O mito de Vítor

por Leonardo Cruz,    11 Dezembro, 2022
O mito de Vítor
Ilustração de Natacha Costa Pereira

Há mais ou menos três mil anos, na ilha de Ios, Grécia, numa noite de inverno assolada por fantásticas trovoadas, Homero lamentava-se com o seu jovem amigo e companheiro de ofício Hesíodo:

— Tenho a khroniká para grafar, mas tema não possuo. As histórias mais interessantes da minha vida aconteceram há demasiados anos, e já as contei. Até mesmo as epopeias de vinho em casa de Atena, como a de ontem, com as troianas de belas tranças. Solução outra não tenho que à heurística recorrer. Mimetizarei aquele ferreiro coxo que mente em cada palavra proferida, qual o seu nome, mesmo?

— Hefesto, Homero?

— Exato, Hesíodo. Hefesto, esse mesmo. A solução é fazer como ele: inventar. A pensar estou de criar toda uma mitologia inspirada nesta malta aqui da polis. Pano para mangas terei. Vejamos: Hefesto, paradigma fácil — será o Deus dos ferreiros, dos artesãos e escultores, dos metais, da metalurgia, sei lá, do fogo, dos vulcões e do lume. E, olha, como está sempre a forjar não só o ferro como também a realidade, ficará ainda o Deus da “tecnologia”!

— Eureka! Fantástica ideia! Estender a vários podemos… Dioniso, que nos fornece aquela boa pomada, ficará o Deus do Vinho!

— Sim, Hesíodo! E Atena, que me avisou para beber menos de modo a que hoje evitasse esta disforia encefálica: Deusa da Sabedoria! — disse Homero.

— E aquela Afrodite, hein, hein? Aquilo é que é uma deusa, Homero, pá!

— Ó valha-me Deus…

— Qual deles? Eh eh eh! — disse Hesíodo.

Aos dias de hoje, a pouco mais de uma centena de quilómetros de Olissipo, a cidade fundada pelo lendário Ulisses, algures pelo Oeste de Portugal numa manhã de tempo meio chocho, Leonardo Cruz lastimava-se pela ausência de assunto para a crónica que deveria cumprir até ao final da semana. Considerou a mitologia grega, sempre fonte de tão boas inspirações, porém todas as suas ideias pareciam-lhe gastas, pobres ou, pior, já feitas. Ele mesmo considerava ter, nas suas palavras, “esticado um pouco a corda” com o sempre tão batido Sísifo — não que isso seja novidade para este eterno castigado pelos deuses.

Até que teve uma ideia quase tão brilhante como o dia. Porque não criar uma nova mitologia? Um inovador conjunto de figuras divinas e suas respetivas fábulas! Algo que a descrente população portuguesa do séc. XXI, mais do que precisa, anseia. Uma coleção de divindades e suas histórias inspiradoras, todavia com base no cidadão comum, gente do povo, heróis da classe operária. Com menos genealogia complicada como a grega ou a nórdica e mais simplicidade, menos truques ou poderes celestiais e mais habilidades “faça você mesmo”. O autor de fiascos como “Flores no Cu” ou “Nobel do Pincel” via aqui o que o povo auspiciosamente costuma chamar “uma autêntica mina”. A palavra “merchandising” fora, inclusive, rabiscada. 

Foi assim que surgiu esta nova mitologia, não distante e elitista como a grega, mas próxima das raízes lusitanas, mesmo que para denominá-la o autor tenha recorrido a um brasileirismo (não descurando uma potencial internacionalização do conceito).

Senhoras e senhores, temos o prazer de apresentar o início da Nova Era do Estudo das Divindades: a “Mitologia Brega”.

O mito de Vítor

Vítor (nome próprio de origem latina, com raiz em Victor, que significa “vitorioso, conquistador”) tornou-se conhecido dos portugueses por via da aparição no programa de televisão “Liga dos Últimos”. Ali se mostrou na sua condição de adepto do Agrário Desportivo de Lamas, clube do concelho de Miranda do Corvo, presenciando um jogo de futebol atrás de um poste de eletricidade.

