100 anos de Eugénio de Andrade. Comunidade Cultura e Arte desafia onze convidados a escolherem os seus poemas favoritos

por Comunidade Cultura e Arte,    19 Janeiro, 2023
100 anos de Eugénio de Andrade. Comunidade Cultura e Arte desafia onze convidados a escolherem os seus poemas favoritos
Eugénio de Andrade / DR

Hoje, 19 de Janeiro de 2023, celebram-se os 100 anos do nascimento de Eugénio de Andrade (1923-2005), pseudónimo pelo qual o fundanense José Fontinhas ficou conhecido entre os amantes de literatura e poesia portuguesa. A sua obra foi descrita por José Saramago como sendo uma “obra do corpo a que chega mediante a depuração contínua”. Nesta breve homenagem relembramos a sua vida e obra, e para as celebrar lançámos um desafio a onze convidados.

Mas antes, onde começa a história do Poeta? Nasceu no Fundão, em Póvoa de Atalaia, e foi morar com a mãe para Lisboa aos 10 anos, após separação dos pais. Aqui dividiu o seu percurso escolar pelo Liceu Passos Manuel e a Escola Técnica Machado de Castro. É ainda na sua juventude que envereda pela actividade poética, em parte incentivado pelo poeta António Botto (com quem partilhou os seus primeiros esboços de poesia). Com uma passagem por Coimbra (desde 1943), por razões profissionais muda-se para a o Porto em 1950, cidade onde permanece até ao seu falecimento em 2005. 

A poesia foi a expressão literária que o consagrou, mas ao qual não ficou preso, Eugénio produziu ensaios, livros para crianças, participou em diversas publicações literárias e foi tradutor de grandes nomes como Federico García Lorca e Jorge Luís Borges. O Poeta materializou uma carreira ímpar e prolífica, que dista 58 anos desde a sua primeira publicação “Narciso” em 1940, à última: “Lugares do lume” em 1998. A sua obra intemporal está traduzida em mais de 20 línguas diferentes.

O seu percurso de vida e literário fica marcado pela constante “fuga” à vida pública, no entanto isto não impediu o reconhecimento da sua obra, e que fosse agraciado com inúmeras distinções e condecorações (por parte de entidades nacionais, e não só). O estado português atribuiu-lhe o grau de Grande Oficial da Ordem de Sant’Iago da Espada no ano de 1982, e o de Grã-Cruz da Ordem de Mérito em 1988. O Município do Porto distinguiu-o com a Medalha de Mérito em 1985 e a Medalha de Honra em 1989. Recebe o Prémio da Associação Internacional de Críticos Literários em 1986), o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores em 1989 e o Prémio Camões em 2001.O reconhecimento internacional surge em 1990 com a Medalha da Cidade de Bordéus e a Medalha da Universidade Michel de Montaigne em 2001 (também na cidade francesa). Em Paris integra a Academia Mallarmé, em Verona a Accademia Mondiale della Poesia, e na Roménia participa na fundação da Academia Internationala Mihai Eminescu.

Recentemente, o espólio de Eugénio foi entregue à Casa dos Livros do Porto, que conta com diversos acervos literários de autores como Vasco Graça Moura, Herberto Helder, Manuel António Pina, entre outros. 

Neste período comemorativo da vida e obra de Eugénio, destacamos a iniciativa do Museu da cidade e das Bibliotecas Municipais do Porto, a exposição “Eugénio de Andrade, A Arte dos Versos” na Biblioteca Municipal Almeida Garrett e que estreia simbolicamente no dia de hoje às 17 horas. A Cooperativa Árvore dedica uma Exposição especial ao poeta em Eugénio de Andrade: “Poesia a 100 Eugénio”. Na sua terra natal surgiu o desafio ao Governo para apoio na comemoração do centenário do poeta e neste contexto teremos o regresso do Festival Literário da Gardunha para celebração da sua obra.

Aproveitámos esta efeméride para revisitar alguns fragmentos da obra de um dos maiores poetas portugueses do século XX. Para este efeito: desafiámos um grupo de pessoas da nossa estimada comunidade devota à cultura e à arte para participarem neste artigo com o seu poema favorito de Eugénio de Andrade, acompanhado de uma reflexão sobre o que o poema lhes desperta. Esperamos que gostem, tanto como nós, dos testemunhos de experiências poéticas deste grupo pluralista de intervenientes de todo o país, e aos quais estamos imensamente gratos pela disponibilidade e entusiasmo.

Escolhas e justificações:

Poema escolhido por Cláudia Lucas Chéu (Poeta e Dramaturga) e Alice Neto de Sousa (Poeta)

Adeus“, in “Os amantes sem dinheiro”, 1950

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Justificação da escolha

“É um poema belíssimo. Li-o pela primeira vez por volta dos meus 14 anos. Ainda não sabia nada sobre o amor amoroso — talvez ainda não saiba — e foi marcante. Descobri pela voz do poeta que o amor acaba em farrapos com «as palavras estão gastas». Percebi que a despedida pode ser digna através de um poema.”

