As causas líricas de Antero de Quental
No auge de uma questão que se perpetuou por Coimbra, e que desejava uma reintegração e regeneração dos valores nacionais, surgiu o rosto célebre e conhecedor de Antero de Quental. Entre Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, este poeta e escritor emergiu como um dos pilares menos reconhecidos da cultura portuguesa, mas que proporcionou o fôlego necessário para uma contextualização nacional com os ventos de fora. Foi na liderança dessa Geração de 70 que fez a sua voz audível e presenciada, com vigor e fulgor, nos palcos do pensamento louvado e da ação enlevada.
Antero Tarquínio de Quental nasceu na cidade açoriana de Ponta Delgada, na ilha de São Miguel, no dia 18 de abril de 1842, onde também viria a partir a 11 de setembro de 1891. Quarto filho de uma família de sete, mais os dois pais, conheceu uma infância repleta de agruras e de turbulências, agastado com mortes prematuras de vários dos seus parentes. Porém, seria ainda no arquipélago que se refugiaria na poesia, na filosofia e, subsequentemente, na política, enquanto estudava no Liceu Açoriano. Esses interesses levá-lo-iam até à cidade estudantil, Coimbra, com 16 anos, estudando, na sua Universidade, no curso de Direito, de 1858 a 1864, após passar por Lisboa, em 1852, tendo, também, estudado no Colégio São Bento, já na cidade dos estudantes.
“Mãe — que adormente este viver dorido,
E me vele esta noite de tal frio,
E com as mãos piedosas ate o fio
Do meu pobre existir, meio partido…Que me leve consigo, adormecido,
Ao passar pelo sítio mais sombrio…
Me banhe e lave a alma lá no rio
Da clara luz do seu olhar querido…Eu dava o meu orgulho de homem — dava
Minha estéril ciência, sem receio,
E em débil criancinha me tornava.Descuidada, feliz, dócil também,
Se eu podesse dormir sobre o teu seio,
Se tu fosses, querida, a minha mãe!”“Sonetos Completos” (1886)
O arranque seria sintomático daquilo que se avizinharia, ao ter sido preso logo na primeira semana, após um excesso cometido numa atividade da praxe académica. Privando com intelectuais com ideais forasteiros e vanguardistas, deixou-se envolver por esse tecido de ideais, especialmente pelo socialismo. Articulando a escrita com um ideário cada vez mais acérrimo, torna-se no fundador da Sociedade do Raio, que esteve no ativo entre 1861 e 1863. Motivada por uma mudança social através da literatura, digeriu nomes da proa da filosofia ocidental, como Karl Marx, Georg Friedrich Hegel ou o fundador do anarquismo Pierre-Joseph Proudhon, que lhe chegou às mãos através da biblioteca do seu tio, Filipe, que cursava medicina, para além de autores como o alemão Johann Wolfgang Goethe ou o francês Honoré de Balzac, de modo a consumar essa reestruturação tão desejada. Apesar da duração lata desta associação, as raízes para o que se seguiria tinham sido criadas, sustentadas nas amizades com estudantes notáveis, como José Falcão, João de Deus, Alberto Teles (com quem organizaria uma “Lírica Açoriana”), ou os irmãos José e Alberto da Cunha Sampaio. Porém, estavam protagonizadas as primeiras de muitas manifestações estudantis que contaram com a sua inflamada presença, e que ajudaram à constituição da revista mensal “O Académico”.
Foi precisamente à luz desta influência do francês Proudhon que, em 1865, deu forma e publicação às “Odes Modernas”, quatro anos depois de publicar os seus primeiros sonetos, “Sonetos de Antero”, resultantes de várias partilhas em revistas, e que seria procedido por “Sociedade de um Raio” (1861-62). Esta obra, de forte cariz socialista, e embrenhada nas novas correntes de pensamento de fora, sem descartar o romantismo que tanto apreciava, deram o mote para a formulação da Questão Coimbrã, célebre problemática na comunidade académica. Perante um status quo, a ver dos proponentes, abúlico e atrofiado, Antero assumia a dianteira de um grupo de autores que desejava incutir, na génese nacional, os novos rumos provenientes da cultura europeia. O novo fôlego que tentava contagiar aos seus colegas e companheiros de estudo e de discussão foi motivo para a produção de diferentes ensaios de cariz sociopolítico, como “A Influência da Mulher na Civilização”, “A Ilustração e o Operário”, e “A Indiferença em Política”, preenchendo o rosto e o interior de diversas publicações coimbrãs.
