“Aftersun”, de Charlotte Wells: um postal de memórias que não guardámos
Este artigo pode conter spoilers.
O filme inaugural da cineasta escocesa Charlotte Wells, “Aftersun”, é uma das obras mais aclamadas do ano. Conquistou sete categorias nos British Independent Film Awards, incluindo melhor filme, argumento e realização, fez parte da Seleção Oficial na Semana da Crítica, do Festival de Cannes, e do Toronto International Film Festival (TIFF), possuí uma nomeação aos Óscares, pelo protagonismo de Paul Mescal, e encontra-se agora nas salas de cinema portuguesas.
“Aftersun” transporta-nos às recordações de Sophie (Frank Corio), uma rapariga de 11 anos, numas férias de verão passadas com o seu pai, Calum (Paul Mescal), numa módica estância de férias.
Inicialmente, somos protegidos pela lente de Wells ao colocar-nos no papel de Sophie que, apesar de ser uma criança inteligente e sensível, acaba por abstrair-se das inquietações da vida adulta enquanto começa a entrar na pré-adolescência.
Durante muitas das sequências do filme, sentimo-nos na pele dos protagonistas. Sophie apercebe-se, vagamente, da dinâmica entre os seus pais que, mesmo separados, dizem amar-se, porque são família. Deste modo, as dúvidas de Sophie tornam-se as nossas e as suas percepções e curiosidades transpõem-se ao nosso imaginário.
Wells escapa à típica fórmula do filme coming-of-age ao reencontrar permanentemente a recordação enquanto experiência e a pontuar permanentemente o enredo com alegorias visuais que nos elucidam quanto ao estado emocional de Calum, algo igualmente reforçado pela performance fenomenal de Paul Mescal, nomeado ao óscar de melhor ator.
A inocência de Sophie é convocada através de planos de uma câmara subjetiva, algo simples, divertido e momentâneo. O sufoco de Calum, por outro lado, é frisado pela direção de fotografia, crédito de Gregory Oke, e pelas opções de blocking de Wells. O semblante de Mescal apertado, em planos fechados, contra os limites da tela enquadram uma ideia transversal em todo o filme, no entanto, nem sempre evidente, o que é bom. Descobrir Calum, o homem e não o pai, através da lembrança é um dos motes centrais da narrativa, mas nunca é forçado ao espectador.
“Aftersun” é um filme sobre recordar a infância, ou a vida, e compreender o que os nossos pais nos prometeram: “um dia, quando cresceres, vais perceber”. Ver este filme é ganhar perceção da infância enquanto adulto, como quem coloca uma VHS no leitor para voltar a ouvir a nostalgia da fita a engrenar no passado e pensar que somos tão inevitáveis quanto aquelas imagens reproduzidas na televisão. É, igualmente, sentir a modorra após o almoço ao espreguiçar junto à piscina numa tarde quente de verão, mergulhar na brisa de um primeiro amor ou sentir a melancolia moída por um dia em cheio.
O filme alia a nostalgia de um enredo de Wim Wenders à serenidade audiovisual de Éric Rohmer (sabe mais sobre o realizador) para obter um postal de uma infância que não tivemos e o resultado é, no mínimo, glória em celuloide. Assim, acredito, nasce um clássico.