Cláudia Lucas Chéu

Justificação da escolha

“Na despedida, tal como os botões se perdem, os amores gastos se descosem, em letras de areia que salgam os mares.”

Alice Neto de Sousa

Poema escolhido por Tomás Magalhães (Físico, Polarizador, Autor do Podcast “Despolariza”)

Poema para o meu amor doente“, in “As mãos e os frutos”, 1948 

Hoje roubei todas as rosas dos jardins
e cheguei ao pé de ti de mãos vazias.

Justificação da escolha:

“Li este poema pela primeira vez algures na minha adolescência. Recordo-me de ter sentido dois sabores. O prazer de se viver apaixonado por tudo e o remorso despenteado de não o conseguir controlar. Talvez seja uma boa forma de viver.”

Tomás Magalhães

Poema escolhido por Sara Rathenau (Psicóloga Clínica e Investigadora)

Último Poema“, in “Rente ao dizer”, 1992  

É Natal, nunca estive tão só.
Nem sequer neva como nos versos
do Pessoa ou nos bosques da Nova Inglaterra.
Deixo os olhos correr
entre o fulgor dos cravos
e os dióspiros ardendo na sombra.
Quem assim tem o verão
dentro de casa
não deveria queixar-se de estar só,
não devia.

Justificação da escolha:

“Este poema do Eugénio de Andrade não é de agora, mas podia ser. Vivemos cada vez mais numa sociedade do Eu e consequentemente da Solidão. Tantos que se sentem sós no meio de uma multidão. Quem diz multidão, pode também dizer família. Perdemos a partilha, já não há comunidade. Temos dificuldade em aceitar o diferente. Perdemos pessoas, mas não somos capazes de falar sobre o luto. Censuramos as emoções negativas em prol de uma positividade falsa e imperativa. Crescemos num berço que fomenta a culpa. O verdadeiro Verão talvez sejam as relações afectivas ricas (onde há partilha, onde há aceitação do outro, onde se fala da perda e da mudança) e sem estas, até podemos ter muitas coisas e muitas coisas ditas boas, mas vamos sempre sentir-nos sós.”

Sara Rathenau

Poema escolhido por Fábio Nobre (Escritor e Poeta nos tempos livres)

Conselho“, in “Os amantes sem dinheiro”, 1950 

Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.

Justificação da escolha:

“Há um tempo para tudo, e há também um tempo para o tempo. Os momentos atuais precisam de paciência, mas poucos a parecem tê-la. Um mundo de pressas, onde as palavras se comem verdes, sem mastigar, é também um mundo de conflitos. Os poetas por cá andarão, enquanto os deixarem, a renovar a linguagem, que é como quem diz, renovar a esperança. Este poema significa isso para mim, uma ilha de espanto face ao infindável ruído dos nossos dias. Celebrar Eugénio de Andrade é sempre celebrar a beleza da palavra escrita.”

Fábio Nobre

Poema escolhido por Pedro Inock (Artista Plástico)

Até Amanhã“, in “Até Amanhã”, 1956 

Sei agora como nasceu a alegria,
como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima.

É primeiro só um rumor de espuma
à roda do corpo que desperta,
sílaba espessa, beijo acumulado,
amanhecer de pássaros no sangue.

É subitamente um grito,
um grito apertado nos dentes,
galope de cavalos num horizonte
onde o mar é diurno e sem palavras.

Falei de tudo quanto amei.
De coisas que te dou
para que tu as ames comigo:
a juventude, o vento e as areias.

Justificação da escolha:

“De fragmento em fragmento de Até Amanhã (1956), Eugénio de Andrade traça uma topologia sígnica contra a ausência, uma negação da isolação do eu em reflexões profundas sobre o corpo e a natureza. Estes seus gestos são na sua clareza e imediatez de escrita um convite possível à viagem de transcendência dos limites da vida. Figura incontornável, bastião da auto reflexividade e do confronto com o eu (e com a sua modernidade) é no poema homónimo do livro que o escritor nos convoca a (de forma turbulenta e íntima) tornarmo-nos exteriores a nós próprios, a uma exploração de uma “coisa curiosa” de uma realidade desconhecida, um recomeço possível (e hesitante), um amanhecer. Em Até Amanhã tudo se torna presente.”

Pedro Inock

Poema escolhido por José Moreira (Arquitecto e escreve sobre livros na Comunidade Cultura e Arte)

Post Scriptum“, in “As palavras interditas”, 1951 

Agora regresso à tua claridade.
Reconheço o teu corpo, arquitectura
de terra ardente e lua inviolada,
flutuando sem limite na esperança
da noite cheirando a madrugada.