Este grupo acabou por ser notabilizado após o nome de António Feliciano de Castilho – fundador do Colégio do Pórtico, em Lisboa, onde o açoriano havia estudado, e seu docente de francês e latim em Ponta Delgada, para além de habitual mentor das gerações emergentes de autores – se insurgir perante a formação de um grupo avesso ao academismo e aos formalismos inerentes à criação literária. Visando, para além de Antero, Teófilo Braga e Vieira de Castro nas críticas, veria a sua resposta chegar numa carta aberta, escrita pelo primeiro, em que defendia a necessidade de encaminhar o trilho para a mudança advinda da realista discussão das problemáticas ideológicas, das vicissitudes conjunturais e da exploração social, e de virar a página perante o supérfluo ultrarromantista da poesia do próprio Castilho. Tudo isto seria emitido em “Bom Senso e Bom Gosto: Carta ao Exmo. Sr. António Feliciano de Castilho” (1865). Para lá das portas do Atlântico, o poeta brasileiro Manuel Bandeira enaltecia o empenho e o engenho modernista e intelectualmente renovado de Antero, para lá daquilo que foi a influência literária de Eça.
Para além destas notas, complementá-las-ia com uma publicação no folheto “A Dignidade das Letras e Literaturas Oficiais” (1865), onde exortava para a criação de uma literatura capaz de corresponder aos desafios contemporâneos. A sua irreverência despertaria reações mistas, com Camilo Castelo Branco e Ramalho Ortigão (com quem viria a duelar, mas com quem cultivaria uma amizade nutritiva) a criticarem o tom truculento do jovem Antero; por sua vez, Eça de Queiroz era favorável à causa das novas vozes de uma literatura recheada de arcadismos. A Questão Coimbrã permitiu que esse grupo de autores se autonomizasse, e se denominasse Geração de 70. A emergência do vigor e da velocidade industriais conduziram o seu rumo para a novidade ideológica, numa luta empenhada pela sanidade dos princípios da realidade recém-chegada. Aqui, integrava já os ilustres vultos de Eça e de Oliveira Martins, um dos principais amigos e colaboradores do autor açoriano, e um dos fundadores do igualmente ilustre grupo dos Vencidos da Vida, cujo ideário não distava muito da lamentação do status quo da conjuntura nacional de então, embora já quase no século XX.
“Lembremo-nos que a literatura, porque se dirige ao coração, à inteligência, à imaginação e até aos sentidos, toma o homem por todos os lados; toca por isso em todos os interesses, todas as ideias, todos os sentimentos; influi no indivíduo como na sociedade, na família como na praça pública; dispõe os espíritos; determina certas correntes de opinião; combate ou abre caminho a certas tendências; e não é muito dizer que é ela quem prepara o berço aonde se há-de receber esse misterioso filho do tempo – o futuro.”
“Prosas da Época de Coimbra” (1982)
Após um período recheado de experiências e de memórias, em 1866, mudar-se-ia para Lisboa, onde exerceu tipografia, que seria o seu ofício no ano seguinte, quando trabalhou em Paris. No entanto, no ano seguinte, e de regresso a Lisboa, juntaria Ramalho Ortigão, Eça de Queiroz a outros, como Guerra Junqueiro ou Batalha Reis, para fundar o Cenáculo. Este grupo de intelectuais funcionava à base de tertúlias amistosas, reunindo-se em casas particulares, e tentando estender a aura coimbrã para a capital, aura em que a base deste aglomerado havia germinado. Das artes às ciências, passando pela política e sociedade, foram muitos os assuntos que conheceram importantes comentários e contributos pelos membros. Ideais regeneradores não deixavam de se pronunciar, embora tenham refreado com o passar do tempo, com o sossegar do inquieto e anárquico espírito dos boémios estudantes. No entanto, o ideário de que a literatura seria um canal através do qual a sociedade poderia ser repensada e até mudada não cessou, consolidando-se com as fragrâncias que Antero trouxe da capital francesa. Este auge deu lugar à criação de um poeta denominado Carlos Fradique Mendes, de tendências satânicas, e baseadas na poesia dolorosa e combativa dos gauleses Charles Baudelaire e Théophile Gautier, e que seria, especialmente, perpetuado por Eça de Queiroz, em “Correspondência de Fradique Mendes” (1900).
No segmento de tempo menos atribulado, e pautado pelo então amadurecido e viajado Antero, nasceu a paixão pela sociologia e pelo socialismo, criando raízes mais seguras de uma discussão construtiva sobre a realidade nacional. A própria metafísica não foi totalmente desvinculada do seio deste palco de prodigiosos cérebros, e que conheceu uma realidade prática nas conotadas Conferências do Casino, datadas de 1871. Este fluxo vanguardista não seria muito diferente da ida Questão Coimbrã, embora juntasse mais nomes, como Oliveira Martins e o primeiro Presidente da República portuguesa, Manuel Arriaga. A reflexão sobre as mudanças sociopolíticas operadas dentro e fora de portas foram o grande ponto de discussão das mesmas, sem excluir qualquer teoria que fosse, eventualmente, surgindo como capacitada de empreender respostas às questões proeminentes. A visão internacionalista detida pelo grupo procura uma transformação moral e social efetiva para Portugal, sintonizada com o que de novo se ia pensando e produzindo, na perspetivação de uma sociedade mais civilizada e consciente dos quês e porquês em seu redor. Para além disso, levantar a filosofia e a ciência como disciplinas determinantes no entendimento e no debate da realidade, que devia de ser partilhada por todos, para todos.
