introdução, mas a ficamos confusos quando se estende por 10 minutos, passando ainda “Barbie Girl”, dos Aqua, e “Sandstorm”, de Darude. Só então Destiny Frasqueri apareceu em palco, cheia de panache e energia sexual. Visto de trás, o concerto pareceu confundir e entusiasmar em partes iguais.
Os acólitos de Pixies não sabiam bem o que estavam a ver, enquanto que os festivaleiros mais versáteis celebravam canções como “Sugar Honey Iced Tea (S.H.I.T.)” ou “Gemini”, já a puxar ao hip hop clássico. As interações são extensas e honestas, desembocando em momentos de trap de letras sex-positive. A sua colocação neste dia de festival pode ter parecido estranha a muitos, mas a própria artista estava exultante por abrir para os Pixies e tocar depois de La Femme, personificando um ecletismo que faz falta a muita gente.
Pelas 22 horas, abre-se uma alternativa para quem não tem interesse no rap de Princess Nokia, se bem que para muitos não é sequer uma alternativa, mas sim a principal opção: Yves Tumor. Ainda antes de o concerto começar, já se ouve ruído em palco, como uma espécie de preparação para a agressão sonora que aí vem. O altivo rockstar já faz muitas ondas no circuito do rock alternativo, imergindo canções que já soam a clássicos em noise e violência, para um efeito absolutamente delirante. Para nós, “Gospel for a New Century” é a jóia da coroa, atirada logo no início com toda a pompa e circunstância que merece.
Comparado com os concertos anteriores que vimos de Yves Tumor, este soa consideravelmente menos ruidoso e mais apurado (talvez inspirado pelo último EP próximo do gothic rock e do dream pop), mas não perde nada da intensidade graças a uma bateria ecoante e pesada. “Crushed Velvet” introduz um baixo sujo e ritmo motorizado que impele toda a gente a dançar, mas é “Kerosene!” o momento mais celebrado, com uma ovação que se teria estendido por mais tempo se o público não quisesse absorver todos os minutos possíveis de música. O concerto acaba em glória, com o líder e o guitarrista debruçados sobre as mãos do público. Um dos grandes momentos do festival e mais uma confirmação de que Yves Tumor é um portento ao vivo e a sua carreira florescerá ainda mais ao longo dos próximos anos.
Seguindo na senda dos concertos curtos, o britânico slowthai deu um modesto espectáculo de 40 minutos. Devido à sobreposição com Yves Tumor, chegamos apenas quando entra no segmento de colaborações bem sucedidas que começa com a gingona “Deal Wiv It”, produzida por Mura Masa, lembra uma “Parklife” (dos Blur) em versão hip hop de baixo granuloso e guitarras certeiras. Depois, resgata “Momentary Bliss” aos Gorillaz e o público mais duvidoso entende o potencial transversal do enfant terrible do rap inglês.
Animado por estar em frente ao público português pela primeira vez, agradeceu a recepção calorosa e atirou-se à derradeira “Doorman”, de sintetizadores gorgolejantes que fazem vibrar tudo em Paredes de Coura e incitam mais uns quantos moches. A canção é dedicada às pessoas de classe baixa que acham que não podem seguir os seus sonhos, incentivando-as a contrariar isso, provavelmente fazendo uma referência a si mesmo e ao seu percurso. O concerto termina com “Barbie Girl” (sim, outra vez) e a redundância faz-nos ponderar sobre a relevância deste tipo de escapes musicais. O final abrupto faz o concerto saber a pouco, mas pelo menos a energia de slowthai fica na nossa memória para futuros regressos.
Finalmente, o grande momento da noite para a maioria do público chegou: o concerto dos Pixies. Não é propriamente uma novidade, dado que a banda se encontra em eterno regresso desde 2004, mas o efeito nostalgia engrandece sempre um evento como é o concerto de uma banda tão relevante do rock alternativo como os Pixies. O seu concerto de 2014 no NOS Primavera Sound foi um dos mais aborrecidos que tivemos a infelicidade de ver. É verdade que não conhecemos assim tão bem a discografia da banda, mas o concerto também fez pouco pelo entusiasmo em conhecê-la mais a fundo. A característica apatia da banda, que entra muda e sai calada, manteve-se neste concerto em Paredes de Coura, mas o virtuosismo da banda e química musical parece estar muito mais forte. Talvez os anos na estrada com o actual alinhamento e o eventual lançamento de Doggerel, com canções novas mais consequentes que as editadas até agora nesta nova vida dos Pixies, tenham feito maravilhas pela banda.
Não faltaram os clássicos “Here Comes Your Man” e “Monkey Gone to Heaven”, assim como “Where Is My Mind?”, claro, altamente celebrada pelo público de telemóvel em riste para apanhar um dos momentos determinantes do final do rock dos anos 80. Variando entre diferentes tempos, as únicas constantes foram a forte distorção da guitarra, o baixo estrutural de Paz Lenchantin e o rugido sempre vital de Black Francis, o vocalista de cara fechada. Uma hora e quarenta e cinco minutos de concerto sem pausas terão sido mais que suficientes para satisfazer as expectativas dos milhares de pessoas que aguardavam por aquele momento. Sem grandes efusões, foi um bom fecho para o maior palco de Paredes de Coura.
Para finalizar a nossa visita anual ao festival — e antes de Nuno Lopes fazer o seu costumeiro DJ set —, revistamos o meme dançável que é Tommy Cash. Consideravelmente menos cáustico que no concerto de 2019 no Primavera Sound, o artista despeja logo as nossas canções predilectas no início. “X-RAY” e a colaboração com Salvatore Ganacci, “Heartbass”, puxam mais ao eurodance e a um exagero soviético que Tommy subverte na sua música, materializados em ritmos hiper-rápidos que não se dançam tanto quanto se seguem com um headbanging louco. “Who”, a música com a produção fabulosa de Modeselektor, demonstra um Tommy Cash mais interventivo e é certamente um dos grandes momentos da ainda curta carreira do artista. Quando as coisas entram mais no terreno do trap, o humor perde-se um pouco. Deixamos então Coura ao som de “Pussy Money Weed” e vamos repousar após cinco dias de festival intensos.
O Vodafone Paredes de Coura estará de regresso em 2023, entre 16 e 19 de Agosto.