Acordaste na aurora, a boca rumorosa
de um desejo confuso de açucenas;
rosa aberta na brisa ou nas areias,
alta e branca, branca apenas,
e mar ao fundo, o mar das minhas veias.

Estás de pé na orla dos meus versos
ainda quente dos beijos que te dei;
tão jovem, e mais que jovem, sem mágoa
— como no tempo em que tinha medo
que tropeçasses numa gota de água.

Justificação da escolha:

“Neste sublime exercício poético Eugénio materializa uma percepção do outro enquanto morada, enquanto porto de abrigo ou destino ao qual desejamos regressar. A evocação da imagem do corpo enquanto elemento arquitetónico, faz-me reflectir sobre o habitar não se limitar à existência corpórea e da ocupação do espaço, mas na nossa presença no outro e para o outro, de pertença mútua. Esta desconstrução poética do conceito de espaço/lugar alimenta a minha ligação afetiva ao poema e, nas palavras de Gaston Bachelard, “A casa é o nosso canto no mundo. Ela é, como se diz frequentemente, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos”. Não podia estar mais de acordo.”

José Moreira

Poema escolhido por Maria Beatriz Seabra (Professora Convidada na Nova School of Law e escreveu um livro de poesia)

Rente à fala“, in “Limiar dos Pássaros”, 1976

6. Inventar a cor primeiro das laranjas 
depois o sol escorrendo dos lábios 
só depois o trevo só depois a neve.

Justificação da escolha

“Mais acima e mais além da Terra, um Poeta-Deus viaja em corpo de pássaro, acima das nuvens, deslizando em transgressão pelas secretas galerias cósmicas, num fluir sem gravidade, como em sonho. Aí, do alto, o olhar criador inventa um mundo primário [a cor, o sol, o trevo, a neve], realizado em tempo sucessivo [primeiro, depois, depois, depois], ocupando o nada com a matéria primordial e absoluta da vida, a da physis, da Natureza, da unidade mística que une todas as coisas, mesmo as que parecem sonhadas.”

Maria Beatriz Seabra

Poema escolhido por José Anjos (Poeta e Músico no projecto “mao-mao”)

“In Memoriam“, in “Limiar dos Pássaros”, 1976  

Esses mortos difíceis
Que não acabam de morrer
Dentro de nós; o sorriso
De fotografia,
A carícia suspensa, as folhas
Dos estios persistindo
Na poeira; difíceis;
O suor dos cavalos, o sorriso,
Como já disse, nos lábios,
Nas folhas dos livros;
Não acabam de morrer;
Tão difíceis, os amigos

Justificação da escolha

“Talvez este seja o mais conseguido poema de amor de Eugénio de Andrade, quando lido na sua plena incompletude. Só sabemos que a morte existe porque outros (os amigos) nos disseram, desaparecendo. Mas nunca desaparecem, ou melhor, ‘não acabam de morrer’, como diz o poema. O sofrimento que advém da morte é também um acto de amor, para o qual sempre nos dispusemos, mesmo sem saber. Por mais que vivamos com essa certeza, jamais estaremos preparados. E assim deve ser, porque foi para isso que fomos feitos (como diz Vinicius) e somos feitos dos nossos mortos, e os poemas são cemitérios onde podemos beber com eles.”

José Anjos

Poema escolhido por Raquel Marinho (Diretora de Comunicação (autora do Podcast “O Poema Ensina a Cair”)

Quase Nada“, in “Primeiros Poemas”, 1977

O amor
é uma ave a tremer
nas mãos de uma criança.
Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.

Justificação da escolha

“É muito difícil escolher um só poema de Eugénio de Andrade. Escolhi este mas pensei no “Adeus” e nos olhos que são peixes verdes, que também fala de amor, mas que se refere ao fim do amor, ao momento em que as palavras estão gastas.
Preferi, por isso, esta aproximação à definição de amor. Pela sua beleza, pela sua pureza e inocência, porque nos remete para o silêncio — esse, que só existe quando amamos, ou nas “manhãs mais limpas”.”

Raquel Marinho

Poema escolhido por Zé Manel (Músico, vocalista dos Fingertips)

Poema à mãe“, in “Os amantes sem dinheiro”, 1950 

No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.

Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;
Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;

Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal…

Mas — tu sabes — a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.

Justificação da escolha

“Quem seremos nós se não estes projectos de crianças disfarçadas de adultos, na incompreensão dos dias? Estes órfãos de explicações plausíveis sobre este inóspito lugar onde nos colocaram a título de oferenda? A quem poderemos nós recorrer se não a quem calcorreou estes becos antes de nós? Reduzimos o medo do crescimento à fragilidade da posição fetal e inquirimos à nossa origem que nos explique porque se nos vai a inocência. O poeta é aquele que encerra na simplicidade a complexidade da existência. A Mãe que nos ampara é também aquela que nos condena ao sádico jogo do crescimento. Eugénio é mágoa e amor. Também eu.”

Zé Manel
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