Uma das conferências mais importantes realizadas foi, precisamente, protagonizada por Antero, que apontou as causas de decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos (o título da mesma é, ipsis verbis, o apontado). Apoiando-se nas investigações de Alexandre Herculano, fala daquilo que foi a contrarreforma jesuíta, para além da centralização política absolutista, e, ainda antes, do sistema económico na fase dos Descobrimentos. Seriam resultado daquilo que era uma vontade interior de ver uma união republicana, entre Portugal e Espanha, comungando dos ideais de justiça social e de igualdade, para lá da asfixia centralizadora dos órgãos de poder. Oliveira Martins sairia incentivado para redigir sobre a história deste espaço geográfico, lançando “História da Civilização Ibérica” (1879), e “Portugal Contemporâneo” (1881). Porém, esta conferências conheceriam o seu fim na sexta edição, após forças das autoridades avisarem os participantes de que a sua realização se havia tornado ilegal, por atacarem as instituições estatais e a religião inerente às mesmas. Contudo, as sementes de uma sociedade republicana e democrática estavam, desde já, plantadas, para além de vozes que bradavam perante os atos de censura perpetrados por instâncias monárquicas.
Esta afirmação de irreverentes ideias, num contexto retrógrado e repressivo como o da Monarquia, acreditava no progresso social, sustentado numa ciência cada vez mais positivista e evolucionista, e num historicismo que vingava no que lia para trás da sua geração, catapultado por Marx. Antero, perante este cenário, não baixaria os braços na sua tentativa de destacar as incidências e as desigualdades patentes, sendo um dos membros fundadores do Partido Socialista Português (destaca-se o opúsculo “O que é a Internacional?”, datado de 1871), e do jornal “A República”, ao lado de Oliveira Martins. Com as tendências socialistas a adquirirem força no seio da sociedade nacional, em 1871, apresenta o seu ideário anarquista a delegados da Associação Internacional dos Trabalhadores, para além de participar numa conferência ibérica relativamente aos fundamentos do retrocesso da península. Nestes anos 70 e nos 80 do século XIX, colaboraria incessantemente em diversas publicações, como “O Pensamento Social” (1872, que fundou, ao lado de José Fontana), “Renascença” (1878), “O Pantheon” (1880-81), ou “Branco e Negro” (1896-98); sendo autor de obras, como “Primaveras Românticas” e “Considerações sobre a Filosofia da História Literária Portuguesa” (ambas de 1872) tendo fundado, nesse mesmo ano, com Batalha Reis, “Revista Ocidental”, no ímpeto do iberismo que tão ardentemente defendia.
Em 1873, após herdar uma importante maquia monetária, decide retirar algum tempo da sua atividade, descansando enquanto reeditava “Odes Modernas” (relançada em 1875, menorizando o cariz incendiário). No ano de 1879, e já após o falecimento da mãe, em 1876, passou a viver no Porto, e lançou, sete anos depois da chegada, a sua principal obra de poesia, consagrando grande parte do seu pensamento sociopolítico, filosófico, metafisico e científico, mas sem deixar de versar sobre um expoente sentimental de exemplar valor, sustentada em parâmetros e caraterísticas simbolistas. “Sonetos Completos” surgiu em 1886, prefaciada por Oliveira Martins, como resultado dessa compilação de vários anos de composição lírica, e como um corolário de uma condução emocionalmente pungente e refulgente, repleta de traços autobiográficos. À imagem destas obras, também uma compilação de poemas da sua autoria, datados do período entre 1858 e 1863, seria organizada e lançada por Teófilo Braga, em “Raios de Extinta Luz”.