“Vítor do Poste”, alcunha celebrizada pelo hábito, referiu nesse programa escolher aquele lugar porque “os foras-de-jogo começam aqui”. Eternamente irritado com a arbitragem, Vítor demonstrava possuir uma elasticidade extraordinária quando, lembrando o movimento de um metrónomo, curvava o tronco para ambos os lados do poste, colocando-se no ângulo de visão em que, com aquele, tapava o último defesa e, desta forma, observava se os avançados estavam ou não a infringir a Lei 11 do Futebol. “Eu gosto muito de estar no sítio onde se veem os foras-de-jogo” — estas suas apaixonadas palavras ecoaram durante anos no imaginário da população lusa. Em inúmeras partidas dos diversos campeonatos nacionais, Vítor do Poste é, ainda hoje, recordado com carinho.

Vítor tornou-se símbolo do livre-arbítrio, da originalidade e excentricidade, por optar não seguir correntes mais mainstream que preferem vistas desafogadas. Talvez tenha sido o único em toda a história da humanidade, desde os teatros helénicos aos coliseus romanos, dos jogos de bola mesoamericanos às finais da Champions League, que ousou proclamar: “aquele lugar atrás do poste é meu!”.

Os maiores filósofos da nossa era não esquecerão este mito, aproveitando eventualmente os estudos de Schrödinger: Vítor do Poste é um espectador que não o é, um observador que não observa. Um paradoxo pós-moderno à espera que um novo Kafka o imortalize.

Vítor do Poste é emblema de resiliência e estoicismo, pedra angular de uma nova máxima: “se a vida coloca um pilar à tua frente, força os abdominais laterais, contorna-o e alcançarás a luz”. Um herdeiro de Saramago tem aqui o próximo “Ensaio sobre a Cegueira”: Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara, só tens que desviar-te do poste.

Um Camus do séc. XXI pode também pegar neste mito: Vítor é o herói absurdo. Tanto por causa de suas paixões como pelo seu tormento. O seu desprezo pela visão, o seu ódio à arbitragem e a sua paixão pela lei mais detestada do desporto-rei valeram-lhe a inefável provação de conviver com um pilar de cimento obstruindo a visão e, em simultâneo, aparentar conforto na própria escolha.

Também o Reino da Fantasia pode ter em Vítor uma referência: a presença interrompida, o aparecer/desaparecer atrás do poste pode ser uma espécie de Gato de Cheshire, de Lewis Carroll.

Assim é o Mito de Vítor, nome maior da Mitologia Brega: Deus dos Fiscais de Linha, Paladino da Contracultura, dos que pensam “fora-da-caixa”; Deus do Livre-Arbítrio, da Originalidade e do Absurdo. Vítor do Poste é o Estóico, o Resiliente, aquele que “sabe ver”. É, ao mesmo tempo, a indubitável e derradeira personificação do Pior Cego: aquele que não quer ver.

Vítor do Poste é um novo Che Guevara, a fotografia de Korda, o poema de Alegre: alguém que resiste, alguém que diz não (está em jogo).

Também é insígnia do liberalismo, o que ultrapassa os obstáculos, ainda que procurados por ele, que renuncia às traves e aos entraves colocados pelo Estado castrador.

E porque não poemas épicos? Adaptemos Homero e a sua Ilíada, alertando o leitor que os decassílabos poderão considerar-se, à imagem do Deus glorificado, enfermos de alguma intermitência:

Ó Vítor, concedei este fora-de-jogo
Impedi qu’ o adversário fira nossa baliza
Recorrei ao vídeo se necessário
Mas não deixais esses eunucos
Introduzir bolas nas nossas redes.
Do longínquo terceiro anel donde vi 
Claramente
O atleta adiantado face a nosso penúltimo defensor
Anulai, Vítor, anulai!
Qu’ é hora da voz que trago no peito
Soltar o grito surdo e tenebroso
“Chupem”!

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