1880 levá-lo-ia, mesmo após debelar uma histeria detetada em Paris, a adotar duas filhas, após o seu amigo advogado e jornalista Germano Meireles falecer, três anos antes. Problemas de saúde atingiriam Quental no ano seguinte, levando-o a viver em Vila do Conde até 1891. Este período foi, considerado pelo mesmo, o mais feliz da sua vida, fascinando-se com as praias e com os passeios que nestas dava; durante o qual surgiu o ensaio “A Filosofia da Natureza dos Naturalistas” (1886), a carta autobiográfica a Wilhelm Storck, o seu tradutor germânico, em 1887, e “Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX” (1890). No entanto, a reação monárquica perante o ultimato inglês, perante as possessões no sul de África, levou-o a um estado latente de desassossego, que culminou na presidência da efémera Liga Patriótica do Norte. Voltou a Lisboa já em 1891, onde passou a viver com a sua irmã Ana. O seu estado psicológico havia-se tornado mais perturbado do que nunca, protagonizado por um distúrbio bipolar e por uma depressão que levaria à sua morte, no dia 11 de setembro de 1891, com 49 anos. Com dois tiros, pôs termo à sua vida, num banco de um jardim perto do Convento de Nossa Senhora da Esperança, em Ponta Delgada, onde seria sepultado.
“A metafísica e a ciência não são pois rivais, mas colaboradoras na obra do conhecimento, e a concepção metafísica e a científica não devem ser representadas como duas esferas opostas, mas como dois círculos concêntricos.”
“Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX” (1890)
A poesia de Antero de Quental, pela qual se notabilizou e se celebrizou no palco da cultura nacional, assenta em três fases distintas, embora todas elas de proeminência pessoal. A primeira delas ressoa a idade jovem e pueril, onde a coexistência de vários caminhos do saber e do acreditar se torna numa prática de assinalável recorrência; a segunda, dá voz e eco ao espírito de combate e de insurreição da geração coimbrã, disposta a renovar e regenerar a sociedade e o país; por fim, numa fase de redenção, a metafísica preenche a derradeira extensão temporal de Antero, onde a existência é posta em questão perante a angústia de viver. Entre o êxtase da discussão social e a reflexão na averiguação individual, são várias as problemáticas sentidas, que não cessam de ser sentidas em intensidade anormal. A decadência fazia-se sentir, e o açoriano sentiu a responsabilidade de confrontar, com o lirismo caraterístico, uma maré de idas já ultrapassadas, clamando pelo vazar de uma nova enchente.
Todo o trabalho académico e jornalístico não conseguiu contrariar o ímpeto sentimental que o conduzia a essa necessidade da totalidade, descoberta e desvendada na reconstrução da vida e da morte, em diversos plenos de pensamento. A metafísica não seria esquecida, em especial no período em que privou com o extenso areal e com os afagos do mar em Vila do Conde, numa plenitude de paz e tranquilidade, onde as vozes do futuro se faziam ouvir das entranhas que conheciam o seu arrefecimento. Nas entradas do simbolismo, cessaria a contribuição excessivamente positivista e carregada da materialidade, para abrir as portas a uma imaterialidade pouco cognoscível, mas que, aos poucos, era revelada aos que melhor se sintonizavam com a profundidade das questões da alma e da existência. É do alto dos seus sonetos, inspirados e comparados aos de Luís de Camões e aos de Bocage, que havia sido íntimo do seu avô, com um certo classicismo formal e equilibrado, na proa de uma discussão universal, que o autor se torna amplo, nacional e global, à imagem do que seria o (des)fragmentado Fernando Pessoa. Esta atualidade, que leva o comum leitor a contagiar-se por Pessoa, é a mesma que sente as farpas de Antero, tanto na sua envolvente contextual como nas lides dos amores perdidos e (des)iludidos.
Do atlântico dos seus Açores, da plenitude plural do seu caráter, Antero de Quental nunca permaneceu quieto, especialmente no seu interior. Do amor à revolução, da dor à sensibilização, o poeta completou-se em toda a sua vida, levando o auge da sua infância e o arrojo da sua adolescência para o determinar da sua idade adulta. Algo que nunca se desmoronou na sua vida, no seu raio de ação e de pensamento, foi a ideologia sustentada e alimentada por leituras e viagens infatigáveis. Um sentimento que se muniu da sabedoria e da experiência, e que se espelhou, em versos e em produção de conhecimento, num lastro de saber fresco e necessário. A voz pungente de um grupo de jovens interessados por recriar a realidade, a partir da academia de estudantes, repletos e munidos das metas versadas dos sonhos. Antero de Quental, em sua plataforma lírica transcendental, preencheu-se de uma personalidade sem igual, dando experiência e essência a uma geração diferencial.
“Já sossega, depois de tanta luta,
Já me descansa em paz o coração.
Caí na conta, enfim, de quanto é vão
O bem que ao Mundo e à Sorte se disputa.Penetrando, com fronte não enxuta,
No sacrário do templo da Ilusão,
Só encontrei, com dor e confusão,
Trevas e pó, uma matéria bruta…Não é no vasto mundo — por imenso
Que ele pareça à nossa mocidade —
Que a alma sacia o seu desejo intenso…Na esfera do invisível, do intangível,
Sobre desertos, vácuo, soledade,
Vôa e paira o espírito impassível! ”“Sonetos Completos” (1886)